Marcelo Rebelo de Sousa pode ser
acusado de tudo, menos de ser mal informado. Por isso, o seu silêncio à data de
hoje sobre a situação no Brasil é preocupante.
Sérgio Tréfaut* | Público | opinião
Dizem os políticos que Portugal e
o Brasil são países irmãos. Marcelo Rebelo de Sousa aprecia esta figura
retórica. Mas chegou o momento em que é necessário decidir de que país Portugal
é irmão. Do Brasil que está a matar? Ou do Brasil que está a morrer? O que se
passa no Brasil hoje é mais grave do que um crime de Estado.
Desde o final de março, das
janelas da minha casa no Rio de Janeiro, ouvi todos os dias gritar: “Bolsonaro
genocida!” Porquê gritam assim os vizinhos à janela? Porque vários genocídios
invadiram suas vidas.
O primeiro é um genocídio de
populações indígenas, denunciado
no Tribunal de Haia em 2019, e denunciado também por Sebastião Salgado. A
indiferença de Bolsonaro ao extermínio dos índios tornou-se óbvia no
vídeo da reunião de 22 de abril, divulgado a pedido de Sérgio Moro.
Nessa reunião de ministros, vemos
o ministro do Meio Ambiente definir a atual epidemia como uma oportunidade para
fazer passar as leis (ilegais) de desmatamento da Amazônia, o que significa
quase o fim dos índios. Sabemos que 90% das populações indígenas morreram no
século XVI de doenças como a varíola, levadas por europeus. O governo
brasileiro pretende agora que
os índios que restam morram de covid. O ministro do Ambiente representa bem
os valores do governo Bolsonaro.
A segunda forma de genocídio
praticada no Brasil de hoje é a mais mortífera. Trata-se do negacionismo face à
pandemia.
Desde março, Bolsonaro insultou
as televisões por divulgarem as mortes na Itália: o Brasil nunca viveria
aquilo. Hoje Bolsonaro
esconde o número de mortos. Este negacionismo é o espelho da sua política.
“O Brasil não pode parar”, afirmava Bolsonaro, apoiado pelos grandes
industriais.
Os dois ministros da Saúde que
tentaram defender o confinamento foram
despedidos ou forçados a sair. Aliás, o negacionismo mais criminoso é o do
Ministério da Saúde. Como se tratava de
uma “gripezinha”, houve uma ausência total de plano para enfrentar a
pandemia. Falta de testes, falta de material de proteção, falta de camas, falta
de ventiladores, falta de tudo. Em números absolutos, Portugal fez mais testes
à covid-19 do que o Brasil, com 210 milhões de habitantes.
Curiosamente, durante a epidemia
de dengue de 2008 (174 mortos), o Governo de Brasília, com o apoio das Forças
Armadas, montou três hospitais de campanha no Rio de Janeiro e salvou vidas.
Face ao coronavírus, o Governo Federal negou a importância do perigo. Não ponderou
um instante sobre a necessidade de cordões sanitários para proteger aldeias
indígenas, ou para proteger áreas urbanas sobrepovoadas, onde o confinamento
seria impossível por falta de condições. Tudo foi lançado para os governadores,
não por uma visão descentralizadora, mas
em forma de ataque. Assim Brasília culpou os estados pela crise sanitária e
pela crise económica.
Bolsonaro e os seus filhos
defenderam uma política eugenista, de cariz hitleriana: “É velho? É doente? Tem
mesmo que morrer.” “É a lei da vida.” Frases como esta foram repetidas até a
exaustão. São dez mil mortos? "E
daí?”
Pela falta de cuidados, o Brasil
tornou-se o país com maior número de enfermeiros mortos por covid. Agora
será o país com maior número de mortes do mundo. Não fazer face à pandemia,
optar por 100 mil mortos em vez de 10 mil em nome da economia, o que é senão um
crime de Estado?
O
clã Bolsonaro lançou milícias anti-confinamento, com manifestações
ilegais nas ruas. Assim, vários militantes anti-confinamento morreram de covid.
Mas agora, com mais de mil mortes diárias, as manifestações já não são
necessárias. Governos e prefeituras cederam a Bolsonaro, abrindo praias e
comércio.
O que pensariam os portugueses
se, durante o confinamento, Marcelo Rebelo de Sousa lutasse contra as normas do
Ministério da Saúde, reunindo multidões em passeatas anti-confinamento? Em
Portugal, imagino que o Presidente seria impedido, ou preso. Não é o caso no
Brasil. Bolsonaro está acima da lei. E o genocídio no Brasil não se limita à
covid.
Existe um genocídio diário levado
a cabo pela polícia nas favelas. Os Estados Unidos mobilizaram-se agora com
o assassinato de George Floyd. “Black lives matter” conquistou o mundo.
Se o assassinato de George Floyd
tivesse ocorrido no Brasil, a polícia teria dado um tiro na cabeça da
adolescente de 17 anos que estava a filmar, como faz todos os dias. Ninguém
saberia. Esta é a banalização da impunidade policial validada por Bolsonaro. No
ano de 2019, só no Rio de Janeiro, a polícia foi responsável por 1814
assassinatos, ou
seja, cinco mortos por dia.
A polícia entra nas favelas e
mata sem receio da lei. Nenhum polícia precisa de prestar contas dessas mortes.
Bolsonaro assina por baixo: “Bandido bom é bandido morto.” Sem julgamento. Sem
provas. Raras vezes um caso ganha destaque. Por exemplo, quando, no dia 18 de
maio, João Pedro, 14 anos, brincava com amigos em casa e foi morto pela
polícia. Dias antes tinham sido encontrados 12 corpos com marcas de tortura
policial. Nenhum polícia foi detido. Nas favelas denuncia-se o genocídio negro.
Mas ninguém ouve.
À banalização do crime acresce a
liberação por Bolsonaro da venda de armas a civis, armas que eram de uso
exclusivo dos militares. A imprensa diz que Bolsonaro aposta numa guerra civil.
Aqui chegamos ao extermínio da própria democracia.
O que Portugal tem a ver com
isto? Tudo.
No dia 1 de janeiro de 2019, há
pouco mais de um ano, Marcelo Rebelo de Sousa era
a estrela internacional da tomada de posse de Bolsonaro. Angela
Merkel, Theresa May, Emmanuel Macron não foram à cerimónia, apesar de
convidados. Os dirigentes da direita europeia tomavam uma posição distante face
a um novo Presidente do Brasil, com um conhecido desprezo pela democracia.
Os únicos chefes de Estado
europeus eram Marcelo e Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, cujas
declarações sobre ciganos parecem extraídas de compêndios nazis. O ministro dos
Negócios Estrangeiros português também não esteve presente, mas, sendo quem é,
bem poderia ter estado. Quanto a Marcelo, pode ser acusado de tudo o que
quiserem, mas não pode ser acusado de ser mal informado. Por isso, o seu
silêncio à data de hoje é preocupante.
Marcelo terá visionado a
criminosa reunião de ministros de 22 de abril, chefiada por Bolsonaro, vulgo
covil dos infames. Pode ser que outros presidentes do mundo não compreendam o
que foi dito nessa reunião. Marcelo compreende.
Marcelo também sabe que Bolsonaro
fez ameaças de morte aos membros do Supremo Tribunal Federal.
Marcelo sabe que Bolsonaro falou
em manifestações que
pediam uma ditadura militar e o encerramento do Congresso.
Sabe que em nenhum país
democrático um cidadão poderia sequer se candidatar às eleições presidenciais
tendo feito a apologia da tortura e lamentando os
poucos mortos de um regime ditatorial.
Marcelo recebe informações sobre
a impunidade da polícia no Brasil. Cinco George Floyd por dia.
Marcelo sabe que Bolsonaro luta
pelo descrédito da democracia. E que contra ele existem mais de 30 pedidos de impeachment.
Quem cala, consente.
O que poderia fazer o Presidente
da República? Poderia muito. Poderia liderar um movimento de pressão
internacional. Poderia e deveria convocar o embaixador do Brasil e pedir
explicações – nem que seja considerando a comunidade portuguesa no Brasil. A
diplomacia não é apenas um entreposto para vender vinhos e azeite.
Além do Presidente, através do
seu governo e dos seus deputados, Portugal pode apresentar moções condenatórias
no Parlamento Europeu, no Conselho da Europa, na ONU.
Isto seria próprio de um país
irmão.
*Cineasta a residir no Rio de
Janeiro
*Publicado em 9 de junho no Público
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