#Escrito e publicado em português do Brasil
Alemães são elogiados pela
expiação de seu passado nazista, mas o país manteve estruturas que permitiram –
e permitem – o florescimento do racismo e o entrelaçamento de germanidade com
brancura, opina Ursula Moffitt.
Nas últimas semanas, numerosas
postagens nas redes sociais anunciaram a Alemanha como um modelo de revisão de
atrocidades passadas a ser seguido. Essa narrativa não é nova, mas ganhou força
enquanto são destruídas estátuas homenageando generais confederados, líderes
coloniais e outros.
Desde que os movimentos
estudantis dos anos 1960 transformaram o silêncio em ação, inúmeros memoriais
do Holocausto foram erguidos, e antigos campos de concentração transformados em
instalações educacionais.
Isso é inquestionavelmente bom.
No entanto, enquanto lutamos coletivamente para saber como avançar hoje, a
Alemanha nos mostra que a expiação de pecados do passado de pouco serve, se os
sistemas que os permitiram não forem desmontados.
Como estudante de intercâmbio,
quase 20 anos atrás, me hospedei com uma família turco-alemã que ajudou a me
libertar de uma imagem branqueada da Alemanha contemporânea. Anos mais tarde,
mudei-me para Berlim por um ano que se transformou em oito. Voltei para os
Estados Unidos no outono passado com um doutorado em identidade nacional alemã
em relação a raça e racismo.
Enquanto trabalhava na minha
tese, eu lecionava na faculdade de formação de professores da Universidade de
Potsdam e me concentrava nas desigualdades históricas e presentes. A maioria
dos meus alunos nunca havia aprendido sobre o colonialismo alemão, e muitos
estavam reticentes em preencher essa lacuna.
Alguém perguntou: "Já nos
disseram como fomos terríveis na Segunda Guerra Mundial, por que temos que
aprender sobre outras coisas terríveis do passado da Alemanha?"
Confrontar o racismo se tornou
parte do meu currículo, embora meus colegas alemães brancos me dissessem que eu
estava exagerando e interpretando as coisas errado. Os alemães brancos costumam
censurar os americanos por sua "obsessão" com a raça, mas aprendi na
Alemanha que não designá-la é uma das formas mais poderosas de manter uma
sociedade racialmente estratificada.
Digo "alemães brancos"
intencionalmente, embora a palavra Rasse (raça, em alemão) tenha sido
retirada de uso após o Holocausto, e a lacuna daltônica que isso criou tenha
dado espaço ao racismo sistêmico, ao mesmo tempo tornando difícil nomear,
detectar ou condená-lo.
Durante séculos, o senso de
pertencimento baseado no sangue orientou políticas e noções cotidianas de
germanidade. Em 1999 foi aprovada uma lei ampliando a cidadania não baseada nos
ancestrais, refletindo legalmente a diversidade existente na população da
Alemanha.
No entanto, só em 2014 a dupla cidadania foi
liberada para filhos de cidadãos de fora da União Europeia, que anteriormente
tinham que escolher entre obter a cidadania alemã ou manter a de seus
pais.
Como parte da minha pesquisa de
doutorado, entrevistei adultos turco-alemães, a maioria dos quais enfrentou
essa escolha e se zangava por ter tido que provar lealdade ao país onde nasceu
e foi criada. Muitos notaram que, apesar de se sentirem alemães, um passaporte
não mudaria o fato de serem vistos como "outros perpétuos" por muitos
alemães brancos.
Até o início dos anos 2000, era
normativo discutir "alemães" e "estrangeiros", sendo que
esse último termo se referia a não alemães percebidos. Fiquei chocada ao
encontrar essa linguagem em pesquisas ligadas a escolas, na Universidade de
Potsdam, em 2014. Disseram-me que era para fins de clareza: as crianças sabem
discernir entre "alemães" e "estrangeiros". Quando
mencionei racismo, recebi uma lição sobre a minha própria condição de
estrangeira.
O "histórico
migratório" foi introduzido no censo alemão em 2004 para rastrear a
diversidade – sem nomear a raça – e desde então se tornou onipresente. Muitas
vezes abreviado para "migrante", independentemente de onde se nasça,
é usado quase exclusivamente para descrever pessoas de cor, inclusive alemães
de cor, embora "alemão" esteja notavelmente ausente.
Ao contrário da compreensão de
raça como uma construção social com impacto material, compartilhada pela
maioria nos EUA, Rasse está congelado como termo pseudocientífico e
biológico – a definição usada por colonizadores e nazistas. O copresidente do
Partido Verde Robert Habeck, ao argumentar a favor de remover Rasse da
Lei Fundamental (a Constituição alemã), declarou: "Não existe isso de
raça, só existe gente."
Embora bem intencionado, tal
daltonismo encobre o racismo, sustentando em vez de desmantelar as estruturas
que permitem seu florescimento. É necessário um novo acerto de contas cultural,
não com o Holocausto, mas com a forma de a germanidade se entrelaçar com a
brancura. Quem tem acesso à cidadania, quem é outro enquanto "migrante"
e quem é detido pela polícia: isso é definido por noções racializadas de
pertencimento que antecedem a Segunda Guerra Mundial.
Exaltar a Alemanha pela forma
como "lidou" com seu passado torna invisível o racismo vigente hoje.
Monumentos nunca foram construídos para o passado nazista, mas tampouco esse
passado foi adequadamente situado no que veio antes ou o que aconteceu desde
então. Esse é um erro com que se pode aprender.
Deutsche Welle | opinião
Imagem: Manifestantes derrubam
estátua de comerciante de escravos do século 17, em Bristol
*Ursula Moffitt é doutora em
psicologia pela Universidade de Potsdam, Alemanha. Atualmente faz pós-doutorado
na Northwestern University, EUA, onde estuda o desenvolvimento contextualizado
da identidade racial.
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