domingo, 12 de julho de 2020

Angola é um país de "ditadura", diz advogado de ativistas detidos em Cabinda


Defesa dos ativistas da União dos Cabindenses para a Independência detidos há mais de uma semana por "rebelião" vai impugnar as medidas de coação. Advogado e ativistas ouvidos pela DW criticam sistema judicial angolano.

A 28 de junho, Maurício Gimbi e André Bônzela, presidente e vice-presidente da União dos Cabindenses para a Independência (UCI), foram detidos por rebelião, ultraje ao Estado e associação criminosa.

Estavam à espera de transporte quando se depararam com "supostos polícias mascarados e à paisana". Aí foram "brutalizados", conduzidos para a investigação criminal e "postos diretamente nas celas", onde estiveram nos primeiros três dias em "condições desumanas". A descrição é do advogado dos arguidos, Arão Tempo.

"Não deveriam ter sido submetidos a esse tipo de tratamento. E mesmo assim, no local onde foram detidos foram brutalizados. Essa atitude foi arbitrária e condenável", aponta.

No dia 30, os dois foram ouvidos pelo Ministério Público. No mesmo dia, foi detido João Mampuel, chefe do gabinete presidencial da organização política UCI, existente há um ano. A defesa dos acusados prepara-se para impugnar as medidas de coação e pedir a libertação imediata dos arguidos "por não terem cometido qualquer crime", defende Arão Tempo.

"Porque a própria Constituição da República aqui em Angola dá liberdade de expressão e de reuniões. Todos têm o direito de exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, ideias e opiniões pela palavra, imagem ou qualquer outro meio. Bem como o direito e a liberdade de informar, de se informar e de ser informado sem impedimentos nem discriminação", atenta o advogado.


Distribuir cartazes é crime?

Segundo Arão Tempo, o motivo apontado para a detenção foram os dísticos colocados nas ruas um dia antes das primeiras detenções, com os dizeres "Abaixo as armas, abaixo a guerra em Cabinda, Cabinda não é Angola, viva o diálogo, viva a Liberdade, viva o povo de Cabinda".

O advogado esclarece que não foram os dois primeiros detidos a colar os cartazes e que a divulgação de panfletos não constitui qualquer crime.

"Isso não pode constituir nenhum crime, porque não houve arruaça nenhuma, não houve qualquer incitação, são simplesmente opiniões. Não se podem deter pessoas por causa de simples opiniões, não é possível", argumenta.

À DW África, o secretário-geral da União dos Cabindenses para a Independência, Eduardo Matunda, confirmou que os cartazes eram efetivamente da UCI, tendo inclusive a bandeira da organização.

Clarificou ainda que o objetivo da UCI é reivindicar a independência de Cabinda através de meios pacíficos. Reitera que não incitam à violência e pedem ao Governo que dialogue com os cabindas.

Ausência da prisão?

Está ainda por explicar uma alegada ausência dos arguidos do Estabelecimento prisional de Cabinda no passado fim de semana. Matunda diz saber o que se passou.

"Quando a família se dirigiu à cadeia, por volta das 16h00, depararam-se com uma notícia de que os elementos ora detidos não se encontravam no local, pois foram movidos a mando do comando provincial de Cabinda da polícia nacional. Foram retirados no período matinal com todos os seus pertences", relata.

Matunda diz-se seguro do que afirma: "E isto foi uma informação que nos foi confidenciada por parte de todos os efetivos da guarda prisional que se encontravam no local, bem como o mais alto responsável daquele estabelecimento prisional confidenciou-nos a mesma notícia".

Relata ainda que por volta das 21h00 de sábado os arguidos regressaram à penitenciária, informação corroborada por outro ativista, José Marcos Mavungo, que também denunciou que as famílias não conseguiram ver os arguidos no sábado.

"Até cá não há qualquer explicação porque é que os tiraram da cadeia para fora. E o que é agravante ainda é o próprio comando da polícia que os tirou da cadeia. Isto é muito grave. Como entender esta junção da polícia num processo jurídico de alguém que está preso sob o controlo da procuradoria. Esta é a grande questão que se coloca", acusa Mavungo.

À DW África, Arão Tempo diz que ainda segunda-feira (06.07) esteve com os seus clientes presencialmente no Estabelecimento prisional de Cabinda. Apenas teve de aguardar pela autorização do diretor da unidade penitenciária.

"Nos encontrámo-nos com o diretor e ele mandou buscar os meus constituintes. E o diretor começou a informar. Porque eu queria saber porque é que domingo (05.07) não receberam visitas". O diretor da penitenciária justificou-lhe a ausência dos arguidos com uma "quarentena de 24 horas" que os impediu de ter "contacto com os familiares e outros demais".
Estado é impune?

O advogado dos três ativistas da UCI, Arão Tempo, que já esteve ele próprio detido, diz que os instrumentos do Estado angolano "podem existir, mas não funcionam".

"O Governo angolano nunca reparou danos causados pelos agentes do Estado. Creio que os instrumentos daqui é que não funcionam. Ainda não vi. Num país de ditadura como este quem manda prender e quem manda fazer tudo é o Estado. E existe o protecionismo. Como é que este tipo de sistema político ainda pode assumir a reparação dos erros cometidos por sua culpa? Não é possível".

Processar o Estado angolano por eventuais danos morais e físicos decorrentes do processo não é uma hipótese viável para Arão Tempo.

José Marcos Mavungo também já foi acusado em 2015 de "incitação à rebelião e violência", mas foi ilibado por falta de provas e encontra paralelismos com o processo dos ativistas da UCI.

Cultura do medo

O ativista afirma que o objetivo das autoridades é amedrontar e calar as vozes "irreverentes que vão imprimindo uma nota negativa à atual governação em Angola" e em Cabinda, e também ao "atual figurino sociopolítico herdado de uma descolonização desastrosa". Acrescenta que este processo mostra "mais uma vez que o Governo não muda. Está estagnado nestes 45 anos de governação sob a ‘lei do chicote', a ‘lei da rolha'".

O ativista foi um dos cofundadores da Mpalabanda Associação Cívica de Cabinda, criada em 2003 e extinta em 2006 que, segundo Mavungo existiu sempre sob "constante pressão para não abrir o bico" e "colaborar com o Estado". O ativista afirma ainda que o sistema judicial angolano é "uma vergonha" e deixa uma analogia:

"Se tem problemas com um porco do mato, depois vai queixar-se ao porco da aldeia. [Mas] ambos são porcos, não podem fazer nada. O sistema judicial angolano depende do político. Se eu como procurador desobedecer às instruções de um político, vou ser exonerado. Por isso é que as queixas não têm nenhum efeito", analisa.

"Todos os dias há denúncias, todos os dias há cidadãos que são assassinados, há desvio do erário público. A imprensa publica, mas o provedor não mexe porque ele sabe que as ordens vêm de cima. O juiz, o Procurador e o polícia só obedecem àquilo que o político lhe diz", constata Mavungo.

Ação internacional

O ativista exorta ainda à ação das Nações Unidas e da União Africana para resolver a questão de Cabinda.

"Enquanto não houver solução na questão de Cabinda, não vai haver paz na região, não vai haver paz em Cabinda, não vai haver paz em Angola e não vai haver um funcionamento normal das instituições democráticas. Não só em Angola, mas também nos outros países limítrofes".

Rafael Morais, diretor da organização Friends Of Angola (FoA) diz que o problema da juventude de Cabinda está identificado, que é a luta pelo direito à "empregabilidade, a condições socioeconómicas e sociais garantidas, o direito à saúde e à educação".

Defende que as manifestações têm de ser pacificas, sem violência e que as autoridades devem dialogar "em vez de prender, porque a prisão não vai resolver o problema. Antes pelo contrário, só vai levar estas pessoas a continuar a reivindicar", interpreta. 

Em janeiro deste ano, a FoA reuniu com a Secretária de Estado para os Direitos Humanos onde a organização mostrou precisamente que está aberta para o diálogo.

Marta Cardoso, Agência Lusa | Deutsche Welle

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