Como
a revolução tecnológica economiza trabalho, já não interessa a países
imperialistas industrializar a periferia. Nessa lógica, cabe a Brasil,
Argentina e México reduzir-se a fornecedores agrícolas e minerais. É deste
destino que precisamos escapar
José
Raimundo Trindade, no A Terra é Redonda | em Outras Palavras
A
economia mundial capitalista tem o caráter de desenvolvimento desigual e
combinado[i], o que se materializa em um padrão internacional de divisão do
trabalho na qual a economia mundial se divide em três grandes zonas de
soberania e de arranjos tecnológicos, geopolíticos e de controle financeiro: o
centro, a semiperiferia e a periferia, sendo que essa divisão aparece
funcional para garantir a apropriação de mais-valor pelos centros e
novos-centros, permitindo o acumulo do poder econômico nas regiões de liderança
tecnológica, militar e financeira e o subdesenvolvimento (em condições de
dependência) nas regiões de menor progresso tecnológico, subordinação
geopolítica e financeira.
A
expansão mundial do capital e a configuração do capitalismo enquanto
economia-mundo se processa desigualmente em termos territoriais, não havendo
“convergência” como processo econômico, mas o estabelecimento de diferentes
hierarquias geoeconômicas, em conformidade a referida dinâmica de desenvolvimento
desigual e combinado. A economia mundial se estabelece, portanto enquanto
diversos circuitos reprodutivos de capital superpostos e integrados, sendo que
essa relação é o que constitui a lógica imperialista, por um lado, e de
dependência por outro. O que se denomina de soberania nacional deve ser
entendido como o maior ou menor grau de autonomia nacional em relação a quatro
eixos centrais: tecnológico, financeiro, geopolítico e de reprodução social das
populações.
A
América Latina está na região espacial periférica de proximidade dos EUA, sendo
que em função disso a soberania dos Estados nacionais latino-americanos é
extremamente frágil nos quatro pontos centrais que constituem ou determinam a
soberania nacional enquanto ordem de poder na divisão internacional do
trabalho:
i)
Quanto a capacidade de domínio tecnológico e de controle sobre os principais
segmentos da reprodução técnica do capital. Neste aspecto, tanto a
dependência de plantas industriais transplantadas, quanto pelo fato da não
neutralidade da tecnologia e de sua razão antropocêntrica, observa-se uma série
de consequências negativas às sociedades latino-americanas, inclusive os
aspectos de formação de uma gigantesca superpopulação relativa e as
consequências de bolsões de pobreza, desocupação e informalidade[ii].
ii) A
maior ou menor influência sobre o circuito financeiro internacional, e como se
estabelecem as condições de controle nacional sobre seu sistema de crédito e
base monetária, componente de soberania financeira. Este fator implica a
capacidade, em termos de moeda nacional, de conseguir fazer tanto as trocas
comerciais internacionais tendo como base sua moeda nacional, como também o
controle sobre os fluxos de capitais (Investimento Externo Direto) e as
consequentes transferências de rendas (lucros e juros) para os países centrais,
no caso da América Latina centralmente para os EUA[iii].
iii)
O controle geopolítico do território e a capacidade de intervenção
extraterritorial. Aqui três elementos se integram: de um lado o poder
militar autônomo que apresenta maior ou menor capacidade de dissuasão de
ofensivas de outros Estados beligerantes, o uso autônomo e soberano do
território em conformidade aos interesses de um projeto nacional e, por fim, a
capacidade de arbítrio e influência na ordem de decisão multilateral
internacional. A América Latina apresenta enorme dependência e subordinação
neste aspecto, seja pela incapacidade de se colocar nos acordos multilaterais
internacionais, seja pela própria gestão dos seus territórios, em grande medida
sujeitos a intervenção do poder imperial estadunidense [iv].
iv)
Por fim, mais central e de grande consequência, os fatores de ordenamento
social considerando a qualidade econômica, educacional e de saúde da população,
o exercício da cidadania enquanto poder de organização e convívio coletivo, o
poder de exercício de interação democrática nas decisões do Estado.
Neste
aspecto temos que ressaltar que as diferentes condições nacionais de reprodução
do capitalismo na América Latina se baseiam em grande medida no que Ruy Mauro
Marini denominou de superexploração do trabalho[v]. Uma das consequências
diretas dessa forma de exploração em que a reprodução dos trabalhadores se
efetua a uma taxa de salário inferior ao valor da força de trabalho é que a
qualidade de vida população é muito precária, submetendo os trabalhadores a uma
enorme precarização.
Considerando,
por exemplo, o caso brasileiro, temos magnificado o sentido da manutenção da
dependência e da restrição da soberania nacional: em termos tecnológicos, temos
uma dependência estrutural aos EUA; no caso financeiro, o sistema de crédito
brasileiro constitui um biombo do sistema estadunidense. Visível no sistema de
divida pública, que basicamente funciona como um meio de transferência de
riqueza nacional para os controladores externos ou internacionais da divida,
algo em torno de 5% do PIB anual; quanto aos aspectos geopolíticos, plenamente
vinculados às relações exteriores do império norte-americano; por fim o aspecto
da qualidade de vida, onde a lógica de superexploração do trabalho impõe
precárias condições de vida para a maior parte da população brasileira.
O
processo de globalização e a dinâmica econômica passiva latino-americana a
partir da década de 1990 aprofundaram as precárias condições de desenvolvimento
autônomo de suas economias nacionais, seja pela desnacionalização de segmentos
expressivos da indústria, seja pela elevação da vulnerabilidade externa nos
principais aspectos a ser considerados: na capacidade produtiva (maior
dependência de investimento externo direto), tecnológica (baixa capacidade de
estruturação de um sistema nacional de inovação e baixa dinâmica tecnológica) e
financeira (investimentos financeiros, empréstimos e financiamentos), fatores
que se relacionam a restrição das condições de soberania dos Estados
nacionais[vi].
As
relações entre economias capitalistas centrais e periféricas se mantém pela
transferência ou vazão líquida de valor para os países centrais, seja pelos
mecanismos clássicos de remessas de dividendos, juros e ordenados pagos aos
diretores das grandes companhias imperialistas e aos débitos crescentes dos
países subdesenvolvidos, mas também pelo agravamento da troca desigual,
especialmente estabelecidos desde o crescente hiato tecnológico consolidado a
partir dos anos 2000.
Convém
lembrar que a dependência a partir da segunda metade do século XX estaria
fundada numa situação de compromisso entre os interesses que movem as
estruturas internas dos países dependentes e as do grande capital
internacional, o que implica numa profunda internalização dos interesses das
empresas transnacionais e nova limitação ao grau de autonomia das economias e sociedades
periféricas no que diz respeito aos componentes de soberania já assinalados.
Duas
grandes tendências se estabelecem no sistema capitalista mundial neste início
do século XXI:
i)
O desenvolvimento da revolução científico-técnica determina o acirramento da
contradição entre o aumento da produtividade e a mais-valia extraordinária,
isso ao reduzir a massa de valor empregada na força de trabalho a uma parte
cada vez menor do processo produtivo, tornando a economia de trabalho
estabelecida pela inovação tecnológica exígua para valorizar a quantidade de
mercadorias gerada pelo aumento da produtividade.
ii)
A tecnologia nas economias nacionais permite significativamente o barateamento
dos preços, em função da elevação do nível de produtividade, sendo que a adoção
crescente da automação diminuiu drasticamente o emprego industrial, agravando
ainda mais as condições de expansão do exército industrial de reserva e a
subutilização de força de trabalho, ao lado da intensificação da exploração dos
trabalhadores.
Será
neste contexto que se imporá as economias latino-americanas e, especialmente,
aos países mais industrializados da região (Brasil, México e Argentina) uma
agenda que sedimentará uma trajetória de desestruturação industrial ou de
reprimarização de suas bases exportadoras. O núcleo das políticas
estabelecidas, desde o grupo de Santa Fé, constituirá na valorização cambial
das moedas das economias periféricas, privatização dos recursos estatais para
gerar liquidez e elevação das taxas de juros, para repassar aos capitais
financeiros internacionais.
Como
Theotônio dos Santos[vii] chamou atenção, poucos analistas perceberam as
alterações sensíveis que a nova política econômica estadunidense para as
economias periféricas latino-americanas reservaram: “abriu caminho para uma
nova fase das economias da região, baseadas em moedas fortes, déficits
comerciais e atração de capitais financeiros”. Esse tripé de política de
comércio internacional constitui elemento explicativo importante para um
possível aprofundamento da vulnerabilidade externa brasileira e
latino-americana em geral, principalmente considerando o esgotamento do ciclo
primário-exportador, seja pelo declínio dos preços internacionais, seja pelas
alterações que serão desencadeadas nos pós-crise Covid-19.
Assim,
a dependência estrutural latino-americana, e muito especificamente a
brasileira, se aprofundou nas últimas décadas, impondo uma trajetória de
regressão industrial. A interação com as duas maiores economias em crescimento
nas últimas três décadas condicionadas a sujeição ao mercado internacional pela
exportação de bens primários (ferro e soja) e a importação de bens de elevada
intensidade tecnológica, durante a década de 1990 tendo o centro do comércio
exterior brasileiro os EUA e; a partir da década de 2000 a China, replicando de
forma regressiva a relação de exportação de bens básicos vis-à-vis a
importação de bens com maior conteúdo tecnológico.
Deve-se
observar que esse processo inclui mecanismos de apropriação de riqueza a partir
dos desequilíbrios da balança comercial, seja pela produção exaustora da
natureza – caso da exportação mineral –, seja pela transferência de renda
diferencial obtida pelo uso de técnicas de plantio a novas terras colocadas em
exploração – caso da soja –, seja pelo mecanismo de superexploração da força de
trabalho, que garante transferência de renda da periferia para o centro.
Vale
observar que, na medida em que a economia mundial superar a crise atual – ainda
que de maneira gradativa –, a tendência é que o Brasil e a América Latina
ampliem seu papel de fornecedor mundial dos produtos primários e tenham suas
economias cada vez mais centradas em produtos básicos, reestabelecendo um
padrão histórico de dependência e subdesenvolvimento. Em suma, a questão aqui
levantada precisa ser aprofundada e servir de reflexão e ação, caso se queria
sociedades mais industrializadas, tecnologicamente integradas e
sustentavelmente desenvolvidas, assim como um continente com menor desigualdade
social e espacial, temos que estabelecer uma agenda latino-americana de ruptura
com uma economia dominada por agro- minero negócios voltada à exportação de
produtos primários.
Notas:
[i]
TROTSKY, León. La teoria de la revolución permanente (compilación). Buenos
Aires: CEIP León Trotsky, 2000.
[ii]
DOS SANTOS, Theotônio. Lições de Nossa História. Revista Sociedade Brasileira
de Economia Política, São Paulo, nº 30, p. 19-32, outubro 2011.
[iii] TRINDADE,
José Raimundo Barreto. Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do
Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista. Curitiba: Editora CRV,
2017.
[iv]
FIORI, José Luiz. O poder Americano. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2007.
[v]
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência (A). In: SADER, E. Dialética da
Dependência. 1ª edição. Petrópolis: Vozes, 2000.
[vi]
OSÓRIO, J. América Latina: o novo padrão exportador de especialização
produtiva: estudo de cinco economias da região. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO,
J.; LUCE, M. (Orgs.). Padrões de reprodução do capital: contribuições da teoria
marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.
[vii]
DOS SANTOS, Theotônio. Economia mundial, integração regional e desenvolvimento
sustentável: as novas tendências da economia mundial e a integração
latino-americana. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1993.
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