Este conceito é bastante
utilizado politicamente, ajudando a eleger governos um pouco por todo o mundo.
Com o recurso a estas técnicas, candidatos apagados ou de baixo relevo
conseguem ganhar notoriedade.
António Ribeiro* | AbrilAbril |
editorial
Em meados do século XIX, tornou-se
comum um método de pesca denominado de trolling, que consistia na
utilização de um conjunto de iscos (similares a pequenos peixes em
cardume) com vista a atrair peixes de maior dimensão.
Nos nossos dias, o conceito
alargou-se ao universo cibernauta, mais concretamente no que diz respeito às
redes sociais. De base, o conceito mantém a sua significância, contudo o
contexto é agora completamente diferente.
Um troll é um indivíduo
com pouco relevo social que passa o dia na internet e noutros meios
audiovisuais, manifestando toda a classe de barbaridades com o objectivo de
fisgar peixes maiores e utilizando para o efeito «iscos sangrentos», tais como
ofensa directa, notícias falsas ou discurso de ódio, entre outros.
Assim, quando o «peixe grande»
responde ao «peixe pequeno», este é fisgado, o que leva muita gente a
simpatizar com o «peixe pequeno», situação que se reflecte na dita opinião
pública.
Este conceito é bastante
utilizado politicamente, ajudando a eleger governos um pouco por todo o mundo.
Com o recurso a estas técnicas, candidatos apagados ou de baixo relevo
conseguem ganhar notoriedade.
Na Rússia, por exemplo, a
existência de troll farms (quintas de trolls) tornou-se
amplamente conhecida em 2017 quando vários órgãos de imprensa noticiaram que
estas empresas, assim chamadas, estavam a utilizar sistemas de inteligência
artificial (bot’s) para auxiliar a promoção de várias candidaturas um pouco por
todo o mundo, tal como a de Donald Trump nos EUA.
Em Portugal, podemos dizer com
relativa certeza, que este nível de «profissionalização» ainda é uma miragem,
contudo basta fazer um rápido exercício de memória para encontrar personagens
de vários quadrantes políticos que recorrem a este «método de pesca».
No campo da política, as
mensagens podem ter inclusive um teor bem mais profundo e uma utilidade maior
do que ganhar notoriedade, podendo também ajudar a passar mensagens de uma
forma quase encriptada para subgrupos alvo que sejam capazes de as entender. A
este conceito chama-se vulgarmente dog whistle (assobio de cão).
Dando um exemplo concreto, em
Setembro de 2019 foi organizado o Budapest Demographic Summit III, com o
objectivo de promover os valores da família tradicional caucasiana europeia
judaico-cristã tendo em conta o seu decréscimo populacional na Europa, por comparação
às famílias de outras etnias. É natural que delegações de países com governos
de extrema-direita como Hungria, Polónia, EUA e Brasil tenham comparecido com
elementos de peso de cada um dos seus governos.
É precisamente o tema do racismo,
subentendido nesta cimeira, que está de novo na ordem do dia tendo em conta os mais recentes acontecimentos nos EUA, com a divulgação
das imagens de abuso policial.
A radicalização da discussão
criou um aproveitamento político desmedido, ainda para mais se tivermos em
conta que, nos últimos três meses, para além da pandemia de Covid-19, não
existia espaço para mais nenhum conteúdo.
O espectro da discussão no nosso
país, que é obviamente sempre de salutar, tornou-se tão difuso que, ao dia
de hoje, parece que se centra numa premissa única e exclusiva: perceber se
Portugal é ou não é racista.
Este debate parece misturar de
uma forma quase ardilosa os valores e convicções pessoais de cada um de nós com
o estado social vigente, talvez com o objectivo de obter a seguinte conclusão:
«se eu não sou racista, então não há racismo em Portugal».
Para contrastar, números do Alto
Comissariado para as Migrações (ACM), revelados em 2017, alertam para o aumento
de queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação
Racial (CICDR). Estes números salientam que em 2018 entravam neste organismo,
em média, 26 queixas por mês contra 15 queixas no ano anterior, sendo que 80%
destas incidências são recebidas pelo lesado via digital (correio electrónico e
formulário electrónico), com maior número de ocorrências nos grandes centros
urbanos.
Para além dos dados desta
organização, muitas outras manifestações de racismo podem ser encontradas
fazendo um rápido levantamento na imprensa nacional ao longo dos anos.
Tendo em conta estas e outras
evidências, então por que motivo a discussão do racismo acontece nestes moldes
em Portugal? Qual é então a razão para que se esteja a pautar pelos nossas
atitudes e comportamentos pessoais?
Em 1986, os investigadores Samuel
L. Gaertne e John F. Dovidio apresentaram-nos o seguinte conceito: racismo
aversivo. Segundo eles, este tipo de racismo pode ser caracterizado pelo facto
de os sujeitos que o partilham terem uma matriz de valores igualitária, serem
normalmente favoráveis a políticas sociais de inclusão mas que, apesar disso,
têm sentimentos ou preconceitos negativos sobre os negros.
Basicamente, o que estes autores
defendem é que em circunstâncias normais de segregação, em que a etnia é o
elemento desestabilizador, estes grupos apresentam comportamentos socialmente
aceitáveis, com um conjunto de atitudes de carácter igualitário e inclusivo.
Contudo, quando o contexto que lhes é apresentado não está directamente ligado
a aspectos raciais, optam por comportamentos racistas com justificações de
carácter não racial.
Concretizando, e a título de
exemplo, poderíamos estar a falar de um autarca que opta por separar em duas
escolas alunos brancos e alunos negros invocando para o efeito razões
sócio-culturais.
Assim, percebemos melhor o debate
que está a ter lugar. Não se trata de um grupo que esteja a negar as evidências
mas sim de um grupo que não se vê a si próprio como racista, mas que o é de
forma aversiva, e que fica indignado quando a sua construção pessoal se vê
abalada pelos factos.
Quando este tema apareceu na
agenda do dia de forma mais incisiva, vários «peixes pequenos» tinham
conhecimento desta realidade e sabiam que, lançando esta «isca sangrenta»,
vários elementos do campo progressista a iriam morder com raiva. Perdendo assim
a objectividade discursiva e argumentativa que pede um assunto desta natureza.
Dando apenas aso à sua frustração através, por exemplo, de actos de vandalismo.
Os «peixes pequenos» sabiam que
este tipo de comportamento levaria muitos a simpatizar com eles, quer o
sub-grupo da população que não se julga racista apesar de o ser, quer o
sub-grupo que é verdadeiramente racista e que tem o ouvido treinado para
este «assobio» específico.
Concluímos, facilmente, que não
existe objectividade política nas acções dos «peixes pequenos». Estas não estão
em nada relacionadas com o combate ao racismo, mas sim com a capacidade de
alargar a sua base de apoio e levar cada vez mais pessoas a partilhar das suas
ideias.
Estou certo que mesmo no tempo da
escravatura existia gente solidária e bem intencionada, que condenava a sorte
do povo escravizado enquanto comprava um deles. Mas para combater o racismo não
basta ter boas intenções para com os outros ou lamentar os seus infortúnios, é
preciso ser capaz de o identificar nas coisas mais elementares e lutar
diariamente para que este seja um dia um problema do passado e deixe de
ser definitivamente uma arma de aproveitamento político.
*António Ribeiro é gestor de
logística
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