Em
meio à pandemia, cresce a ansiedade por uma resposta da Ciência. Pode ser
ilusão. Fraudes, subornos e sabotagens mostram a pesquisa sequestrada por
corporações cuja lógica é o lucro máximo – inclusive às custas da Saúde
Maurício Abdalla* | Outras Palavras
Ciência,
poder e mercado
No
século XVII, o desejo por uma sociedade regida pelas leis do mercado compunha o
ideal revolucionário da burguesia europeia, cujo poder vinha crescendo cada vez
mais no interior do sistema feudal em crise. Acreditava-se
que as relações sociais guiadas unicamente pelas regras mercantis possuíam um
potencial libertário, capaz de construir o reino da liberdade em contraposição
ao domínio fundado na hierarquia social.
Para
que esse desejo se tornasse realizável, era preciso substituir a cosmovisão
naturalista baseada na física e metafísica aristotélicas, que sustentava a
ordem feudal no plano intelectual, por um saber que reproduzisse na
subjetividade social as relações de mercado que já se estabeleciam
objetivamente na história. O estudo do mundo por meio da nova filosofia natural
cultivada na Renascença possuía um caráter de ruptura com toda a tradição de
conhecimento (amparada no aristotelismo cristão) que naturalizava e dava
suporte teórico às relações feudais. O nexo entre conhecimento e poder
caracterizava-se, naquela época, por esse contexto socioeconômico.
O
desenvolvimento da ciência moderna, em suas origens, estava profundamente
relacionado à ideia de um conhecimento libertador, em contraposição ao saber
submetido aos interesses das castas feudais dominantes. Enquanto o apego à
física aristotélica relacionava-se à postura conservadora, refratária às
mudanças na ordem social e econômica, a defesa de uma nova filosofia natural
(que hoje chamamos de ciência) compunha o ideal revolucionário, que em alguns
países, como a Inglaterra, já estava em vias de concretização.
Foi
nesse contexto que o filósofo inglês Francis Bacon, considerado o “profeta da
ciência moderna”, vislumbrou na ciência um instrumento para um novo poder. “Conhecimento
e poder humano são sinônimos”, escreveu o filósofo no terceiro aforismo de sua
obra Novum Organum, de 1620, acrescentando, no aforismo 129, que “Agora o
império do homem sobre as coisas está fundado unicamente nas artes e na
ciência, pois a natureza só é dominada obedecendo-a”.1
A
tese baconiana de que o poder decorre do saber e de que a ciência e sua
aplicação são os fundamentos últimos e únicos do domínio humano sobre o mundo
passou a compor a concepção moderna de ciência. O saber científico ainda tem
sido visto como a luz que deve guiar os seres humanos em suas decisões
cotidianas (individuais e sociais), como vislumbrado por Bacon em sua utopia da Nova
Atlântida.2
Bacon
acreditava em uma ciência sem sujeito. Para ele, a verdadeira ciência seria
aquela na qual todos os elementos subjetivos do pesquisador, relacionados à
vida social e econômica, interesses, concepções, crenças, linguagem etc. – que
ele chamou de ídolos – seriam eliminados para dar lugar à fala neutra
e direta da natureza. Seus agentes seriam capazes de se purificar totalmente
dos ídolos e de usar um método infalível baseado na observação e indução. Do
esforço desse grupo quase sacerdotal de pessoas purificadas e livres das
influências do contexto socioeconômico e cultural adviriam as verdades naturais
às quais o poder deveria submeter-se.
A
visão baconiana ainda compõe a ideia popular sobre a ciência. A sociedade ainda
a concebe como o resultado da prática de cientistas desinteressados e sem vida
social – representados na imagem mítica do “cientista louco” de cabelos
desgrenhados –, que realizam seus trabalhos em laboratórios próprios ou em
universidades livres, sem financiamento ou direcionamento de resultados. O
poder do qual gozam as decisões supostamente embasadas na ciência e o controle
que todo discurso cientificamente construído exerce sobre nossas vidas
amparam-se nessa visão idílica sobre a prática científica.
Entretanto,
no mundo real, a história revelou-se bem diferente. Tão logo as regras do
mercado e a classe social que as manipulam tornaram-se hegemônicas na sociedade
ocidental, a ciência foi perdendo sua característica de conhecimento
desbravador da natureza e de saber vinculado a um ideal libertário de poder
para reduzir-se a força produtiva, capaz de multiplicar os lucros das empresas
e ampliar a capacidade da indústria para transformar os elementos naturais em
produtos comercializáveis.
Embora
a ciência teórica ainda guarde a dimensão original do saber científico como
forma de conhecimento sobre a natureza – e talvez por isso seja cada vez mais
desprestigiada –, a ciência aplicada e sua conversão em tecnologia confundiu-se
com o próprio conceito de ciência.
O
ideal baconiano revelou-se um mito tanto pelas razões teóricas trazidas pela
filosofia da ciência do século XX, quanto pelo desenvolvimento real do
mundo. O que podemos afirmar, afastados do contexto em que Bacon elaborou suas
ideias, é que não existe saber sem sujeito e não há sujeito que não seja
determinado pelas relações socioeconômicas e culturais que o envolvem. Tampouco
existe ciência fora de um contexto socioeconômico, sem local ou recursos, nem
laboratórios que não demandem volumosos investimentos financeiros para custear
os gastos que a ciência avançada necessita para sua consecução.
Sabemos
também que as relações reais de poder no capitalismo são determinadas pelo
dinheiro. Consequentemente, uma vez que os possuidores do dinheiro são os que
detêm o poder real no mundo capitalista, o saber da ciência, principalmente em
sua dimensão pragmática, revelou-se profundamente dependente do poder
econômico. Mesmo quando pensamos em investimentos públicos em pesquisa, devemos
ter em mente o controle que as grandes corporações privadas exercem cada vez
mais sobre a gestão dos Estados e de seus orçamentos – o que nos leva à
conclusão sobre a primazia do poder sobre o saber.
Atualmente,
não há investimento em ciência sem interesses mercantis. Os casos de
bilionários que doam recursos à ciência por meio de suas instituições sociais
são exceções, muito pouco frequentes para serem usadas como contraexemplo à
ideia da relação entre o financiamento da ciência e os interesses do mercado.
Ademais, a ciência que se faz com as doações de fundações também se insere em
um conjunto de outros interesses que envolvem cientistas e instituições que
recebem esses recursos.
No
mundo real, portanto, ao contrário da tese baconiana, o saber é decorrente
do poder, justamente pelo fato de que a dimensão pragmática da ciência necessita
de recursos e, ao mesmo tempo, seus resultados são direcionados e apropriados
pelos interesses mercantis que os financiam.
Poderíamos
exemplificar as afirmações acima com incontáveis exemplos. Por razões de
brevidade, tomemos apenas o caso conhecido como o “affair Séralini” como
ilustração mais recente. Ao refletir sobre esse episódio de intervenção direta
da indústria de biotecnologia na prática, conclusões e publicações científicas,
Fagan, Traavik & Bøhn afirmam:
Ao
contribuir para o avanço do bem estar da humanidade, a ciência tem sido a
galinha que pôs muitos ovos de ouro de grande proveito para o setor
empresarial. Porém, quando os resultados das pesquisas não estão em sintonia
com as prioridades comerciais de curto prazo, não parece haver qualquer
hesitação para tentarem interferir nos processos científicos e manipulá-los. 3
As
regras do mercado são fundadas na maximização dos lucros e na quantificação de
toda a realidade. Os mecanismos reais que possibilitam a obtenção de lucro
(comércio, indústria, serviços, atividade bancária, agricultura, pecuária etc.)
são apenas meios necessários para a obtenção de um único o fim: a reprodução do
capital. Como simples mediações, eles perdem toda sua concreticidade real e se
tornam meios abstratos direcionados a resultados monetários. Não há outra ética
no julgamento da manipulação dos meios que geram lucro que não seja a que se
rege pelo único princípio: se dá lucro é bom, se dá prejuízo é mau. “Bem“
e “mal” tornam-se conceitos subsumidos à ideia geral de mercado como princípio
absoluto.
Quando
as mediações para a produção de riqueza monetária estão diretamente
relacionadas ao equilíbrio da natureza e à saúde e sobrevivência do ser humano,
as consequências da utilização da ciência na prática industrial pautada apenas
na ética do mercado são enormes. Pois, quando a natureza e o mundo
microbiológico são transformados em meios abstratos quantitativamente
concebidos em sua potencialidade comercial, os diversos efeitos concretos de
sua manipulação não entram nos cálculos e planejamento de metas das
corporações. Importa apenas o seu potencial de geração de lucros para os
acionistas anônimos – para os quais pouco importa o que realmente fazem as
empresas nas quais investem: elas são apenas números e gráficos no mercado de
ações.
É
justamente nesse campo que se insere a reflexão mais importante sobre a ciência
como força produtiva e seu papel no desenvolvimento da sociedade.