João Melo* | Diário de Notícias |
opinião
Acontecimentos e factos recentes
levam-me a considerar que o liberalismo - uma das metanarrativas que ajudaram a
configurar o mundo nos últimos séculos - está presentemente em crise
(conceitual, económica, moral e política), com consequências imprevisíveis, mas
ameaçadoras. Não sou, certamente, o único a alimentar tais receios.
Pela parte que me cabe neste
latifúndio, como canta Chico, confesso-me totalmente baratinado com tantas
posições antiliberais por parte de autodeclarados e contumazes liberais, nos últimos
tempos e em várias partes do mundo. Recorro, por essa razão, à retórica que me
é naturalmente intrínseca - a angolana - para perguntar, sem aspas e com o
ritmo cantado do povo, acentuando a palavrinha "então" no final da
frase, para exprimir ao mesmo tempo dúvida e espanto:
- Que liberalismo é esse, então?!
- Que liberalismo é esse, então?!
A maka começa com a própria
definição conceitual de liberalismo. Comummente, os teóricos distinguem o
liberalismo económico (priorização exclusiva da iniciativa privada e
esvaziamento tendencialmente total do papel económico do Estado) e o
liberalismo social e de costumes (moral, sexual, religioso, etc.). Esses dois
grandes modos, digamos assim, liberais não são necessariamente coincidentes.
Pode ser-se liberal do ponto de vista económico e conservador do ponto de vista
social e de costumes.
Estranhamente, e apesar de ter
começado por ser uma filosofia política, as relações entre o liberalismo e a
política são, hoje, pouco desenvolvidas teoricamente, talvez por esse seu
entendimento ser uma espécie de dado adquirido. A exceção serão os Estados
Unidos, onde a palavra "liberal" possui uma assumida carga política,
sendo normalmente associada à ala mais progressista do Partido Democrata.
Outra hipótese para tentar
explicar a lacuna acabada de referir é que, na realidade, os liberais
(economicamente) sabem há muito tempo que o florescimento da iniciativa
privada, ou seja, do capitalismo, não tem relação orgânica com o liberalismo
político. A história está cheia de exemplos de ditaduras capitalistas onde a economia
privada medrou. Em alguns casos, tais países foram considerados exemplos da
"bondade" do (neo)liberalismo económico. É o caso do Chile.
O que não pode ser é ingénua. Com
efeito, começam a surgir no horizonte sinais consistentes de que a direita
liberal pode voltar a aliar-se à extrema-direita, como aconteceu na Alemanha,
tendo viabilizado, por isso, o advento do nazismo.
A subjugação do Partido
Republicano norte-americano - o partido de Lincoln - a uma figura como Donald
Trump é um desses sinais. Pelo menos para quem acompanhava à distância a
situação nos EUA, teve de acontecer, por certo, um corte muito forte e
inesperado na história política americana para explicá-lo teórica e
intelectualmente. Justificá-lo e aceitá-lo é impossível.
O mesmo se pode dizer do
surgimento do bolsonarismo no Brasil. Por mais erros e crimes que o PT ou
alguns dos seus líderes tenham cometido - politicamente, o seu equívoco fatal
foi ter-se deixado enredar pelas teias da secular corrupção do país -, a
direita liberal será historicamente responsável por ter preferido aliar-se a
Bolsonaro, ao invés de viabilizar uma solução política democrática para o país.
A afirmação feita há tempos por Fernando Henrique Cardoso de que, "mal ou
bem, Bolsonaro foi eleito" é, para usar um adjetivo generoso,
confrangedora. Hitler também foi eleito e deu no que deu.
Aproveitando a circunstância de
escrever num jornal português, não posso, para terminar, deixar de mencionar,
como um exemplo dessa notória deriva do liberalismo ocidental, a atual polémica
criada à volta da disciplina de educação e cidadania incluída no currículo
escolar do nível secundário do país. Saber que líderes da direita liberal
portuguesa - como os antigos Presidente da República e primeiro-ministro,
respetivamente Aníbal Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho - são contrários a uma
disciplina que prepara os jovens para lidarem com problemas como a violência
doméstica ou para a aceitação da diversidade confirma o aforismo da nossa
língua comum: vivendo e aprendendo.
*Jornalista e escritor angolano.
Diretor da revista África 21
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