Por baixo de todo o barulho e do
cultivo do ódio, a proposta política do Chega é a menos antissistema que se
possa imaginar: tirar aos pobres para dar aos ricos
Alexandre Abreu | Expresso
Não é que seja uma surpresa, pois
a extrema-direita sempre esteve historicamente alinhada com os interesses das
elites económicas e financeiras, mas a proposta de revisão constitucional
anunciada recentemente pelo Chega terá talvez o mérito de tornar mais claro
aquilo que a alguns talvez custe a ver. Propõe-se este partido eliminar a
progressividade do sistema fiscal, caminhando no sentido de uma taxa única de
imposto (segundo dizem, de 15%) independente do nivel de rendimento. É, a par
da Iniciativa Liberal, o único partido português que o defende.
As consequências de uma tal
alteração, caso fosse aplicada, são fáceis de perceber. Por um lado, diminuiria
a receita fiscal, debilitando os serviços públicos e depauperando ainda mais a
escola pública e o serviço nacional de saúde. Por outro lado, aumentaria
fortemente a desigualdade, pois os mais pobres, que pagam menos de 15% de IRS,
passariam a pagar mais impostos do que pagam, e os mais ricos, que em geral
pagam hoje em dia mais de 15%, passariam a pagar muito menos. A proposta
política do Chega é por isso uma espécie de Robin dos Bosques ao contrário:
tirar aos mais pobres para dar aos mais ricos. Depois de nas eleições de 2019
ter já avançado com propostas no sentido da eliminação da provisão pública de saúde
e educação, o Chega deixa claro ao que vem.
As formas mais eficazes de
combater a desigualdade excessiva são também elas bem conhecidas: serviços
públicos universais e gratuitos; um mercado de trabalho forte e adequadamente
regulado; impostos fortemente progressivos. Em todos estes domínios, o Chega
está ao lado da Iniciativa Liberal e está ao lado dos interesses das elites que
não precisam de serviços públicos para si e querem mercadorizar esses setores
para assegurar lucros privados, dos ricos que querem pagar menos impostos e dos
empregadores que pretendem mercados de trabalho mais desregulados que permitam
intensificar a exploração.
A argumentação do Chega está
entre o hipócrita e o risível: alegadamente, a progressividade do sistema
fiscal penalizaria “quem mais trabalha”. Ficamos assim a saber que o Chega
acredita, ou assim quer fazer-nos crer, que operários, empregados dos serviços,
funcionários administrativos e auxiliares, agricultores, pescadores e muitas
outras pessoas que auferem ordenados baixos e médios trabalham relativamente
pouco, enquanto as elites económicas e financeiras trabalham muito. Como se os
rendimentos mais elevados fossem rendimentos de trabalho e não de capital e como
se a estrutura de rendimentos do nosso país não refletisse a desigualdade
hereditária e os conhecimentos privilegiados mais do que o esforço e o volume
de trabalho.
O exemplo do Chega ilustra bem a
distinção entre os populismos
diádico e triádico, na útil formulação sugerida por John Judis: o primeiro,
de esquerda, toma o lado das classes populares contra as elites económicas e
financeiras; o segundo, de direita e exemplificado pelo Chega, propõe-se tomar
o lado do povo contra as elites intelectuais e políticas mas mobiliza-se
principalmente contra um grupo terceiro (os imigrantes, os mais pobres, os
beneficiários de apoios sociais, etc) aos quais se atribui as culpas pela
degradação da situação social, isolando as elites económicas e financeiras da
contestação social e preservando na prática o sistema.
Quando olhamos mais atentamente
para a proposta económica do Chega, vemos por outro lado porque é que este
partido é adequadamente classificado como de extrema-direita e não de direita
antissistema: tem tanto de cultivo do ódio e da boçalidade como de perfeito
alinhamento com os interesses dominantes.
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