História de um muro branco e de
uma neve preta
Não haveria nada mais fácil no
mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele,
se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O
nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos,
foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se
limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os
quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres
humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois
continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra
maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas
autênticas, ambas verdadeiras.
A terra, àquela hora, cobria-se
de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol.
Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira
cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala
quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de
gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos
troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira
se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce,
divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina
os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o
frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso
e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas
húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e
de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos
trabalhos, como um formigueiro.
Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de
três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que
naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no
alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de
açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo
grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do
cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar,
mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano
que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.
A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva
como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado,
corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras
estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O
caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que
rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo
de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta
para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a
Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta
aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira
uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos
calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se
estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha,
e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno
ofício de fabricante de cinzas.