#Publicado em português do Brasil
Joe Biden herda de Obama e Trump dois grandes conflitos, que os EUA não podem vencer. Se abandoná-los, deterá o rastro de caos e mortes. Mas as tentações imperiais de Washington não cessam, nem sob os golpes da pandemia e da crise
Medea Benjamin e Nicolas J. S. Davies, no Counterpunch | Outras Palavras | Tradução: Gabriela Leite
Joe Biden assumirá o comando da Casa Branca em um momento em que os norte-americanos estão mais preocupados em enfrentar o coronavírus do que em guerras além mar. Mas a guerra continua de qualquer maneira, e as políticas de contraterrorismo militarizado que o novo presidente apoiou no passado — baseadas em ataques aéreos, operações especiais e o uso de exércitos subalternos — é precisamente o que mantém a continuidade dos conflitos.
Biden se opôs ao aumento de
tropas no Afeganistão, executado por Barack Obama em
No Afeganistão, significou abandonar a presença em larga escala de soldados norte-americanos, e contar, ao invés disso, com ataques aéreos, ataques por drones e operações especiais de invasões para “matar ou capturar”. Enquanto isso, tropas afegãs era treinadas para realizar quase todas as ações de luta terrestre e posse do território.
Na intervenção sobre a Líbia, em
Hoje, Joe Biden recebe créditos
por ter se oposto à intervenção desastrosa na Líbia, mas naquele momento ele se
apressou em saudar os sucessos enganosos e de curto prazo, bem como o terrível
assassinato do coronel Kadafi. “A OTAN fez o certo”, disse em um discurso no
Plymouth State College em outubro de 2011, precisamente no mesmo dia
Apesar de Biden lavar suas mãos a respeito do fiasco na Líbia, a operação foi de fato emblemática para compreender a doutrina de guerra secreta e por procuração sustentada por ataques aéreos que ele apoiava, e que ele ainda tem que negar. Biden ainda diz que apoia operações de “contraterrorismo”, mas foi eleito presidente sem ter nenhuma vez que responder publicamente a qualquer pergunta direta sobre seu apoio ao uso maciço de ataques aéreos e por drones, que são parte integrante dessa doutrina.
Na campanha contra a organização terrorista Estado Islâmico, no Iraque e na Síria, as forças lideradas pelos EUA jogaram mais de 118 mil bombas e mísseis, reduzindo grandes cidades como Mossul e Raqqa a destroços, e matando dezenas de milhares de civis. Quando Biden disse que os EUA “não perderam nenhuma vida” na Líbia, ele claramente quis dizer “nenhuma vida norte-americana”. Se “vida” quer dizer simplesmente vida, a guerra na Líbia custou obviamente incontáveis vidas, e zombou da resolução do Conselho de Segurança da ONU, que aprovou o uso de forças militares apenas para proteger civis.
Rob Hewson, o editor do jornal de comércio de armas Jane’s Air-Launched Weapons, disse à agência de notícias AP, no momento em que os EUA lançavam seu bombardeio de “choque e pavor” no Iraque, em 2003: “Em uma guerra que está sendo travada pelo benefício do povo iraquiano, não podemos aceitar a morte de nenhum deles. Mas não é possível jogar bombas sem matar ninguém. Há uma dicotomia real aí”. O mesmo obviamente se aplica aos povos da Líbia, Afeganistão, Iêmen, Palestina e em qualquer lugar onde as bombas norte-americanas vêm caindo nos últimos 20 anos.
Tanto Obama quanto Donald Trump
tentaram transitar da falida “guerra global ao terror”, para o que o governo do
republicano chamou de “competição pelo grande poder”, mas foi uma volta à
Guerra Fria. Ainda assim, o conflito anterior recusou-se teimosamente
Após quase 20 anos de “guerra ao terror”, existe agora um grande corpo de pesquisa sobre o que leva as pessoas a se juntarem a grupos armados islâmicos, para lutar contra forças governamentais ou invasores ocidentais. Os políticos norte-americanos ainda fazem malabarismos para entender que motivos contribuem para tal comportamento incompreensível, mas não é assim tão complicado. A maior parte dos integrantes não é motivada pela ideologia islâmica, mas sim pelo desejo de proteger a si, suas famílias ou suas comunidades de forças militares de “contraterrorismo”, como descrito neste relatório produzido pelo Center for Civilians in Conflict.
Outro estudo, intitulado “A jornada do extremismo na África: motivadores, incentivos e o ponto de inflexão para recrutamento”, descobriu que a “gota d’água” que leva mais de 70% dos combatentes a entrar em grupos armados é o assassinato ou a detenção de um membro da família pelo “contraterrorismo” ou por forças de “segurança”. Esse estudo mostra que o contraterrorismo militarizado norte-americano é uma política autorrealizável que alimenta um ciclo irremediável de violência, ao gerar e realimentar um grupo cada vez maior de “terroristas” à medida que destrói famílias, comunidades e países.
Por exemplo, os EUA formaram a Parceria Contraterrorismo Trans-Saara com 11 países da África Ocidental em 2005, e investiram bilhões de dólares nela até agora. Em um relatório recente de Burkina Faso, Nick Turse citou relatórios do governo norte-americano que confirmam que 15 anos de “contraterrorismo” liderado pelos EUA apenas puseram lenha na explosão de terrorismo no local.
O Centro Africano de Estudos Estratégicos
do Pentágono relata que os mil incidentes violentos envolvendo grupos islâmicos
militantes
Heni Nsaibia, um pesquisador sênior do ACLED (Armed Conflict Location Event Data), disse a Turse que “Focar nos conceitos ocidentais de contraterrorismo e abraçar um modelo estritamente militar foi um grande erro. Ignorar fatores de militância, como pobreza e falta de mobilidade social, e não aliviar as condições que fomentam insurgências, como abusos generalizados dos direitos humanos pelas forças de segurança, causou danos irreparáveis ”.
De fato, até o New York
Times confirmou que as forças de “contraterrorismo”
Souaibou Diallo, presidente de uma associação regional de acadêmicos muçulmanos, disse a Turse que esses abusos são o principal fator que leva os Fulani a ingressar em grupos militantes. “80% dos que entram em grupos terroristas nos disseram que não o fazem por apoiar o jihadismo, mas porque seu pai, mãe ou irmão foram mortos pelas forças armadas”, relata Diallo. “Muitas pessoas foram mortas — assassinadas — mas não houve justiça.”
Desde o início da Guerra Global ao Terror, ambos os lados usaram a violência de seus inimigos para justificar a sua própria, alimentando uma espiral aparentemente interminável de caos que se espalha de país a país e de região a região, em todo o mundo.
Mas as raízes americanas de toda essa violência e caos são ainda mais profundas. Tanto a Al Qaeda quanto o Estado Islâmico evoluíram de grupos originalmente recrutados, treinados, armados e apoiados pela CIA para derrubar governos estrangeiros: Al Qaeda no Afeganistão na década de 1980 e a Frente Nusra e Estado Islâmico na Síria a partir de 2011.
Se o governo Biden realmente quer parar de alimentar o caos e o terrorismo no mundo, deveria transformar radicalmente a CIA, cujo papel de desestabilizar países, apoiar o terrorismo, espalhar o caos e criar falsos pretextos para guerra e hostilidade foi bem documentado desde os anos 1970 pelo Coronel Fletcher Prouty, William Blum, Gareth Porter e outros.
Os Estados Unidos nunca terão um sistema de inteligência nacional objetivo e despolitizado, ou uma política externa coerente e baseada na realidade, até que exorcizem esse fantasma. Biden escolheu, para ser sua diretora de Inteligência Nacional, Avril Haines, que elaborou a base semi-legal secreta para o programa de drones de Obama e protegeu torturadores da CIA. Haines estrá apta a transformar essas agências de violência e caos em um sistema de inteligência legítimo e funcional? Parece improvável — mas é vital.
O novo governo Biden precisa rever verdadeiramente toda a gama de políticas destrutivas que os Estados Unidos vêm adotando em todo o mundo há décadas e o papel insidioso que a CIA desempenhou em tantas delas.
Esperamos que Biden finalmente renuncie a políticas militarizadas e estúpidas que destroem sociedades e arruinam a vida de pessoas em nome de ambições geopolíticas inatingíveis. Em vez disso, ele poderia investir em apoio humanitário e econômico que realmente ajude os povos a terem vidas mais pacíficas e prósperas.
Também esperamos que Biden reverta a tentativa de retorno de Trump à Guerra Fria e evite o desvio de mais recursos norte-americanos para uma corrida armamentista inútil e muito perigosa contra a China e a Rússia.
Temos problemas reais para enfrentar neste século — problemas existenciais que só podem ser resolvidos por meio de uma cooperação internacional genuína. Não podemos mais sacrificar nosso futuro no altar da Guerra Global contra o Terror, de uma Nova Guerra Fria, da Pax Americana ou de outras fantasias imperialistas.
*Medea Benjamin é
cofundadora do CODEPINK e do grupo de advocacia em defesa do comércio justo,
Global Exchange. É autora do livro Drone Warfare (“Guerra dos Drones”, da OR
Books, 2012) e possui um importante papel no Green Party (“Partido Verde”).
Possui mestrado em Saúde Pública e em Economia. Ganhadora dos prêmios U.S.
Peace Memorial Foundation’s Peace Prize, Gandhi Peace Award e Martin Luther
King Jr. Peace Prize
*Nicolas J. S. Davies é autor do livro Blood On Our Hands: the American Invasion
and Destruction of Iraq (“Sangue em nossas mãos: a invasão estadunidense e a
destruição do Iraque)”. Também escreveu capítulos do Obama at War.
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