O tratamento infligido a Assange é um teste decisivo para o futuro do jornalismo e da liberdade de expressão
– Mas os media portugueses, assim como as organizações de jornalistas, estão calados como ratos
Günter Wallraff [*] -- entrevistado por Arne Roth
Arne Ruth: Primeiro, diga-nos como e quando decidiu apoiar activamente Julian Assange?
AR: Quando soube de sua iniciativa, contactei-o. Queríamos criar um movimento semelhante na Suécia, criticando fortemente o governo sueco. Em menos de uma semana, o recolhemos 72 assinaturas e mais de 3 000 pessoas assinaram o apelo no nosso site. Mas não obtivemos absolutamente nenhuma reação ao nosso pedido. O governo permaneceu em silêncio e os media suecos optaram também pelo silêncio, tanto em relação ao apelo quanto ao silêncio do governo.
GW: Antes de nossa iniciativa, quase não havia na Alemanha cobertura mediática sobre Assange. Quando era mencionado, isso consistia em comentários condescendentes e em questionamentos sobre as suas motivações. Ele estava destinado a ser silenciado até a morte. Porém, quando apresentámos os factos do caso, as opiniões mudaram. Conseguimos mudar a opinião pública. Do meu ponto de vista, a Suécia ainda está presa à situação em que estávamos na Alemanha no início deste ano. O que está a acontecer é como uma vingança pessoal das forças judiciais suecas. Assange tornou-se um bode expiatório.
É incompreensível que tal declínio possa ocorrer numa democracia como a da Suécia. Quando, após as minhas divulgações, fui ameaçado pelo sistema de justiça alemão, sempre pude contar com o apoio da Suécia. A sociedade sueca era um modelo de democracia. A Suécia defendeu princípios internacionais de justiça. E não era apenas na teoria. Teve um primeiro-ministro que ousou falar a verdade sobre a Guerra do Vietname. A posição de Olof Palme chamou a atenção do mundo. Ele encarnava os princípios da justiça global. Tudo isso, creio, foi revertido, tanto na teoria quanto na prática.O relator das Nações Unidas sobre tortura, Professor Nils Melzer, examinou documentos legais relacionados com Assange nos arquivos suecos. Ele é fluente
AR: Como avalia as consequências da cultura de silêncio na Suécia?
GW: O tratamento dado a Assange pode ser visto como um teste decisivo para o
futuro do jornalismo e da liberdade de expressão. É uma perspectiva
assustadora. O professor Nils Melzer qualifica o actual tratamento de Assange
na prisão de Belmarsh como "uma forma deliberada de tortura psicológica".
Os presos comuns, incluindo os condenados por assassinato, podem receber filhos
e membros de suas famílias. Podem ter conversas confidenciais com seus
advogados. Tudo isto é negado a Assange. Deliberadamente criam dificuldades
para a sua existência diária. Querem deixá-lo desesperado por uma forma
consciente de desorientação. A intensidade das violações aumenta
constantemente. Assange está impedido de participar no seu julgamento em
condições normais. No tribunal, é colocado atrás de uma parede de vidro, quase
como um animal a ser observado, separado das pessoas. Fica isolado 23 horas por
dia. Ele nem consegue abraçar os seus próprios filhos. Foi-lhe negado qualquer
contacto com os seus advogados durante seis meses. Tudo foi feito para privá-lo
da sua dignidade e despedaçá-lo como ser humano.
Ele merece ser chamado de mártir. Mas um mártir não precisa ser um santo.
Assange teve problemas na sua vida emocional, mas foi capaz de superar as
dificuldades e apresentar-se como uma pessoa saudável. Merece todo o nosso
apoio. Mas o nosso apoio também deve ser politicamente orientado. Não devemos
fechar os olhos à responsabilidade política daqueles que o acusaram de
transgressão. Se ele for extraditado para os Estados Unidos, todos os valores
democráticos serão também extraditados. As consequências afetar-nos-iam, não
importa onde vivamos. A erosão internacional dos princípios de justiça está a
aumentar. Se for entregue aos Estados Unidos a partir de Londres, isso
significaria o colapso de qualquer credibilidade ligada à estrutura judicial
britânica. Neste caso, seria de facto a aplicação da pena de morte. O distrito
da Virgínia, onde o tribunal dos EUA está localizado, é também o local onde se
centram a maioria dos serviços secretos dos EUA. Todos os que lá foram julgados
até agora foram condenados de acordo com um plano pré-determinado. A maioria
dos membros do júri, senão todos, é escolhida entre uma população de agentes da
CIA.
AR: Comparando os vossos próprios métodos de trabalho com os de Assange, vê
algumas semelhanças e diferenças?
GW – Eu trabalhei de uma maneira diferente, numa época completamente diferente.
Os meus métodos de trabalho também são diferentes. O que eu exibo, devo
primeiro experimentar internamente e em mim mesmo. Para Assange, o Wikileaks é
uma rede em que se pode penetrar para obter uma visão geral do problema. No meu
caso, quando entrei nas estruturas de poder que queria inspecionar, mantive-me
nas margens externas. Tive o apoio daqueles que estavam mais envolvidos no
sistema. Ajudaram-me a pesquisar os abusos de poder que aconteciam.
Além do meu apoio a Assange, gostaria de expressar o meu profundo respeito por
Chelsea Manning. Ambos vivem com o fardo da condenação constante. Manning
certamente merece o Prémio Nobel da Paz. Carl von Ossietzky, o jornalista que
expôs o rearmamento de Hitler, recebeu o Prémio da Paz em 1935. Foi uma
declaração política importante. Não quero comparar os Estados Unidos com a
Alemanha dos anos 1930, mas devemos ter em mente que nos EUA existe um "Estado
dentro do Estado": os seus serviços secretos, que estendem os seus
tentáculos de uma maneira que nenhum de nós pode prever. Acrescente-se a isto o
facto de um presidente ainda mais imprevisível, que chama a todas as críticas
políticas "notícias falsas". É inevitável que tal estrutura de poder,
por si só, recorra a métodos de terror. Isso inclui a manipulação de
jornalistas. O objectivo é que a definição de "segurança nacional" de
Washington influencie as estruturas de poder de todos os outros Estados.
Carl von Ossietzky formulou um slogan moral que deve abrir os nossos olhos em
relação a Julian Assange e Chelsea Manning: "Não podemos depender da
consciência do mundo quando nossa própria consciência está adormecida".
Assange e Manning foram motivados pelo que fizeram pelas suas consciências. O
Wikileaks publicou informações sobre crimes de guerra da pior espécie possível.
Como num jogo de computador, vemos pessoas reais a serem massacradas e como os
assassinos expressam a sua malícia com gritos contínuos de alegria. Crianças
ficam gravemente feridas. Tudo isto é descrito com detalhes. Mas os criminosos
de guerra não sofrem consequências pelas suas acções. Não têm responsabilidade
pessoal. Precisamos de novos meios de comunicação que informem sistematicamente
dos crimes de guerra e devemos criar uma opinião transnacional que garanta que
os responsáveis sejam levados à justiça. O caso de Julian Assange não é apenas
sobre justiça, culpa ou inocência. Os serviços secretos dos EUA visam exercer
um poder mundial. Eles querem ser capazes de controlar todos nós. Devemos criar
contra-forças democráticas que não estejam restringidas por percepções
nacionais de justiça do tipo alemão ou sueco. Se os princípios democráticos
devem ter uma hipótese de sobreviver, deveríamos promover os movimentos
plurinacionais. Devemos encontrar aliados, mesmo entre políticos activos. Eu
acredito nessa possibilidade.
02/Dezembro/2020
[*] Jornalista
investigativo e escritor, alemão. É o autor de A
descoberta de uma conspiração: a acção Spínola , editado em 1976 pela
Bertrand (o livro pode ser encontrado em alfarrabistas).
O original encontra-se em www.legrandsoir.info/...
Esta entrevista encontra-se em https://resistir.info/
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