terça-feira, 8 de setembro de 2020

O fim do mundo e o indiscreto racismo das elites


#Publicado em português do Brasil

Com ultradireita, emerge tentativa de atribuir colapso ambiental à superpopulação e à alta natalidade dos não-europeus. Rasteiro, argumento atende a interesse poderoso: defender (e até ampliar) o padrão de consumo infinito dos ricos

George Monbiot* | Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins

Quando um grande estudo, publicado no mês passado, demonstrou que a população do planeta chegará ao máximo muito mais rapidamente que a maior parte dos cientistas imaginava, e em seguida começar a cair, imaginei, ingênuo, que os habitantes dos países ricos deixariam finalmente de culpar o crescimento populacional por todos os problemas ambientais. Eu me enganei. A tendência, na verdade, agravou-se.

Poucos dias depois, o movimento BirthStrike [“Greve de Nascimentos”] – mantido por mulheres que, ao anunciar sua decisão de não ter filhos, tenta chamar atenção para o horror do colapso ambiental – decidiu dissolver-se, porque sua causa foi capturada de forma virulenta e persistente pelos obsessivos populacionais. As fundadoras explicam que haviam “subestimando o poder da crença na ‘superpopulação’, uma forma nova – e crescente – de negacionismo climático”.

É verdade que, em algumas partes do planeta, o crescimento populacional é um grande motor de formas particulares de dano ecológico. São exemplos a expansão de agricultura de pequena escala sobre as florestas tropicais, o comércio de carne de caça e as pressões locais, sobre a água e a terra, das populações em busca de habitação. Mas o impacto global é muito menor do que afirmam certos grupos.

A fórmula para calcular a pegada ambiental das populações é simples, mas vastamente desconhecida. Impacto = População x Afluência x acesso à Tecnologia (I=PAT). A taxa global de crescimento do consumo, antes da pandemia, era de 3% ao ano. O crescimento populacional é de 1% ao ano. Algumas pessoas inferem, por isso, que o crescimento populacional participa com 1/3 da responsabilidade pelo crescimento do consumo. Mas o crescimento populacional está concentrado entre os povos mais pobres do planeta. Na fórmula acima, seus índices para Afluência e acesso à Tecnologia são próximos de zero. O aumento do uso de recursos e das emissões de gases de efeito estufa causados pelo crescimento da população humana é uma fração minúscula do impacto provocado pelo crescimento do consumo.

No entanto, ele é vastamente usado como uma falsa explicação para a crise ambiental. O pânico despertado pelo crescimento populacional permite que os grandes responsáveis pelos impactos do crescimento do consumo (os afluentes) culpem aqueles que são menos responsáveis.

No Fórum Econômico Mundial de Davos, este ano, o primatologista Dame Jane Goodall, patrono do grupo Population Matters (“A População Importa”) disse aos plutocratas reunidos, alguns dos quais com pegadas ecológicas milhares de vezes maiores que a média global: “Tudo isso de que estamos falando não seria um problema, se tivéssemos uma população igual à de 500 anos atrás”. Duvido que qualquer um dos que o saudaram e aplaudiram estivesse pensando: “sim, preciso urgentemente desaparecer”.

Em 2019, Goodall figurou numa publicidade da British Airways, cujos clientes produzem mais emissões de gases do efeito-estufa em um voo que muitas das populações mais pobres geram em um ano. Se tivéssemos a população de 500 anos atrás (cerca de 500 milhões), e se ela fosse composta de usuários médios de aviões no Reino Unido, o impacto humano sobre o planeta seria provavelmente maior que o dos 7,8 bilhões de habitantes de hoje.

Goodall não propôs nenhum mecanismo para que seu sonho se tornasse real. Talvez esteja aí o segredo. A própria impotência de seu apelo é reconfortante para aqueles que não desejam mudanças. Se a resposta à crise ambiental é desejar que outras pessoas não existam, talvez valesse mais a pena simplesmente desistir e continuar consumindo.

A ênfase no crescimento populacional tem uma história sinistra. Desde que os religiosos Joseph Townsend e Thomas Malthus escreveram seus tratados no século XVIII, a pobreza e a fome têm sido atribuídas não aos salários de fome, às guerras, aos maus governos e à captura de riqueza pelas minorias, mas às taxas de reprodução dos pobres. Winston Churchill culpou, pela fome de Bengala em 1943, que ele ajudou a causar por meio da exporação maciça de arroz da Índia, o suposto hábito dos indianos a “reproduzir-se como coelhos”. Em 2013, Sir David Attenborough, também um patrono do Population Matters, responsabilizou pela fome na Etiópia a falsa existência de “muita gente para muito pouca terra”, e sugeriu que o envio de socorro alimentar era contraproducente.

Outro dos patronos do grupo, Paul Ehrlich, cujas previsões incorretas sobre fomes maciças ajudaram a provocar o pânico populacional, argumentou certa vez que os EUA deveriam “coagir” a Índia a “esterilizar todos os homens indianos com três ou mais filhos” condicionando o auxílio contra a fome a esta política. A proposta era similar ao programa brutal que Indira Gandhi mais tarde introduziu, com apoio financeiro da ONU e do Banco Mundial. Até 2011, o Reino Unido ofereceu auxílio financeiro para ações esterilização cruas e perigosas na Índia, a pretexto de que estas políticas ajudariam a “lutar contra a mudança climática”. Algumas das vítimas deste programa alegam que foram forçadas a participar. Ao mesmo tempo, o governo britânico despejava bilhões de libras e ajuda no desenvolvimento de projetos de extração de carvão, gás e petróleo, na Índia e em outras nações. Ele culpou os pobres pela crise que estava ajudando a causar.

O malthusianismo descamba facilmente para o racismo. A maior parte do crescimento populacional do planeta ocorre nos países mais pobres, onde a maior parte das pessoas são negras ou pardas. As potências coloniais costumavam justificar suas atrocidades atiçando pânico moral contra a “reprodução” dos povos “bárbaros” e “degenerados” a taxas maiores que as das “raças superiores”. Estas alegações são reavivadas hoje pela extrema direita, que promove teorias conspiratórias sobre a “substituição dos brancos” e o “genocídio branco”. Quando brancos afluentes transferem a culpa dos impactos ambientais que provoca para as taxas de nascimento dos negros e pardos, esta atitude reforça as narrativas racistas. Ela é inerentemente racista.

A extrema direita usa agora o argumento populacional para contestar a entrada de imigrantes nos EUA e Reino Unido. Também esta é uma herança maldita: o conservacionista pioneiro Madison Grant promovia, junto com seu trabalho ambiental, a ideia de que a “raça nórdica superior” estava sendo superada nos EUA por “tipos raciais sem valor”. Como presidente da Liga para a Restrição das Imigrações, ele ajudou a conceber a nefasta Lei de Imigração de 1924.

Porém sabendo que há algum impacto ecológico real no crescimento das populações, como distinguir preocupações legítimas sobre estes danos da tendência ao racismo? Bem, sabemos que o vetor principal da queda das taxas de nascimento é a emancipação das mulheres, juntamente com seu acesso à educação. O maior obstáculo a estes processos é a pobreza extrema, cujos efeitos atingem desproporcionalmente as mulheres.

Por isso, uma boa maneira de aferir se as preocupações populacionais de alguém são legítimas é verificar seu histórico de luta contra a pobreza estrutural. Estes atores políticos contestam as dívidas impagáveis impostas aos países pobres? Eles somaram-se à luta contra a evasão fiscal promovida pelas corporações ou contra as indústrias extrativas que sugam riqueza dos países mais pobres, sem deixar nada para trás? Eles se opõem à lavagem, pelos mercados financeiros, deste dinheiro roubado? Ou eles simplesmente observam as pessoas aprisionadas na pobreza e então se queixam de sua fertilidade?

Logo este pânico reprodutivo desaparecerá. As nações estarão brigando pelos imigrantes: não para excluí-los, mas para atraí-los, já que a transição demográfica produz, em suas populações, uma base para tributação cada vez menor e uma carência de trabalhadores essenciais. Até lá, deveríamos resistir à tentativas dos ricos para demonizar os pobres.

* Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido.

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