Pepe Escobar [*]
Duas décadas depois de um terremoto político, um potente tremor secundário que deveria sacudir o Brasil está sendo recebido com um silêncio estrondoso.O que agora é chamado de "vazamentos do Banestado" e "CC5gate" é algo parecido com o antigo caso WikiLeaks: uma lista publicada pela primeira vez na íntegra, dando nomes e detalhando um dos maiores casos de corrupção e lavagem de dinheiro do mundo nas últimas três décadas.
Esse escândalo pode nos proporcionar o saudável exercício daquilo que Michel Foucault reconhecera como uma "arqueologia do saber": sem entender esses vazamentos, é impossível colocar no devido contexto eventos que vão dos sofisticados ataques de Washington ao Brasil – inicialmente via NSA [National Security Agency (Agência de Segurança Nacional norte-americana)], espionando o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2010-2014) – até a operação "Lava Jato", que pôs na cadeia Luis Inácio Lula da Silva e abriu o caminho para a eleição do presidente neofascista Jair Bolsonaro.
O crédito pelo furo jornalístico desta trama de guerra híbrida orwelliana deve ser tributado, mais uma vez, à mídia independente. O pequeno site Duplo Expresso , liderado pelo jovem e ousado advogado internacional Romulus Maya, radicado em Berna, foi quem publicou a lista pela primeira vez.
Uma épica live de cinco horas reuniu os três principais protagonistas da denúncia do escândalo, no final dos anos 90, e que agora se dispõem a confrontá-lo novamente: o então governador do Estado do Paraná, Roberto Requião, o promotor federal Celso Três e o agora superintendente aposentado da Polícia Federal, José Castilho Neto.
Anteriormente, em outra live, Maya e o antropólogo Piero Leirner, principal analista de guerra híbrida do Brasil, informaram-me sobre as inúmeras complexidades políticas dos vazamentos, enquanto discutíamos a geopolítica no Sul Global.
As listas do CC5 estão aqui, aqui e aqui . Vejamos o que as torna tão especiais.
Em 1969, o Banco Central do Brasil criou o que viria a ser conhecida como a
"conta CC5", para facilitar empresas e executivos estrangeiros na
transferência legal de pequenos ativos para o exterior. Por muitos anos, o
fluxo de caixa nessas contas não foi significativo. Então, nos anos 90, tudo
mudou, com o surgimento de uma grande e complexa movida criminosa
focada na lavagem de dinheiro [N. do T. preferiu-se aqui, com o termo
"movida", em parte fazer uma evocação ao bem conhecido movimento
boêmio-cultural espanhol , como uma onda, uma agitação, mas também
evocar a polissemia que o termo guarda no castelhano
latino-americano ].
A investigação original do Banestado começou em 1997. O promotor federal Celso
Três ficou surpreso ao descobrir que, de
O relatório do promotor Celso Três deu origem a uma investigação federal, que
partiu de Foz do Iguaçu – estrategicamente situada na tríplice fronteira
Brasil, Argentina e Paraguai –, onde os bancos locais lavavam fundos vultosos
através de suas contas CC5.
Eis como funcionava: os doleiros do mercado negro, em conluio com
funcionários dos bancos e do governo, faziam uso uma vasta rede de contas
bancárias, em nome de insuspeitos laranjas [1] e
de empresas fantasmas, para lavar recursos ilegais oriundos de corrupção
pública, fraude tributária e crime organizado, em especial por meio do Banco do
Estado do Paraná ( Banestado )
em Foz do Iguaçu. Daí chamar-se "caso Banestado".
Até
Através de uma ordem judicial, Castilho e sua equipe revisaram 137 contas do
Banestado
Depois de um mês
Em abril de 2003, Castilho identificou uma conta particularmente interessante
no banco Chase Manhattan, chamada "Tucano" – alcunha do PSDB,
liderado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), no poder antes de
Lula e que mantivera laços muito próximos às máquinas políticas do presidente
norte-americano Bill Clinton e do primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Castilho foi fundamental na criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) sobre o caso Banestado. Mas, mais uma vez, essa Comissão não levou a
lugar algum. Não houve sequer a votação de um relatório final. A maioria das
empresas negociou acordos com a Receita Federal do Brasil e, assim, encerrou
qualquer possibilidade de ação judicial no que respeita à sonegação de impostos.
O caso Banestado encontra a Lava Jato
Em essência, os dois maiores partidos políticos, o PSDB neoliberal, de FHC, e o
Partido dos Trabalhadores, de Lula – que jamais enfrentaram de fato as
maquinações imperialistas e a classe rentista brasileira – participaram ativamente
para enterrar uma investigação aprofundada do caso.
Além disso, ao suceder a FHC, Lula, de forma consciente ou talvez na intuição
de preservar a governabilidade, tomou a decisão estratégica de não investigar a
corrupção tucana, embalada por uma série de privatizações desonestas.
Os promotores de Nova York chegaram ao ponto de preparar uma lista especial do
Banestado para Castilho, com o que realmente importava para o processo
criminal: o circuito completo do esquema de lavagem de dinheiro, apresentando
os fundos inicialmente remetidos de forma ilegal para fora do Brasil, por meio
das contas CC5; sua passagem através das agências,
No entanto, o ministro da Justiça brasileiro, Marcio Thomaz Bastos, nomeado por
Lula, bloqueou o avanço das investigações. Como nota metaforicamente o
superintendente Castilho: "Isso me impediu de voltar ao Brasil com
o cadáver do crime".
Embora Castilho nunca tenha posto as mãos nesse documento crítico, pelo menos
dois deputados brasileiros, dois senadores e dois promotores federais, que mais
tarde ascenderiam à fama como "estrelas" da operação Lava Jato –
Vladimir Aras e Carlos Fernando dos Santos Lima, – o teriam obtido .
Por que e como o documento – chamêmo-lo de "saco de corpos" – nunca
foi encontrado nos processos criminais no Brasil é ainda um mistério
complementar a cobrir todo o enigma.
Enquanto isso, existiriam relatórios "não confirmados" (várias fontes
se esquivam em registrar isso) de que esse documento pode ter sido usado para
extorquir os envolvidos, majoritariamente bilionários, que figuram na lista.
Moro enterrou o caso
O
condimento extra, na esfera judicial, está no fato de que o juiz estadual
acusado por alguns de enterrar o caso Banestado não era outro senão Sergio
Moro, a figura autoassumida como o Elliot Ness dos trópicos, que na próxima
década alcançaria a condição de superestrela, como o capo di tutti
capi da Lava Jato e daí, por consequência, ministro da Justiça de
Bolsonaro. Moro acabou renunciando e agora já está, de fato, fazendo campanha
para concorrer à presidência em 2022.
E aqui chegamos à conexão tóxica Banestado-Lava Jato. Considerando
especulações, sobre o suposto modus operandi de Moro na Lava Jato, de alterar
nomes nos documentos com a finalidade de pôr Lula na cadeia, o desafio agora
seria provar se Moro "vendia" não-condenações no caso Banestado. Ele
dispunha de uma desculpa legal conveniente: sem o "corpo do crime"
arrolado no processo criminal no Brasil, ninguém poderia ser considerado
culpado.
À medida que mergulhamos nos detalhes excruciantes, o Banestado se parece cada
vez mais com o fio de Ariadne que pode desvelar o começo da destruição da
soberania do Brasil. Um conto cheio de lições a serem aprendidas por todo o Sul
Global.
O rei do dólar paralelo
Naquela live épica, Castilho fez soar um alarme quando se referiu a
17 milhões de dólares que haviam transitado pela filial do Banestado
É a primeira vez que essas informações são divulgadas – e suas ramificações
podem ser explosivas. Estamos falando de fundos duvidosos, possivelmente de
operações com drogas e armas, saindo da tríplice fronteira, que historicamente
é um dos grandes nódulos de operações clandestinas da CIA e do Mossad.
O financiamento pode ter sido proporcionado pelo chamado rei do dólar paralelo,
Dario Messer, via contas CC5. Não é segredo que os operadores do mercado
paralelo na tríplice fronteira estão todos conectados ao tráfico de cocaína do
Paraguai – e também a evangélicos. Essa é a base do que Romulus Maya, Piero
Leirner e eu já caracterizamos como o " Evangelistão da Cocaína ".
Messer é uma engrenagem indispensável na máquina de reciclagem associada ao
tráfico de drogas. O dinheiro viaja para paraísos fiscais sob a proteção do
imperialismo, é devidamente lavado, e ressuscita gloriosamente
O que realmente importa é a livre circulação de cocaína; escondida – por que
não? – numa inusitada carga de soja – o que, de quebra, garante a saúde do
agronegócio. Essa é uma imagem duplicada da rota da heroína da CIA no
Afeganistão, que eu detalhei em outro lugar .
Em termos políticos, Messer é, antes de mais nada, o elo perdido crucial da
ligação com Moro. Até uma grande mídia como O Globo foi forçada a
admitir, em novembro passado, que os negócios sombrios de Messer foram "monitorados" sem trégua por duas décadas ,
por diferentes agências de inteligência norte-americanas, em Assunção e em
Ciudad del Este, no Paraguai. Moro, por sua vez, é um trunfo para duas
diferentes agências norte-americanas – o FBI e a CIA –, além do Departamento de
Justiça.
Nessa trama complexa, Messer pode ser o coringa [2] .
Mas também existe um Falcão Maltês, e, como aquele imortalizado no filme
clássico de John Huston [a partir da obra literária homônima de Dashiell
Hammett], existe apenas um Falcão Maltês . Ele está atualmente
em um cofre na Suíça.
Refiro-me aos documentos oficiais originais, apresentados pela gigante da
construção civil Odebrecht à operação Lava Jato, que foram indiscutivelmente "manipulados" , "a
princípio" pela própria empresa, mas também, "talvez", em
conluio com o então juiz Moro e a equipe de acusação liderada por Deltan
Dallagnol.
E isso foi feito não apenas com o objetivo de incriminar Lula e as pessoas
próximas a ele, mas também, estrategicamente, para excluir qualquer menção a
indivíduos que não deviam, sob hipótese alguma, ser trazidos à luz… ou aos
bancos dos tribunais. E, sim, você adivinhou se pensou no rei do dólar
paralelo, ao que tudo indica, acolitado pelos Estados Unidos.
O primeiro impacto político sério que se seguiu à liberação dos vazamentos do
caso Banestado é que os advogados de Lula, Cristiano e Valeska Zanin,
finalmente, e de forma oficial, solicitaram às autoridades suíças a entrega dos
originais .
O ex-governador Roberto Requião, aliás, foi o único político brasileiro a pedir publicamente a Lula , em fevereiro, que buscasse
os documentos na Suíça. Não é surpresa que Requião seja agora a primeira figura
pública no Brasil a pedir a Lula que torne ostensivo todo o seu conteúdo, tão
logo o ex-presidente ponha as mãos nele.
A lista real, não adulterada, de pessoas envolvidas na corrupção da Odebrecht
está repleta de grandes nomes – incluindo a elite judiciária.
Confrontando as duas versões, os advogados de Lula podem, finalmente, ser
capazes de demonstrar a fabricação de "evidências" que levaram à
prisão de Lula e também, entre outros desdobramentos, ao exílio do
ex-presidente do Equador Rafael Correa, à prisão de seu ex-vicepresidente Jorge
Glas, a prisão do ex-presidente Ollanta Humala e sua esposa e, mais
dramaticamente, ao suicídio
do ex-presidente do Peru, Alan Garcia .
O Patriot Act brasileiro
A grande questão política agora não é descobrir o grande mestre manipulador que
enterrou o escândalo do Banestado há duas décadas. Como detalhou o antropólogo
Piero Leirner, o que importa é que a apuração das informações contidas no
vazamento das contas CC5 do caso se concentre no maquinário de como a corrupta
grande burguesia brasileira, em associação com políticos e agentes do
Judiciário (nacionais e estrangeiros), se entronizou como classe rentista e,
ainda assim, eternamente submissa e controlada pelos arquivos
"secretos" do imperialismo.
O vazamento inédito da lista de contas CC5 do Banestado pode permitir o
reconhecimento do sentido dos lances políticos por trás do fracasso recente de
Lula. Trata-se de uma guerra de espectro total ("híbrida"), onde piscar
não é uma opção. E o projeto geopolítico e geoeconômico de destruir a soberania
do Brasil e transformá-la em uma subcolônia imperial está vencendo, sem dúvida.
O potencial explosivo desses vazamentos do Banestado e do CC5gate pode ser
medido pela reação dos diversos limited hangouts [3] ["mediadores
coarctativos" ou "entregadores limitados" ou, numa velha
terminologia sindical, "pelegos"]: um silêncio estrondoso, que
abrange partidos de esquerda e meios alternativos supostamente progressistas
[N. do T.: a começar pelo portal Brasil247, onde o site Duplo
Expresso e a pessoa do seu coordenador são sistemática e impiedosamente
desqualificados pelo seu suspeito diretor, o jornalista Leonardo Attuch, a quem
Paulo Henrique Amorim identificara como um prestador de serviços
jornalísticos do banqueiro Daniel Dantas]. Para a grande mídia, por seu turno,
para quem o ex-juiz Moro é uma vaca sagrada, um vazamento como esse é
considerado, na melhor das hipóteses, uma "história antiga",
" fake news " ou até mesmo não mais que uma
"farsa".
Lula está diante de uma decisão fatídica. Com acesso a nomes até agora mantidos
nas sombras pela Lava Jato, ele pode ser capaz de detonar uma bomba de nêutrons
e resetar todo o jogo político, expondo um furúnculo de ministros do
Supremo ligados à Lava Jato, promotores federais, promotores estaduais,
jornalistas e até mesmo generais que receberam fundos da Odebrecht no exterior.
Sem falar de trazer para a berlinda o rei do dólar paralelo, Dario Messer,
quem, de fato, controla o destino de Moro. Isso significa, em última instância,
apontar um dedo diretamente para o estado profundo dos Estados Unidos. Não vai
ser uma decisão fácil de tomar.
Agora está claro que os credores do Estado brasileiro eram, originalmente,
devedores. Cruzando as contas, seria possível fechar o círculo contábil do
lendário "desequilíbrio fiscal" do Brasil – exatamente no momento em
que essa praga é embandeirada, mais uma vez, com a intenção de dizimar os
ativos do precarizado Estado brasileiro. O ministro das Finanças, Paulo Guedes,
neopinochetista e líder de torcida de Milton Friedman, já avisou que vai
continuar vendendo empresas estatais como se não houvesse amanhã.
O plano B de Lula seria fechar um tipo de acordo que enterraria todo o dossiê –
exatamente como a investigação original do Banestado foi enterrada há duas
décadas – na tentativa de preservar a liderança do Partido dos Trabalhadores
como uma oposição domesticada, sem tocar naquilo que se tornou o essencial na
questão: como e por que Guedes está vendendo o Brasil.
Essa parece ser a opção preferida de Fernando Haddad, que perdeu a eleição
presidencial para Bolsonaro em 2018 e é uma espécie de versão brasileira de
Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile. Ele é um neoliberal envergonhado,
que sacrificaria tudo para ter mais uma oportunidade de ascender ao poder,
possivelmente em 2026.
Se o Plano B acontecer, ele pode vir a galvanizar a ira dos sindicatos e
movimentos sociais – a classe trabalhadora brasileira de carne e osso, que está
às portas de ser dizimada pelo neoliberalismo anabolizado e pelo conluio tóxico
da versão
brasileira, inspirada nos EUA, do Patriot Act , com esquemas militares
que lucram com o Evangelistão da Cocaína.
E tudo isso depois que Washington – com sucesso – quase destruiu a campeã
nacional Petrobras, um dos alvos iniciais da espionagem da NSA. Zanin, advogado
de Lula, também acrescenta – e talvez já seja tarde demais – que a
"cooperação informal" entre Washington e a operação Lava Jato, nos
termos do Decreto 3.810/02, era, na realidade, ilegal.
O que Lula vai fazer?
No pé em que está a apuração das informações a partir do vazamento do caso
Banestado, uma primeira lista VIP do Banestado foi elaborada. Ela inclui o
atual presidente do Superior Tribunal Eleitoral e ministro do Supremo, Luis
Roberto Barroso, banqueiros, magnatas da mídia e industriais. O promotor da
operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, por sua vez, parece ser muito próximo da corte judiciária neoliberal instalada
no STF.
A lista VIP pode ser lida como um roteiro das práticas de lavagem de dinheiro
dos brasileiros do 0,01% – estimados em aproximadamente 20 mil famílias
detentoras da dívida interna brasileira de quase um milhão de milhões (trilhão) de dólares . Uma
grande parte desses fundos foi reciclada para voltar ao Brasil como
"investimento estrangeiro" através do esquema CC5 na década de 1990.
E foi exatamente assim que a dívida interna do Brasil explodiu.
Ainda assim, ninguém sabe, em detalhes, onde a torrente de dinheiro sujo,
lavada pelo Banestado, realmente acabou chegando. A "bolsa do
defunto" nunca foi formalmente reconhecida como tendo sido trazida de
volta de Nova York, e nunca entrou em nenhum processo criminal. No entanto, o
crime de lavagem de dinheiro pode ser considerado como continuado – e, assim,
sua prescrição não seria aplicável. Portanto, alguém ou alguns, poderiam ir para
a cadeia. Parece que, para breve, não vai ser o caso.
Enquanto isso, patrocinado pelo Estado Profundo dos Estados Unidos, pelas
finanças transnacionais e pelos operadores das elites locais – alguns de farda,
outros de toga – o golpe de guerra híbrida em câmera lenta contra o Brasil
continua se espraiando, dia após dia, aproximando-se do domínio de espectro
total.
O que nos leva à questão-chave final: o que Lula vai fazer a respeito?
25/Julho/2020
NR
[1] "Laranjas": pessoas que emprestam os seus nomes para a
concretização de operações ilícitas.
[2] Coringa: jóquer (carta do baralho).
[3] Limited hangouts: Pode-se traduzir como "divulgação
às pinguinhas". É o que faz o Intercept do jornalista Greenwald, em
oposição ao método da WikiLeaks de divulgar na integra todo o manancial de
documentos dando acesso aos mesmos a qualquer investigador.
[*] Jornalista
O original encontra-se em Asia Times
e a tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel em Outras Palavras
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
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