terça-feira, 21 de julho de 2020

O secretário-geral da ONU denuncia o colonialismo


#Escrito e publicado em português do Brasil

Nos países mais pobres, 17% das pessoas nascidas há 20 anos já morreu, admite António Guterres, ao falar em homenagem a Mandela. Ele admite desigualdade começa no Banco Mundial, FMI e a própria ONU — e é escancarada pela pandemia

Karen McVeigh, no The Guardian, traduzido pela IHU Online | em Outras Palavras

Em um discurso cujo tom fugiu do comum, António Guterres propôs uma reforma geral no Conselho de Segurança da ONU, no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, para o combate às desigualdades sistêmicas expostas pela pandemia do coronavírus.

A crise atual na saúde relevou uma fragilidade mundial e “expôs os riscos que vínhamos ignorando há décadas: sistemas impróprios de saúde; lacunas na proteção social; desigualdades estruturais; degradação ambiental; crise climática”, disse Guterres.

Segundo ele, a pandemia está expondo “as falácias e falsidades em todos os lugares: a mentira de que mercados livres podem distribuir cuidados de saúde para todos, a ilusão de que vivemos num mundo pós-racista e o mito de que estamos todos no mesmo barco”.

A fúria dos movimentos #EuTambém e Vidas Negras Importam é uma medida da “total desilusão com o status quo”, afirmou Guterres, enquanto o colonialismo e o patriarcado são as fontes históricas da desigualdade.

“Não nos enganemos: o legado do colonialismo ainda reverbera. Vemos ele na injustiça econômica e social, no aumento dos crimes de ódio e xenofobia; na persistência do racismo institucionalizado e na supremacia branca.

“Vemos ele no sistema mundial de comércio. As economias que foram colonizadas correm um maior risco de se prenderem na produção de matérias-primas e bens de baixa tecnologia – uma nova forma de colonialismo. E vemos ele [o legado] nas relações mundiais de poder”.

Guterres fez estas declarações ao proferir, diretamente da sede da ONU em Nova York, a palestra anual Nelson Mandela – no dia em que o líder africano completaria 102 anos – para um público on-line.


A África, explicou ele, é uma “vítima dupla”, primeiro por causa do colonialismo e, segundo, porque os países africanos estiveram sub-representados nas instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial.

“Os países que saíram vencedores 70 anos atrás se recusaram a contemplar as reformas necessárias para a transformação das relações de poder nas instituições internacionais. A composição e os direitos ao voto, no Conselho de Segurança da ONU e nos conselhos do sistema Bretton Woods, são um caso em questão. A desigualdade começa no alto: nas instituições mundiais. A abordagem da desigualdade deve começar pela reforma dessas instituições”.

Os países mais avançados, disse, não conseguiram entregar o apoio necessário aos países em desenvolvimento nestes tempos perigosos. O palestrante pediu por um novo acordo global, baseado na justiça e em um contrato social renovado, para promover uma cobertura universal na área da saúde e permitir uma renda básica universal.

Estes seus comentários vieram na esteira do que falou o relator especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos, Philip Alston, que descreveu a linha internacional de pobreza do Banco Mundial (1,90 dólares diários) como um “ponto de referência escandalosamente pouco ambicioso” que pintou um quadro falso de “conquistas heroicas” contra a pobreza.

Guterres disse que o mundo foi posto de joelhos por um vírus microscópico que reverteu o progresso havido na erradicação da pobreza, estreitando mais ainda os níveis de desigualdade. Alston alertou que a situação atual pode criar um número de famintos “em proporções históricas” e empurrar 100 milhões para a pobreza extrema.

“Enfrentamos a recessão mundial mais profunda desde a Segunda Guerra e a maior queda nos rendimentos desde 1870”, disse. Os trabalhadores na economia informal, das pequenas e médias empresas e os que atuam na área do cuidado, composta principalmente por mulheres, são os mais atingidos.

“As disparidades profundas começam antes do nascimento e definem vidas – e mortes precoces”, falou.

Mais de 70% da população mundial vive com uma crescente desigualdade de renda e riqueza, enquanto os 26 mais ricos do mundo detêm nada menos que a metade da riqueza que a outra metade da população do mundo. Nos países em desenvolvimento, mais de 50% dos jovens na casa dos vinte anos cursam educação superior, número que cai para 3% nos países menos desenvolvidos.

“E o mais chocante ainda: cerca de 17% dos que nasceram há 20 anos em países com baixo índice de desenvolvimento humano já morreram”.

Todos sofremos as consequências, segundo ele, porque a desigualdade associa-se à instabilidade econômica, à corrupção, às crises financeiras, ao crime e à saúde mental e física.

Guterres disse também que a crise climática e a transformação digital são “mudanças sistêmicas” que definirão o século XXI e que anunciam um novo movimento por igualdade racial, direitos humanos e direitos das gerações futuras. Os ativistas climáticos jovens são os que se encontram na linha de frente, explicou.

“Esse movimento rejeita a desigualdade e a divisão, e une os jovens, a sociedade civil, o setor privado, as cidades, as regiões e outros, por trás das políticas pela paz, pelo planeta, por justiça e direitos humanos para todos. Esse movimento já tem feito a diferença.

“Chegou a hora de os líderes mundiais decidirem: vamos sucumbir ao caos, à divisão e à desigualdade? Ou iremos corrigir os erros do passado e seguirmos em frente, para o bem de todos?

“Nós nos encontramos num ponto de ruptura. Mas sabemos de qual lado da história estamos”.

Na imagem: Mulher passa diante de mural em homenagem a Nelson Mandela, na Cidade do Cabo, África do Sul (AP Photo/Nardus Engelbrecht)

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