João Melo | Diário de Notícias |
opinião
Portugal é há muito um país
euro-africano não assumido. Vozes como a da historiadora e professora Isabel de
Castro Henriques, que estudam as marcas africanas na sociedade portuguesa, não
são evocadas devidamente. "A presença africana é a mais importante que
temos em Portugal, em termos numéricos e de perenidade, constância. Ficou
sempre, marcando a sociedade", afirmou ela há quatro anos, em entrevista a
este jornal.
O livro O Património
Genético Português, de autoria de Luísa Pereira (investigadora) e Filipa
Ribeiro (jornalista), é elucidativo: os genes africanos (do norte e da região
subsariana) estão presentes na composição da população portuguesa desde o
século VII, com as inevitáveis variações e oscilações ditadas pela história.
Para resumir, os berberes e os árabes do norte de África chegaram primeiro,
enquanto os africanos originários da região subsariana começaram a chegar em
meados do século XV.
A presença em Portugal de
indivíduos da África subsariana está associada ao fenómeno da escravatura. O
país do "colonialismo amigável" foi, afinal, aquele que mais
"importou" escravos para a metrópole, sobretudo entre meados dos
séculos XV e finais do século XVIII. No século XVI, a percentagem de escravos
no sul de Portugal era de dez por cento da população. Mas os escravos negros
estavam espalhados por todo o país. O etnólogo e poeta angolano Arlindo
Barbeitos, na sua impressionante tese "Angola-Portugal: Entidades Coloniais
Equívocas", identifica a sua presença, por exemplo, nas vindimas do norte
do país.
Sim, Portugal tem uma inegável
porção negra dentro da sua população e da sua história. O discurso de
extrema-direita, que acusa as vozes antirracistas de supostamente tentarem
desvirtuar a história de Portugal, está, pois, equivocado: esse discurso é que
pretende negar a história, ao rasurar a secular presença africana (e negra) em
Portugal, cujas consequências é impossível desmentir.
O fim da colonização e a
emigração para Portugal de milhares de cidadãos das suas antigas colónias,
muitos deles negros, em períodos sucessivos (por força da descolonização em si
ou dos conflitos e guerras que tomaram conta de alguns dos novos países
independentes), geraram um novo fluxo de africanos para a ex-metrópole. Surgiu,
assim, um novo grupo de cidadãos portugueses - os afrodescendentes. Por razões
ao mesmo tempo diferentes e semelhantes, o mesmo começa a englobar também, nos
últimos tempos, outros migrantes africanos, não originários das antigas colónias
portuguesas.
Entretanto, não parece existir,
pelo menos por enquanto, um consenso entre os portugueses sobre o modo de gerir
o fenómeno do crescimento dos portugueses negros. Alguns, assumidamente
racistas, não gostariam que eles existissem. Mas, mesmo entre os autodeclarados
antirracistas, está longe, na prática, de existir unanimidade em relação ao
estatuto e à visibilidade social dos negros portugueses. Isso ficou claro há
dias, indiretamente, quando os partidos de direita votaram contra a nova lei da
nacionalidade aprovada no Parlamento local.
Alguns factos falam por si, como
o quase inexistente número de negros em cargos administrativos e políticos de
destaque, quer no Estado quer nas empresas. Nesse sentido, comparar os
referidos factos com o exemplo de outros países europeus, alguns deles sem a
presença tão antiga e efetiva de genes africanos na sua população como sucede
com Portugal, deveria ser confrangedor.
Como o poder do simbólico é
conhecido, destaco, a finalizar, a ausência ou marginalização dos negros no
sistema mediático-cultural português. O fenómeno abrange também as eventuais
referências a África, por razões que parecem óbvias. Mais uma vez, comparar
isso com o que se passa em países (e nos seus principais meios de comunicação)
como a Inglaterra, França ou mesmo Espanha, cuja experiência colonial africana
é diminuta, deveria envergonhar os responsáveis portugueses.
*Jornalista e escritor angolano.
Diretor da revista África 21
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