#Publicado em português do Brasil
Com ultradireita, emerge
tentativa de atribuir colapso ambiental à superpopulação e à alta natalidade
dos não-europeus. Rasteiro, argumento atende a interesse poderoso: defender (e
até ampliar) o padrão de consumo infinito dos ricos
George Monbiot* | Outras Palavras | Tradução: Antonio
Martins
Quando um grande
estudo, publicado no mês passado, demonstrou que a população do planeta
chegará ao máximo muito mais rapidamente que a maior parte dos cientistas
imaginava, e em seguida começar a cair, imaginei, ingênuo, que os habitantes
dos países ricos deixariam finalmente de culpar o crescimento populacional por
todos os problemas ambientais. Eu me enganei. A tendência, na verdade,
agravou-se.
Poucos dias depois, o movimento BirthStrike [“Greve
de Nascimentos”] – mantido por mulheres que, ao anunciar sua decisão de não ter
filhos, tenta chamar atenção para o horror do colapso ambiental – decidiu dissolver-se, porque sua causa
foi capturada de forma virulenta e persistente pelos obsessivos populacionais.
As fundadoras explicam que haviam “subestimando o poder da crença na
‘superpopulação’, uma forma nova – e crescente – de negacionismo climático”.
É verdade que, em algumas partes
do planeta, o crescimento populacional é um grande motor de formas particulares
de dano ecológico. São exemplos a expansão de agricultura de pequena escala
sobre as florestas tropicais, o comércio de carne de caça e as pressões locais,
sobre a água e a terra, das populações em busca de habitação. Mas o impacto
global é muito menor do que afirmam certos grupos.
A fórmula para calcular a pegada
ambiental das populações é simples, mas vastamente desconhecida. Impacto =
População x Afluência x acesso à Tecnologia (I=PAT). A taxa global de
crescimento do consumo, antes da pandemia, era de 3% ao ano. O crescimento
populacional é de 1% ao ano. Algumas pessoas inferem, por isso, que o
crescimento populacional participa com 1/3 da responsabilidade pelo crescimento
do consumo. Mas o crescimento populacional está concentrado entre os povos mais
pobres do planeta. Na fórmula acima, seus índices para Afluência e acesso à
Tecnologia são
próximos de zero. O aumento do uso de recursos e das emissões de gases de
efeito estufa causados pelo crescimento da população humana é uma fração
minúscula do impacto provocado pelo crescimento do consumo.
No entanto, ele é vastamente
usado como uma falsa explicação para a crise ambiental. O pânico despertado
pelo crescimento populacional permite que os grandes responsáveis pelos
impactos do crescimento do consumo (os afluentes) culpem aqueles que são menos
responsáveis.
No Fórum Econômico Mundial de
Davos, este ano, o primatologista Dame Jane Goodall, patrono do grupo Population Matters (“A
População Importa”) disse aos plutocratas reunidos, alguns dos quais com
pegadas ecológicas milhares de vezes maiores que a média global: “Tudo isso de
que estamos falando não seria um problema, se tivéssemos uma população igual à
de 500
anos atrás”. Duvido que qualquer um dos que o saudaram e aplaudiram
estivesse pensando: “sim, preciso urgentemente desaparecer”.
Em 2019, Goodall figurou numa
publicidade da British
Airways, cujos clientes produzem mais emissões de gases do efeito-estufa em
um voo que muitas das populações mais pobres geram em um ano. Se tivéssemos a
população de 500 anos atrás (cerca de 500 milhões), e se ela fosse composta de usuários
médios de aviões no Reino Unido, o impacto humano sobre o planeta seria
provavelmente maior que
o dos 7,8 bilhões de habitantes de hoje.
Goodall não propôs nenhum
mecanismo para que seu sonho se tornasse real. Talvez esteja aí o segredo. A
própria impotência de seu apelo é reconfortante para aqueles que não desejam
mudanças. Se a resposta à crise ambiental é desejar que outras pessoas não
existam, talvez valesse mais a pena simplesmente desistir e continuar consumindo.
A ênfase no crescimento
populacional tem uma história sinistra. Desde que os religiosos Joseph Townsend e Thomas Malthus escreveram
seus tratados no século XVIII, a pobreza e a fome têm sido atribuídas não aos
salários de fome, às guerras, aos maus governos e à captura de riqueza pelas
minorias, mas às taxas de reprodução dos pobres. Winston
Churchill culpou, pela fome de Bengala em 1943, que ele ajudou a
causar por meio da exporação maciça de arroz da Índia, o suposto hábito dos
indianos a “reproduzir-se como coelhos”. Em 2013, Sir David Attenborough,
também um patrono do Population Matters, responsabilizou pela fome na Etiópia a falsa
existência de “muita gente para muito pouca terra”, e sugeriu que o
envio de socorro alimentar era contraproducente.
Outro dos patronos do grupo, Paul
Ehrlich, cujas previsões incorretas sobre fomes maciças ajudaram a provocar o
pânico populacional, argumentou certa vez que os EUA deveriam “coagir” a Índia
a “esterilizar todos os homens indianos com três ou mais filhos” condicionando
o auxílio contra a fome a esta política. A proposta era similar ao
programa brutal que Indira Gandhi mais tarde introduziu, com apoio financeiro
da ONU e do Banco Mundial. Até 2011, o Reino Unido ofereceu
auxílio financeiro para ações esterilização cruas e perigosas na
Índia, a pretexto de que estas políticas ajudariam a “lutar contra a mudança
climática”. Algumas das vítimas deste programa alegam que foram forçadas a
participar. Ao mesmo tempo, o governo britânico despejava bilhões de libras e
ajuda no desenvolvimento de projetos de extração de carvão,
gás e petróleo, na Índia e em outras nações. Ele culpou os pobres pela
crise que estava ajudando a causar.
O malthusianismo descamba
facilmente para o racismo.
A maior parte do crescimento
populacional do planeta ocorre nos países mais pobres, onde a maior
parte das pessoas são negras ou pardas. As potências coloniais costumavam
justificar suas atrocidades atiçando pânico moral contra a “reprodução” dos
povos “bárbaros” e “degenerados” a taxas maiores que as das “raças superiores”.
Estas alegações são reavivadas hoje pela extrema direita, que promove teorias
conspiratórias sobre a “substituição
dos brancos” e o “genocídio
branco”. Quando brancos afluentes transferem a culpa dos impactos
ambientais que provoca para as taxas de nascimento dos negros e pardos, esta
atitude reforça as narrativas racistas. Ela é inerentemente racista.
A extrema direita usa agora o
argumento populacional para contestar
a entrada de imigrantes nos EUA e Reino Unido. Também esta é uma
herança maldita: o conservacionista pioneiro Madison
Grant promovia, junto com seu trabalho ambiental, a ideia de que a
“raça nórdica superior” estava sendo superada nos EUA por “tipos raciais sem
valor”. Como presidente da Liga para a Restrição das Imigrações, ele ajudou a
conceber a nefasta Lei de Imigração de 1924.
Porém sabendo que há algum
impacto ecológico real no crescimento das populações, como distinguir
preocupações legítimas sobre estes danos da tendência ao racismo? Bem, sabemos
que o vetor principal da queda das taxas de nascimento é a emancipação
das mulheres, juntamente com seu acesso à educação. O maior obstáculo a
estes processos é a pobreza extrema, cujos efeitos atingem desproporcionalmente
as mulheres.
Por isso, uma boa maneira de
aferir se as preocupações populacionais de alguém são legítimas é verificar seu
histórico de luta contra a pobreza estrutural. Estes atores políticos contestam
as dívidas impagáveis impostas aos países pobres? Eles somaram-se à luta contra
a evasão fiscal promovida pelas corporações ou contra as indústrias extrativas
que sugam riqueza dos países mais pobres, sem deixar nada para trás? Eles se
opõem à lavagem,
pelos mercados financeiros, deste dinheiro roubado? Ou eles simplesmente
observam as pessoas aprisionadas na pobreza e então se queixam de sua fertilidade?
Logo este pânico reprodutivo
desaparecerá. As nações estarão brigando pelos imigrantes: não para excluí-los,
mas para atraí-los, já que a transição demográfica produz,
em suas populações, uma base para tributação cada vez menor e uma carência de
trabalhadores essenciais. Até lá, deveríamos resistir à tentativas dos ricos
para demonizar os pobres.
* Jornalista, escritor, acadêmico
e ambientalista do Reino Unido.
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