Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Os melhores momentos vivem de um "timing" perfeito. Sem o tempo certo, assomam as oportunidades perdidas, acontecimentos espantosos que se precipitam, incapazes de encontrar a hora, para a infelicidade de aparecerem nas piores alturas. Qualquer reaparecimento público de Cavaco Silva ou de Durão Barroso é um acontecimento equiparável à permanência de crédito malparado: convoca sempre um ajuste de contas com o passado. Esta semana, ambos reapareceram publicamente para gáudio de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa. Os momentos felizes existem.
Mesmo com a renovação do estado de emergência a contemplar o crime de desobediência, ninguém confina vilões cegamente obedientes ao seu perfil. Cavaco Silva regressa às entrevistas e faz campanha implícita pela reeleição de Marcelo: o reaparecimento do ex-presidente é o melhor espelho sobre as diferenças entre o passado e o presente. Cavaco Silva critica PCP e BE pelo apoio dado à governação de António Costa, destilando que o PCP "de democracia tem pouco", ao mesmo tempo que elogia o acordo alcançado pelo PSD nos Açores com a extrema-direita. Se as presidenciais fossem apenas um exercício de elogio à memória, Marcelo desejaria a sombra de Cavaco como prenda de Natal e aspiração de ano novo. Já Durão Barroso, presidente da Goldman Sachs vindo da porta giratória da Comissão Europeia, interpõe processo de 292 milhões de euros contra a República Portuguesa. Para António Costa, serve-se cherne na ceia de Natal.
No cardápio europeu positivo à covid-19, Emmanuel Macron ascende a uma espécie de teste "super-spreader" de algodão entre heróis e vilões. De uma assentada ibérica, isolou os primeiros-ministros Pedro Sánchez e António Costa, assim como o "seu" primeiro Jean Castex e Charles Michel, presidente do Conselho Europeu. Incapaz de confinar os vilões húngaros e polacos, Macron permitiu o desrespeito pelos mecanismos do Estado de direito e consentiu, com os seus pares, que a extrema-direita continue a condicionar a tomada de decisões na União Europeia. Involuntariamente ou porque o hábito faz o monge, impôs uma quarentena geográfica à esquerda.
Bem para além da moda. Vestir ou não vestir "casaco-camisa-gravata" durante um teste pandémico está longe de ser o único hábito que traça a distinção entre Costa e Marcelo. Se enquanto aguardava o resultado do teste inaugural, o primeiro promovia uma videoconferência, já o segundo simulava um eclipse público. Resta saber se a António Costa e a UE irão continuar a olhar serenamente para os vilões como se estivessem num ecrã, convidando-os a partilhar a casa, esperando que não esperneiem em bicos de pés na altura em que podem discutir a alimentação de todos. É que o inimigo vive dentro e Portugal tem a presidência da UE a partir de Janeiro. Há sinais que remetem para o passado. A ideia de que os princípios não se discutem à boleia dos números, como António Costa defendeu aquando da sua visita a Viktor Orbán, é algo que Durão Barroso não desdenharia abraçar.
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia
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