segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Portugal | Marcelo e a tabuada dos dez


Paulo Baldaia | Diário de Notícias | opinião

Marcelo Rebelo de Sousa é um belíssimo analista, um ótimo Presidente da República a quem até Ana Gomes dá nota positiva na hora de avaliar o mandato, mas tem o mais comum dos defeitos num político, a vaidade. Só por vaidade se pode entrar no quarto ano do mandato em perda na generalidade das sondagens e mesmo assim embandeirar em arco, garantindo, em entrevista à TVI, que os seus "níveis de popularidade são tão altos que nenhuma queda o leva à depressão".

O espanto com a popularidade de outras galáxias conseguida por Marcelo foi generalizado e eu imagino que a excitação criada na maioria dos seus colaboradores o tenha contagiado. Só isso justifica que um político tão experiente como ele tenha começado a alimentar tão precocemente o sonho de bater o recorde conseguido por Mário Soares. Não teria havido nenhum problema se o sonho tivesse ficado com ele e com um ou outro amigo com quem quisesse desabafar sobre a ansiedade que o tinha tomado. O persistente número (70% de Soares em 1991) passou a ser um objetivo não disfarçado e confessado pelo próprio em inúmeras conversas. Como a política é, sobretudo, gestão de expectativas, Marcelo tinha cometido o erro fatal.


Bem lembrou António Costa, quando quis colar-se a Marcelo para disfarçar males da governação, que não há português que tenha dúvidas sobre duas coisas. A primeira é que Marcelo vai recandidatar-se e a segunda é que vai ganhar. Só que não é isso que lhe vai ser cobrado. A gabarolice de que era capaz de bater o recorde de Soares, permitida na altura pela desistência do único português (Cavaco Silva) que conseguiu quatro maiorias de votos em eleições nacionais, é o fantasma que o persegue. O problema é que a campanha de Marcelo não pode vir a resumir-se a baixar as expectativas para as poder superar.

Por todo o lado, há gente a fazer contas e a imaginar quanto vale cada um dos desafiantes no passeio de Marcelo, que até há pouco tempo todos imaginávamos triunfal e sem grande história. Não sendo candidata apoiada pelo PS, Ana Gomes valerá entre 10% e 2x10%. Marisa Matias conseguiu nas últimas presidenciais 10% e existe a expectativa de que os possa repetir. O PCP também quer ter candidato e o dobro de um desastre chamado Edgar Silva (4% nas últimas presidenciais) é o patamar mínimo da dignidade. Falta ainda o elefante no meio da sala, a quem várias sondagens já colocam na fasquia dos dois dígitos e que tem a pretensão de ser o segundo mais votado, forçando Marcelo a uma segunda volta.

Aqui chegados, quando faltam quatro meses para as eleições, parece tão improvável o candidato do Chega ser segundo e forçar Marcelo a uma segunda volta como o Presidente ser entronizado com um recorde da democracia. Nas contas do Chefe do Estado, dez mais dez, mais dez, mais dez deixam muito pouco espaço para continuar a sonhar com o resultado de Soares. Veremos que campanha é capaz de fazer para ganhar com toda a clareza. Até lá, a missão de Marcelo é convencer a opinião publicada de que não tem responsabilidade nenhuma na meta inatingível que alguém, talvez um anjo entrando sem autorização nos sonhos presidenciais, colocou no seu caminho. Podem já começar a lembrar que Cavaco foi reeleito com pouco mais de 50% dos votos.

A verdade é que, muito mais importante do que a dimensão da sua vitória, o grande trabalho de Marcelo é não permitir que um extremista, racista e xenófobo lhe roube uma percentagem significativa dos votos da direita. A história julgará o atual Presidente da República, eleito pelo centro-direita, muito mais pela sua capacidade de contribuir para travar a ascensão de um populismo perigoso, divisionista e contra a Constituição do que pela percentagem de votos conseguida na reeleição. Se Ventura chegar aos 10%, Marcelo, mesmo ganhando, começa derrotado.

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