sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Uma questão qualquer


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

O marxismo cultural é lixado. "Por uma questão qualquer de angariação de fundos", André Ventura (AV) reduz a detenção de Steven Bannon, guru norte-americano da extrema-direita à escala global, a uma perseguição miúda e desprezível. "Por uma questão qualquer", é uma minudência ter sido acusado do desvio de milhões de dólares da iniciativa de recolha de fundos para a construção do muro na fronteira entre os EUA e o México, alimentando as suas redes políticas extremistas, a sua vida pessoal de luxos e a de outros comparsas de crime e castigo.

O ex-conselheiro e director de campanha de Donald Trump em 2016, acusado de fraude e lavagem de dinheiro, enfrenta agora uma pena de prisão que pode ir até 20 anos. A extrema-direita já quase que aproveita para alegar orfandade. Trump, candidato, afasta-se dele como se afasta das vacinas. Não tardará a alegar desconhecimento. Com carácter súbito, imediato e preventivo, AV vai avisando que "esperemos que nunca aconteça cá, agora que o Chega começa a incomodar tanto". AV acredita, talvez porque Deus esteja no comando, que a corrupção não chega aos amigos e financiadores de um partido que, na altura, recém-criado-à-caça-de-assinaturas-e-ainda-sem-nome, inundou as ruas nas eleições europeias com cartazes e outdoors. Se acontecer cá e a ele, já se sabe, a culpa será do poder que o persegue. Será "uma questão qualquer", certamente.

Steven Bannon não é o único. Steven Bannon é "apenas" a sétima pessoa próxima de Trump a ser detida ou acusada de crimes desde que tomou posse como presidente dos EUA. Nomes como Paul Manafort, George Papadopoulos, Michael Cohen, Roger Stone, Rick Gates e Michael Flynn fazem parte duma lista de especialistas em corte e costura de crimes de fraude, conspiração, lavagem de dinheiro, adulteração de testemunhos, obstrução à justiça e falsas declarações. De todos eles, só Michael Flynn ainda não está condenado. Donald Trump, porque uma desgraça nunca vem só e contra a sua vontade, é intimado a entregar as suas declarações fiscais dos últimos oito anos. A 75 dias das eleições presidenciais norte-americanas, a notícia da detenção de Bannon fará com que muitos construtores de muros passem a esconder os tijolos. Um dia bom para o armazenamento de noção.

Alegar desconhecimento passa então a ser uma ciência de fuga. AV, que assistiu impávido e sereno a várias saudações nazis nos comícios do Chega, desconhece que o líder da "Resistência Nacional" - que desfilou com máscara e tochas em frente ao SOS Racismo - pertence ao seu partido. No entretanto, ameaça com sanções disciplinares e diz estar a ser perseguido. Não deixaria de ser irónico que, à semelhança das doações racistas para um muro desprezível (que nasceu para ser pago pelos mexicanos) que levam à detenção do maior ideólogo e financiador da extrema-direita, fossem os nazis e racistas que AV tão irresponsável e ferozmente colerizou, a serem o principal factor de detenção e alarme para um projecto político tão claramente abjecto.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista

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