sábado, 15 de agosto de 2020

Portugal | “Não me peçam calma…” - Mamadou Ba


“Não me peçam calma porque estou cansado dos vossos pedidos. Até quando continuarão a dizer que eu sou igual àqueles que me querem matar?”

Texto exclusivo de Mamadou Ba para o Expresso. “Até quando me vão acusar de ser responsável pelo racismo de que sou vítima? Até quando continuarão a dizer que sou igual àqueles que me violentam e me querem matar? Até quando continuarão a pedir-me para esperar enquanto se vai matando ou ameaçando matar uma parte de mim? Até quando? (...) A única decência que espero dos que insistem em negar ou relativizar o racismo é que tenham a inteligência e a coragem de matar o racismo antes que ele nos mate”

ATÉ QUANDO?

“If we must die, O let us nobly die,
So that our precious blood may not be shed
In vain; then even the monsters we defy
Shall be constrained to honor us though dead!”
Claude Mckay

Nos últimos anos houve milhares de queixas por discriminação racial junto do órgão competente, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, sem contar com as centenas de casos de racismo que motivaram queixas nos tribunais. Algumas dezenas destes casos suscitaram mesmo um enorme debate público no país. Vou lembrar apenas alguns dos que suscitaram discussão pública.

Em fevereiro de 2015, dezenas de agentes policiais torturaram seis cidadãos negros na esquadra de Alfragide e, enquanto agrediam e torturavam, os agentes proferiam insultos racistas contra as vítimas.

Em fevereiro de 2107, a comunidade cigana de Santo Aleixo da Restauração, no concelho de Moura, foi alvo de ameaças de morte pintadas em paredes da povoação, com suásticas desenhadas nas paredes, ataques incendiários que não pouparam casas, animais, viaturas automóveis e até o edifício da igreja onde as famílias realizavam o culto religioso. À moda dos pogroms nazis.

No mesmo mês de fevereiro de 2017, estalou também a polémica sobre a segregação escolar com a existência de uma escola de Famalicão em que os alunos eram todos de etnia cigana.

Em julho de 2017, o presidente da junta de Freguesia de Cabeça Gorda, no concelho de Beja, recusou o enterro e o velório na casa mortuária de um membro da comunidade cigana.

Em janeiro de 2018, um grupo de pais e mães de crianças do 4º ano da Escola Básica Major David Neto, em Portimão, denunciam maus-tratos, racismo, xenofobia e discriminação contra os seus educandos.

Em 2108, na noite de São João, Nicol Quinayas foi agredida pelo segurança de um autocarro dos transportes públicos do Porto. A vítima e quem estava com ela relataram insultos racistas. Houve também, na altura, um grande debate na sociedade portuguesa.

Em janeiro de 2019, a família Coxi, moradora no bairro do Vale de Chícharos, vulgarmente conhecido por Jamaica, foi selvaticamente agredida por agentes da PSP.

Em dezembro de 2019, o estudante cabo-verdiano Luís Giovani Rodrigues foi espancado até à morte, em Bragança. Os contornos das agressões e da sua morte foram ocultados quase durante uma semana.

Em janeiro de 2020, Cláudia Simões foi agredida pelo agente Carlos Canha numa paragem de autocarro na Amadora e, posteriormente, na viatura que a conduziu à esquadra, porque a sua filha de oito anos não trazia o passe consigo.
Em fevereiro de 2020, Moussa Marega foi alvo de continuados urros racistas dos adeptos de Guimarães. Depois de ter enfrentado sozinho os insultos, abandonou o campo num enorme gesto de coragem.

Em junho de 2020, Evaristo Martinho assassinou premeditadamente o ator negro Bruno Candé Marques, em plena luz do dia numa rua de Moscavide, após três dias de insultos racistas e ameaça explícita de morte.

A eleição de três deputadas negras, vindas do movimento social, com percurso na luta contra o racismo, ao mesmo tempo que a eleição de um deputado assumidamente racista, tornou mais visível a expressão do racismo. O debate tornou-se mais desavergonhado e insano, com a irrupção de uma torrente de ódio no espaço público, através das redes sociais, da comunicação social e da disputa política. Enquanto a escalada ia crescendo, o racismo ordinário foi-se alcandorando no deputado racista como caixa de ressonância das manifestações até agora subterrâneas.

A crescente investida terrorista da extrema-direita no espaço público, a partir de junho, com um raide de “pichagens” racistas em vários edifícios e murais na área metropolitana de Lisboa, com ameaças explícitas de violência e morte, estão em linha com o curso da escalada. Esta escalada culminou com o ataque à sede do SOS, a parada ku klux klan e as ameaças de morte a ativistas e eleitos. No que toca a um claro incitamento ao ódio e à violência, as últimas ameaças já ultrapassam todas as linhas vermelhas da disputa política. E são a consequência natural da escalada racista que André Ventura tem protagonizado, dando legitimidade à ação terrorista dos grupos neonazis. A frouxidão com que o arco partidário parlamentar tem lidado com a agenda racista de André Ventura, seja por taticismo político, seja por omissão ou por adesão, criou as condições para a afirmação destemida do racismo no espaço público. André Ventura, que instalou o discurso racista da rua na Assembleia da República, e todos aqueles que, por omissão, adesão ou silêncio optam por não o enfrentar ou por alimentá-lo, são imputáveis dos desmandos terroristas da extrema-direita. Também os mercenários financeiros da elite económica nacional que custeiam o seu projeto assassino da democracia responderão pela desgraça que significa a ascensão do fascismo e do racismo.

Aliás, torna-se impossível varrer o racismo para baixo do tapete. A sucessão de casos de violência racista tem contribuído para levantar o véu sobre o carácter estrutural do racismo na sociedade portuguesa. Já não são sustentáveis a negação e a desconversa sobre a sua existência e as suas consequências que, por vezes, se revelam trágicas, como foi recentemente no caso do assassinato do ator Bruno Candé Marques. Insistir na negação do racismo ou relativizar a sua dimensão e consequências na vida de milhares dos nossos concidadãos é não assumir a responsabilidade de defender a democracia, tornando-nos coletivamente cúmplices da ameaça que paira sobre ela. Não há vida coletiva nem projeto de sociedade democrático viável em que uma parte dos seus membros é sistematicamente violentada e atirada para fora do tecido nacional. Infelizmente, perante todas as evidências, ainda há quem continue a revelar uma extraordinária pequenez ética e uma desconcertante desonestidade política ao insistir sistemática e histericamente em equiparar o antirracismo ao racismo. Alguma destas pessoas que pedem calma, contenção, sensatez às vitimas de racismo, foi agredida verbal ou fisicamente por ser negra ou cigana no espaço público?; foi impedida de entrar num espaço público, impedida de alugar uma casa, ter acesso a um emprego ou ser paga para a mesma função com menos um terço do salário que o seu colega de trabalho?; foi perseguida e a sua vida privada devassada até exaustão?; foi alvo de chantagem ou perseguição ad hominem permanente e sistematicamente?; sofreu alguma emboscada da extrema-direita em plena via pública?; foi obrigada a mudar de casa por temer pela sua segurança e a da sua família?; teve de mudar de telefone ou conta numa rede social por já não suportar receber insultos e ameaças de todo o tipo, incluindo de morte? Alguma destas pessoas?

É por isso que, perante a ação terrorista da extrema-direita, a exigência de sensatez dos que acham que falar do racismo é fomentá-lo se torna insuportável e soa a indiferença perante o sofrimento e a violência racista. Há muito que os neonazis e os assassinos racistas, como aquele que matou Bruno Candé Marques, se alimentam desta indiferença e do relativismo dos discursos que se querem “sensatos” para não enfrentar o racismo. A calma e contenção e/ou o silêncio perante a violência racista é uma cumplicidade a que nenhum democrata se pode prestar. Enquanto a valorização moral e ética do racismo não tiver o mesmo peso que as outras violências que ofendem a dignidade humana, continuaremos a ter alheamento institucional e pouco investimento político no combate contra o racismo.

Não me peçam calma nem contenção porque estou cansado dos vossos pedidos. Até quando me vão acusar de ser responsável pelo racismo de que sou vítima? Até quando continuarão a dizer que sou igual àqueles que me violentam e me querem matar? Até quando continuarão a pedir-me para esperar enquanto se vai matando ou ameaçando matar uma parte de mim? Até quando? Ou ainda não perceberam que qualquer morte ou ameaça de morte racista é uma morte da própria ideia dos valores de humanidade que tanto gostam de apregoar? Só a condescendência com a morte da própria ideia de humanidade pode levar uma comunidade política a não se sentir ela própria ameaçada com ameaças de morte por ódio racial. Portanto, a única decência que espero dos que insistem em negar ou relativizar o racismo é que tenham a inteligência e a coragem de matar o racismo antes que ele nos mate. Para mim como para a esmagadora maioria das pessoas racializadas, o ar está cada vez mais irrespirável e já nos é insuportável ver a sociedade e as suas instituições a assobiarem para o lado perante o nosso sofrimento e dor. Temos sobrevivido porque nunca nos faltou coragem para desapertar o sufoco do racismo que asfixia as nossas vidas. Assim continuaremos, custe o que custar. Falta saber até quando continuará a faltar coragem à sociedade e às suas instituições para enfrentar o monstro. Ou matamos o monstro ou ele matar-nos-á a todos.

Para tanto, se quisermos um futuro coletivo comum, a escolha é só uma: defender a democracia enquanto é tempo, enfrentando com determinação a barbárie da extrema-direita.

Expresso | MB - 14-08-20

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