#Publicado em português do Brasil
Crônica da macroeconomia mainstream,
do pós-Guerra à pandemia. Como ela deixou de ser crítica e se rebaixou a uma
“governança” automática, crente nos mercados e contrária às maiorias. Por que é
impotente até para salvar o capitalismo
Eleutério Prado, no A Terra é Redonda | em Outras Palavras | Imagem: Gaspare
Traversi, A operação (1753-54)
A macroeconomia dominante não
quer ser mais do que uma caixa de ferramentas para serem usadas na governança
do capitalismo. E esse caráter está presente na maneira que tem sido
apresentada. É isto o que mostra, por exemplo, um artigo recente em The Economist intitulado A
pandemia da convid-19 está forçando um repensar da macroeconomia.
Como se sabe, o saber sobre o
funcionamento do sistema econômico adotou esse nome depois que John Maynard
Keynes publicou a sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, em
1936. Se esse autor não desprezou o caráter performativo da linguagem teórica
criada, não se pode acusá-lo de falta de realismo científico, de despreocupação
com a compreensão do capitalismo. Dada a urgência do momento histórico, julgou
que era preciso apreender os processos econômicos reais. Aqui se quer mostrar,
entretanto, que a macroeconomia contemporânea, pós-Segunda Guerra Mundial,
adquiriu um caráter centralmente manipulatório: por um lado, pretendeu fornecer
instrumentos de política econômica para a governança do sistema, por outro,
quis conformar as mentes dos economistas para fazê-los pensar de um modo
automático, adequado à realização de objetivos que lhes são prescritos. Alguns,
poucos, resistem!
Mas, afinal, o que é governança?
“Governança é a automação do pensamento, a automação da existência social.
Governança é a informação sem significado, o domínio do inescapável” (Franco
Beraldi, em Asfixia – Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem).
Para compreender a natureza da
macroeconomia e como ela, na forma de um saber técnico e manipulatório, foi
mudando ao longo do período que vai de 1950 até o presente, os três gráficos
acima são fundamentais: o primeiro mostra a evolução de uma medida da taxa de
inflação, o seguinte apresenta o evolver da taxa de lucro e o terceiro indica
as taxas de crescimento anuais do PIB. A variável taxa de lucro – note-se – não
costuma aparecer na análise macroeconômica dominante ou ortodoxa, mas ela é
crucial.
O foco dessa nota recairá apenas
na economia norte-americana já que ela continua sendo, por enquanto, a economia
capitalista mais importante. Como se sabe também, os Estados Unidos são a
principal oficina na qual se criam as ferramentas da macroeconomia, as quais se
espalham, então, para os cursos de Economia do resto do mundo.
A política econômica orientou-se
pelo keynesianismo aproximadamente entre 1940 e 1978, mas não com base em sua
formulação original, mas se apoiando de modo importante num rearranjo teórico
que foi denominado de “síntese neoclássica”. Eis que as teses desse marcante
economista foram reescritas na forma de um modelo de equilíbrio geral
simplificado, com dois mercados – de bens e de moeda –, que ficou conhecido
como modelo IS-LM. De qualquer modo, o objetivo da política econômica nesse
período foi manter alto o nível de emprego por meio principalmente de políticas
fiscais expansivas. Confiando no papel contracíclico da atuação do Estado, não
se temia fazer déficits orçamentários porque se acreditava na própria
capacidade dessa política de criar as condições para o crescimento econômico.
Entretanto, a política econômica
keynesiana começou a sofrer ataques dos economistas neoliberais, já a partir do
final dos anos 1960. Eles serão vitoriosos apenas no final da década dos anos
1970. Como se pode ver no gráfico acima, a partir do final da década dos anos 1960, a taxa de lucro
começou a cair ao mesmo tempo em que a taxa de inflação começou a subir. Ora, esse
resultado não era esperado pela macroeconomia vigente que raciocinava com a
chamada Curva de Phillips. Baseada em observações empíricas, essa curva
mostrava existir uma relação inversa entre a taxa de desemprego e a taxa de
inflação. Assim, a inflação seria mais alta nas conjunturas com baixo
desemprego e mais baixa quando se observavam altas taxas de desemprego.
O novo fenômeno – denominado de
estagflação – mostrou que as taxas de desemprego e inflação cresciam juntas,
contrariando assim uma fórmula da governança macroeconômica então empregada.
Esse campo, após as análises pertinentes de Keynes, passara a se orientar
apenas pelo instrumentalismo teórico e, assim, ultrapassara mesmo os cânones da
economia vulgar. Transformara-se, na verdade, em um “saber” matematizado,
técnico e manipulatório que pouco se preocupava em se constituir como uma boa
representação do mundo real. A estrutura “teórica” desse método fora
construída, como se sabe, por León Walras na abertura do último quartel do
século XIX: para ele, “a economia política pura é uma ciência em tudo
semelhante às ciências físico-matemáticas”.
A macroeconomia herdada se tornou
assim inconveniente como instrumento de política econômica: a inflação
renitente denunciava que havia uma forte disputa entre capitalistas e
trabalhadores pela apropriação da renda. Ora, essa catraca que puxava preços
para cima foi vista como resultado da ação do governo que insistia em elevar o
nível da atividade econômica. Paul Vocker, havendo assumido a presidência do
banco central norte-americano, em 1979, ressuscitou então o monetarismo de
Milton Friedman, que, como se sabe, está baseado na ideia de que a inflação é
causada por excesso de emissão monetária. A macroeconomia, assim, deixou de
usar a governança keynesiana, passando a empregar uma nova, mais adequada para
abafar o conflito distributivo entre trabalhadores e capitalistas, em
detrimento especialmente dos interesses dos primeiros.
A política econômica implantada
consistiu em conter a expansão do dinheiro, provocando, assim, uma recessão e,
em consequência, elevação do desemprego e das quebras das empresas mais fracas,
pouco competitivas. Os economistas monetaristas, militando já no campo do
neoliberalismo, argumentaram no período que se tornara necessário substituir a
preocupação com a equidade distributiva por outra voltada para eficiência
econômica, ou seja, para os interesses restritos dos capitalistas. Na verdade,
o rompimento com o keynesianismo envolvia tanto um combate ao sindicalismo
quanto um esforço persistente para rebaixar os salários reais. O objetivo não
declarado consistia em elevar as taxas de lucro obtidas pelas empresas. Como o
gráfico acima mostra, essa meta implícita foi bem sucedida. Eis que a atividade
econômica do capital pode prosperar por cerca de uma década e meia.
Ora, o que explica a estagflação
é a forte queda da taxa de lucro ocorrida no período sob o regime de dinheiro
puramente fiduciário. Quando a rentabilidade cai muito, as empresas
capitalistas, ao invés de responder aos impulsos da demanda produzidos pelo
Estado, com mais produção, elevavam os preços para tentar restaurar a taxa de
lucro precedente. Como os sindicatos tinham se fortalecidos no período
keynesiano, eles demandavam e obtinham aumento dos salários nominais. Tentavam,
assim, impedir a queda do poder de compra de seus ganhos em dinheiro. A resultante
desse processo foi que as taxas de inflação atingiram o nível de dois dígitos
nos Estados Unidos.
A governança estritamente
monetarista, entretanto, mostrou-se inconveniente depois que fez o trabalho
sujo de derrotar os trabalhadores. Tornou-se necessário substituí-la por uma
nova, mais adequada ao momento histórico. De meados dos anos 1980 até
aproximadamente 1997, com a conservação da taxa de lucro média em níveis mais
altos, a economia capitalista norte-americana prosperou por meio da chamada
“grande moderação”.
Durante um período de cerca de
vinte anos ou pouco menos, as principais variáveis econômicas, como a taxa de
elevação do PIB, a taxa de inflação, a taxa de desemprego etc. perderam
volatilidade. Ora, essa situação permitiu o uso de uma combinação eclética das
governanças keynesiana e monetarista com o objetivo de manter a taxa de
inflação ao redor de 2% ao ano. Eis que os realinhamentos de preços e salários
se tornam mais fáceis quando o nível dos preços está crescendo moderadamente.
Por exemplo, é assim que os eventuais ganhos nominais de salários são corroídos
sistematicamente pelo crescimento dos preços das mercadorias que entram no
consumo da classe trabalhadora.
O monetarismo continuou tendo
alguma influência na política econômica. Ele deu força, por exemplo, à tese de
que os bancos centrais deveriam se tornar independentes. Mas o keynesianismo
manteve também certa influência já que não se desprezava o objetivo de manter o
emprego em nível elevado, o que sempre interessa aos capitalistas quando a taxa
de lucro está elevada. A busca de uma meta flexível de inflação era feita pelo
manejo da taxa de juros de curto prazo, considerada agora como a variável chave
no controle do investimento e do consumo. O impulso da demanda agregada e,
assim, o nível do desemprego, podia assim ser controlado: ao elevar, por
exemplo, a taxa de juros apertava-se as margens de lucro das empresas;
tornava-se mais caro o crédito tanto para as empresas quando para os
consumidores. A coisa se invertia quando se tratava não de desaquecer, mas de
aquecer o funcionamento do sistema econômico.
No período da “grande moderação”,
como era de se esperar, prosperou de novo a velha crença na capacidade do mercado
de manter um alto nível de atividade econômica como menor intervenção do
governo. Na verdade, a crença – implícita ou explicita – na Lei de Say, segundo
a qual a oferta cria a sua própria demanda, saiu de novo do armário. Essa
vulgaridade é conveniente em certos momentos históricos; ela já reaparecera nos
anos 1970 com o advento da “estagflação”. Consiste num dogma conveniente para
negar que governo possa influir no nível de emprego sempre que isso seja do
interesse dos capitalistas: afirma peremptoriamente que os mercados produzem o
pleno-emprego, de modo espontâneo e com mais eficiência.
Foi nessa década que nasceu a
macroeconomia das expectativas racionais baseada em sofisticados modelos de
equilíbrio. Esse aparato matemático, ao mesmo tempo em que esconde a anarquia
inerente ao sistema capitalista, permite a sua manipulação. Se Keynes admitira
que uma incerteza radical afetava o comportamento dos investidores, os
macroeconomistas da escola novo clássica passaram a sustentar que eles agiam
com base num risco plenamente calculável. Para tanto, introduziram em seus
modelos a hipótese de que esses agentes eram capazes de fazer cálculos de
expectativas extremamente complexos, tão improváveis como os próprios modelos,
modelos estes cujos resultados os próprios capitalistas já sempre conheciam.
O renascimento da plena confiança
no funcionamento do sistema originou, também, a escola dos ciclos econômicos
reais. Ao invés de explicar as flutuações econômicas mediante choques de
demanda ou monetários, o novo instrumento figurava que a lógica dos ciclos era
endógena; em suas fases de ascensão ou de queda, a economia continuava sempre em equilíbrio. Dessa
perspectiva, eventuais ações corretivas do governo, tornavam-se em princípio
inadequadas e, mesmo, prejudiciais.
A partir de 1997,
aproximadamente, a taxa de lucro começou a cair, vindo a se estabilizar num
nível bem mais baixo daí em diante. Observou-se , então, uma tendência à
redução da taxa de crescimento da produção e, em consequência, passou-se a
duvidar mais uma vez do desempenho futuro da economia norte-americana. A
demanda agregada passara a crescer menos porque as empresas não encontraram
grande estímulos para investir já que as expectativas de rentabilidade estavam
deprimidas. O crédito ao consumo, que compensou por um tempo a queda dos
salários reais, também encontrou limites no próprio aumento do endividamento
das famílias. Como consequência das políticas neoliberais implementadas a
partir de 1980, houve um forte aumento de concentração da renda e da riqueza
nos países desenvolvidos, em particular, nos Estados Unidos. E isto, como se
sabe, não favorece o consumo.
Com a falta de oportunidade de
investimentos lucrativos na esfera da produção, acentuou-se a criação de
capital fictício na esfera financeira já na década dos anos 1980. Em
consequência, o tamanho do endividamento dos governos, empresas e famílias
quase não parou mais de crescer. Com a crise de superacumulação de 2007-09, uma
tendência à estagnação se manifestou outra vez na economia norte-americana. Os
economistas ortodoxos, que ignoram a lógica da acumulação de capital por
cegueira ideológica, passaram então a afirmar que o desejo de poupar passou a
superar o desejo de gastar, que a economia norte-americana entrara por isso
numa fase de estagnação secular.
A resposta da política econômica
consistiu em rebaixar ao máximo a taxa de juros e em expandir enormemente a
massa de dinheiro em circulação – com enorme redução de sua velocidade.
Configurou-se, assim, o que ficou sendo chamado de “relaxamento monetário”. Do
ponto de vista da macroeconomia de equilíbrio, que só costuma ver perturbação
nesse equilíbrio devido a “choques externos” eventuais, uma nova anomalia
tornou-se patente: a taxa de desemprego podia diminuir, mas a inflação não
voltava a crescer.
Na verdade, a razão da conjunção
explicitada nesse “paradoxo” é simples, ainda que não seja reconhecida pelas
correntes ortodoxas: como a taxa de lucro manteve-se em níveis baixos no
período, o estímulo para investimento mostrou-se fraco; diante da debilidade da
demanda efetiva, os capitalistas se vêem forçados a aumentar os níveis da
produção, ao invés de elevar os preços, mesmo que possam fazê-lo – mesmo se
acham que as margens de lucros estão deprimidas. Se o governo optasse por
elevar fortemente a demanda efetiva, a estagnação se transformaria em
estagflação.
As tensões não resolvidas da
economia norte-americana levaram a eleição de Donald Trump, no final de 2016,
um extremista de direita que resolveu reverter em parte o processo de
globalização, iniciado nos anos 1980. Procurou, assim, transformar as tensões
internas em externas e, para tanto, atritou com a União Europeia, México e
Canadá, deu partida no atual conflito sino-americano. E esse conflito, como já
se sabe, vai marcar a geopolítica nos próximos anos, criando assim mais
dificuldades para a expansão do capital. A luta de cada nação para ampliar as
suas exportações mediante restrições comerciais e financeiras diminui o mercado
internacional para todas elas.
Em 2020, como se sabe, sobreveio
a pandemia do novo coronavírus que rebaixou ainda mais as expectativas de
investimento, reduziu fortemente a demanda de consumo devido ao confinamento,
desestruturou as cadeias produtivas nacionais e internacionais. Com taxas de
juros próximas de zero, acima ou abaixo desse patamar, a política monetária
perdeu a sua suposta capacidade de influenciar o nível da atividade econômica.
Sem que a teoria econômica tivesse tempo de mudar, a política keynesiana de
elevação do gasto público entrou novamente em ação. Os programas de
sustentação da renda dos mais pobres não se preocupam, entretanto, nem com a
sobrevivência nem com o sofrimento deles. Trata-se, isto sim, de um modo
indireto de impedir uma quebra muito significativa de empresas em face da queda
extraordinária da demanda. Se o relaxamento monetário visava salvar o sistema
financeiro do colapso, agora, a política fiscal expansiva mostrou-se necessária
para salvar as indústrias produtoras de mercadorias.
Diante da perspectiva de um
grande desastre ou de uma longa depressão, os macroeconomistas do sistema não
sabem bem o que fazer agora e nós próximos anos. Alguns acham que é preciso
continuar imprimindo dinheiro para estimular o crescimento e impulsionar a
inflação. Mas como mostrou o caso do Japão, essa tática de governança não vai
provavelmente funcionar; ela apenas manterá as “empresas zumbis” à tona.
Outros acham que os Estados
nacionais devem continuar gastando mesmo se as dívidas públicas já
ultrapassaram 120% do PIB, globalmente. Ora, isso vai obrigar a manutenção das
taxas de juros próximas de zero indefinidamente. Como isso é improvável devido
aos movimentos dos capitais em busca de remuneração, calotes ou monetizações da
dívida pública podem aparecer no horizonte.
Outros ainda acreditam que é
possível manter as taxas de juros negativas por longo tempo. Há armadilhas
também aqui: os bancos centrais ficarão prisioneiros da alta liquidez, muitos
poupadores vão preferir manter o dinheiro sob o cobertor, os bancos não
desejarão emprestar etc.
A incerteza é grande: as dívidas
públicas estão crescendo, as fissuras no sistema financeiro estão aparecendo, a
liquidez está aumentando desmedidamente, a quantidade de empresas zumbis – que
mal conseguem pagar o serviço de suas dívidas – continua a se elevar.
Ora, a taxa de lucro não dá sinais de que possa aumentar sem uma grande
destruição do capital fictício e do capital industrial acumulados nas últimas
décadas – modo intrínseco por meio da qual o sistema capitalista supera as suas
crises de superacumulação.
É por causa disso que o artigo
citado na introdução deste escrito termina dizendo que um grande número de
economistas suspeita que os profundos problemas da economia capitalista não
poderão ser resolvidos sem uma reforma estrutural. Uma solução que eles não
desejam, mas que seria boa para grande maioria da população, é radicalizar a
democracia, de tal modo que possa socializar progressivamente os meios de
produção, superando o capitalismo que já está no seu ocaso.
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*Com gráficos a consultar no
original de Outras Palavras
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