Diz o povo que o pior cego é
aquele que não quer ver. Esse comportamento - individual ou coletivo - de, por
comodismo, se fazer vista grossa perante factos objetivos duros com que nos
deparamos, ou de, por oportunismo, fingirmos que desconhecemos a realidade,
paga-se muito caro.
Manuel Carvalho Da Silva
| Jornal de Notícias | opinião
A História está cheia de decisões
políticas ancoradas nesses fingimentos: umas geraram enormes prejuízos
económicos e sociais, outras deram origem a guerras. Todas elas causam
injustiças, pobreza, horrores. Passado algum tempo aparecem responsáveis por essas
decisões a dizer-nos: "se soubesse o que sei hoje" agiria de forma
diferente. Na esmagadora maioria dos casos estas afirmações são de uma
hipocrisia que enoja, como é o caso de recentes declarações de Durão Barroso,
numa entrevista à Atlantic Talks.
Barroso foi o lacaio de serviço
na organização da cimeira das Lajes, em 2003, onde foi assumido o avanço para a
invasão e guerra do Iraque. Era, na altura, primeiro-ministro de Portugal e um
político com experiência internacional. Agora diz que "com o que se sabe
hoje" provavelmente não agiria da mesma forma, fazendo de conta que
"a informação que tinha na altura" - construída de forma mentirosa
pelos Estados Unidos da América (EUA) - era a de que dispunha. Ora, ele sabia
muito bem que as Nações Unidas não aceitavam tal ato, que parte dos países
europeus e a esmagadora maioria à escala mundial se opunham e viu, naqueles
dias, milhões e milhões de cidadãos em todo o Mundo, e em Portugal,
manifestando-se desesperadamente contra tal opção. Até o Papa apelou para que
não se entrasse por tal caminho. Durão Barroso participou, bem informado e
conscientemente, num dos atos criminosos e belicistas mais graves após a II
Guerra Mundial. Uma invasão ignóbil para limpar toda a Administração iraquiana
(expressão de Barroso), seguida de guerra que alimentou outras guerras, a
instabilização de países, o incremento do terrorismo e milhões de refugiados, e
que causou e causa imensos mortos e sofrimento humano.
Enquanto primeiro-ministro,
Barroso sabia existir em Portugal uma opinião esmagadora condenatória da via da
guerra, incluindo a opinião, embora pouco ofensiva, do presidente da República.
Propositadamente traiu o povo português, mas ganhou "competências"
que o catapultaram para presidente da Comissão Europeia e agora para chairman
do banco Goldman Sachs Internacional, um dos principais pilares, à escala
global, da "economia que mata" a que se refere o Papa Francisco. E
porque este banco é uma das instituições que mandam neste Mundo crescentemente
injusto e belicista, vemos, infelizmente, governantes de países e responsáveis
de grandes instituições a curvarem-se perante este bandalho político.
Aquela "badalhoquice"
política não surpreende vinda de Durão Barroso. O que se reclama para gente
como ele é a existência de condições para rigoroso julgamento político e
outros, se adequados. Entretanto, choca ver Mário Centeno - que publicamente se
reconhece como pessoa séria e rigorosa - agora, a propósito do contrato com o
Novo Banco, puxar da bengala "se eu soubesse o que sei hoje" para nos
dizer que faria diferente.
Então, Mário Centeno, o que é que
o senhor sabe que os portugueses precisam de saber para evitarem que o desastre
continue?
*Investigador e professor universitário
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