#Publicado em português do Brasil
Não é negligência, nem fracasso. É um crime; escolha consciente de uma oligarquia global movida por ética de narcisismo e indiferença. A opção é a revolta – não só pelo que pode realizar, mas pelo que nos permite ser. Nesse devir, há esperança
Chris Hedges no ScheerPost |
Os dois milhões de mortes — resultado de uma péssima gestão da pandemia global pela elite governante –, estão prestes a ser ofuscados pelo que vem a caminho. A catástrofe global que nos espera, já inserida no ecossistema devido ao nosso fracasso em restringir o uso de combustíveis fósseis e da pecuária industrial, pressagia novas pandemias mais mortais, migrações em massa de bilhões de pessoas desesperadas, queda na produção das safras, fome geral e o colapso dos sistemas
A ciência que vem elucidando essa morte social é conhecida pelas elites dominantes. A ciência que nos alertou sobre esta pandemia, e sobre as outras que virão, também é conhecida pelas elites governantes. Assim como a ciência que denunciou que o fracasso em deter as emissões de carbono levará a uma crise climática e, em última instância, à extinção da espécie humana e da maioria das outras espécies, é conhecida pelas elites dominantes. Elas não podem alegar ignorância. Apenas indiferença.
Os fatos são incontestáveis. Cada uma das últimas quatro décadas foi mais quente do que a anterior. Em 2018, o Painel Internacional das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas divulgou um relatório especial sobre os efeitos sistêmicos de um aumento de 1,5ºC nas temperaturas. Trata-se de uma leitura muito sombria. O aumento vertiginoso da temperatura — já estamos a 1,2ºC acima dos níveis pré-industriais — é um fato real no sistema, o que significa que mesmo se interrompêssemos todas as emissões de carbono hoje, ainda enfrentaríamos uma catástrofe. Qualquer coisa acima de um aumento de temperatura de 1,5ºC tornará a Terra insuportável. Espera-se que o gelo do Ártico derreta junto com a camada de gelo da Groenlândia, independentemente de quanto reduzirmos as emissões de carbono. Uma elevação do nível do mar em sete metros ocorrerá assim que o gelo terminar de derreter; isso significa que todas as cidades e vilas costeiras ao nível do mar terão que ser evacuadas.
Roger Hallam, cofundador do Extinction Rebellion, cujos atos não-violentos de desobediência civil em massa oferecem a última e melhor chance de nos salvarmos, explica a questão neste vídeo:
À medida em que a crise climática se agrave, as restrições políticas irão piorando, dificultando a resistência pública. Ainda não vivemos no estado orwelliano brutal que começa a aparecer no horizonte, onde todos os dissidentes sofrerão o destino de Julian Assange. Mas esse estado não está longe. Temos que agir agora.
Apesar do acelerado e tangível colapso ecológico, as elites dominantes nos apaziguam, seja com gestos sem sentido ou através da negação. Eles são os arquitetos do assassinato social.
O assassinato social, como Friedrich Engels observou em seu livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” — escrito em 1845 e uma das obras mais importantes da história social — é intrínseco ao sistema capitalista. As elites governantes, escreve Engels, aquelas que detêm “controle social e político”, estavam cientes de que as duras condições de trabalho e de vida durante a revolução industrial condenavam os trabalhadores a “uma morte prematura e não natural”:
“Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, chamamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural, uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os, através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito consequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e, ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar, assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio disfarçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”
A classe dominante utiliza grandes quantidades de recursos para mascarar esse assassinato social. Ela controla a narrativa na imprensa. Ela falsifica a ciência e os dados, como a indústria de combustíveis fósseis tem feito há décadas. Ela cria comitês, comissões e organismos internacionais, como as cúpulas do clima da ONU, para fingir que está lidando com o problema. Ou nega a existência do problema, apesar das drásticas mudanças nos padrões climáticos.
Faz tempo que os cientistas vêm alertando que, à medida que as temperaturas globais subirem, desencadeando o aumento das precipitações e das ondas de calor em muitas partes do mundo, as doenças infecciosas disseminadas por animais passarão a afetar as populações em qualquer época do ano, e se expandirão para as regiões do norte. Pandemias como a do HIV/AIDS, que matou aproximadamente 36 milhões de pessoas; a gripe asiática, que matou entre um e quatro milhões; e a COVID-19, que já matou mais de 2,5 milhões se espalharão pelo mundo com cepas cada vez mais virulentas, sofrendo mutações constantes, para além do nosso controle. O uso indevido de antibióticos na indústria da carne, que responde por 80% de todo o uso de antibióticos, produziu cepas de bactérias que se tornaram resistentes, e portanto, fatais. Uma versão moderna da Peste Negra, que no século 14 matou entre 75 e 200 milhões de pessoas, eliminando talvez metade da população da Europa, é praticamente inevitável, enquanto as indústrias farmacêutica e médica estiverem configuradas para ganhar dinheiro em vez de proteger e salvar vidas.
Não há sequer infraestrutura para produzir e distribuir as vacinas de maneira eficiente, porque o lucro fica acima da saúde. E as populações no Sul global estão, como sempre, abandonadas, como se as doenças que as matam nunca fossem nos alcançar. A decisão de Israel de distribuir vacinas contra a Covid-19 para até 19 países, ao mesmo tempo que se recusa a vacinar os 5 milhões de palestinos que vivem sob sua ocupação, é emblemática para ilustrar a impressionante miopia da elite governante — isso para não citar a imoralidade.
Tudo isso que está em curso não é negligência. Não é inépcia. Não é uma falha da política. É um assassinato. É assassinato, porque é premeditado. É assassinato, porque foi feita uma escolha consciente pelas classes dominantes globais para extinguir a vida, em vez de protegê-la. É um assassinato porque o lucro, apesar das duras estatísticas, dos crescentes problemas climáticos e da modelagem científica, é considerado mais importante do que a vida e a sobrevivência humanas.
As elites prosperam nesse sistema, desde que cumpram com os ditames daquilo que Lewis Mumford chamou de a “megamáquina”, a convergência de ciência, economia, técnica e poder político unificados em uma estrutura burocrática e integrada, cujo único objetivo é perpetuar-se. Essa estrutura, observou Mumford, é a antítese dos “valores que melhoram a vida”. Mas desafiar a megamáquina, dar nome ao seu desejo de morte e condená-lo, envolve ser expulso de seu santuário interno. Há, sem dúvida, alguns dentro da megamáquina que temem o futuro, que talvez até fiquem horrorizados com o assassinato social, mas que não estão dispostos a perder seus empregos e sua condição social para se tornarem párias.
A enorme quantia de recursos alocados nos orçamentos militares — que nos EUA, quando somados aos custos com veteranos de guerra, somam US$ 826 bilhões por ano — são o maior exemplo de nossa loucura suicida, sintomática de toda civilização decadente, dessas que gastam seus recursos cada vez mais escassos em instituições e projetos que aceleram seu próprio declínio.
A máquina de guerra norte-americana — que responde por 38% dos gastos militares do mundo inteiro — são incapazes de combater a verdadeira crise de nossa existência. Os caças, satélites, porta-aviões, frotas de navios de guerra, submarinos nucleares, mísseis, tanques e vastos arsenais de armamento são inúteis contra as pandemias e a crise climática. A máquina de guerra nada faz para mitigar o sofrimento humano causado por ambientes degradados que adoecem e envenenam populações ou tornam a vida insustentável. A poluição do ar já mata cerca de 200 mil nore-americanos por ano, enquanto as crianças em cidades decadentes como Flint (Michigan), ficam com sequelas para o resto da vida por causa do chumbo que contamina sua água potável.
A continuação de guerras fúteis, sem fim, que custam entre US$ 5 e US$ 7 trilhões de dólares, a manutenção de cerca de 800 bases militares em mais de 70 países, junto com a fraude endêmica, o desperdício e a má gestão do Pentágono em um momento em que a sobrevivência da espécie está em jogo, tudo isso é autodestrutivo. O Pentágono gastou mais de US$ 67 bilhões só num sistema de defesa contra mísseis balísticos que poucos acreditam que funcionará de fato, além de muitos outros bilhões numa série de sistemas de armas ineficazes, incluindo o destróier Zumwalt, de US$ 22 bilhões. E, além de tudo isso, os arsenais dos EUA emitiram 1,2 bilhões de toneladas métricas em emissões de carbono entre 2001 e 2017, o dobro do que os veículos de passageiros produziram a cada ano no país.
Daqui a uma década, olharemos para trás, para a atual classe dominante global como a mais criminosa da história da humanidade, condenando deliberadamente milhões e milhões de pessoas à morte, incluindo as desta pandemia. A classe atual faz com que os excessos assassinos dos homicidas do passado pareçam irrelevantes, mesmo no caso dos europeus que cometeram o genocídio dos povos indígenas nas Américas, dos nazistas que exterminaram cerca de 12 milhões de pessoas, dos stalinistas ou da Revolução Cultural de Mao. Este é o maior crime contra a humanidade já cometido. Está sendo cometido diante de nossos olhos. E, salvo poucas exceções, estamos sendo conduzidos voluntariamente como ovelhas rumo ao abate.
Não é que a maioria das pessoas tenha fé nas elites governantes. Elas sabem que estão sendo traídas, mas sentem-se vulneráveis e com medo. Entendem que sua miséria não é reconhecida e não é importante para as elites globais, que concentram uma quantidade impressionante de riqueza e poder nas mãos de uma pequena cabala de oligarcas gananciosos.
A raiva que muitos sentem por causa de seu abandono é frequentemente expressa na forma uma solidariedade envenenada. Esta solidariedade envenenada une os marginalizados em torno de crimes de ódio, racismo, atos de vingança contra bodes expiatórios, chauvinismo religioso e étnico, e violência niilista. Promove cultos de crise, como os construídos pelos fascistas cristãos, e eleva demagogos como Donald Trump.
As divisões sociais beneficiam a classe dominante, que construiu depósitos de mídias para alimentar com pacotinhos de ódio os grupos demográficos concorrentes. Quanto maiores os antagonismos sociais, menos temem as elites. Se aqueles contagiados pela solidariedade envenenada se tornarem numericamente superiores — quase metade do eleitorado norte-americano rejeita a classe dominante tradicional e abraça teorias da conspiração e um demagogo — as elites irão acomodar uma nova configuração de poder, e isso acelerará o assassinato social.
O governo Biden não irá encarar as reformas econômicas, políticas, sociais ou ambientais de que precisamos para nos salvar. A indústria de combustíveis fósseis continuará a extrair petróleo. As guerras não vão acabar. A desigualdade social vai crescer. O controle do governo, com suas forças policiais militarizadas de ocupação interna, vigilância por atacado e perda das liberdades civis, vai se expandir. Novas pandemias, em conjunto com secas, incêndios florestais, furacões monstruosos, ondas de calor paralisantes e inundações, devastarão o país, bem como uma população sobrecarregada por um sistema de saúde com fins lucrativos que não foi projetado ou preparado para lidar com uma crise nacional de saúde.
O mal que torna possível esse assassinato social é coletivo. É perpetrado pelos burocratas e tecnocratas alienados que saem das escolas de negócios, faculdades de direito, programas de gestão e universidades de elite. Esses gerentes de sistemas realizam as tarefas incrementais para que sistemas vastos e complicados de exploração e morte funcionam. Eles coletam, armazenam e manipulam nossos dados pessoais para monopólios digitais e para o Estado de segurança e vigilância.
Eles lubrificam as rodas da ExxonMobil, British Petroleum e Goldman Sachs. Escrevem as leis aprovadas por uma classe política comprada e paga. Eles pilotam drones aéreos que aterrorizam os pobres no Afeganistão, Iraque, Síria e Paquistão. Lucram com as guerras sem fim. São os conselheiros corporativos, especialistas em relações públicas e experts em televisão que inundam as ondas eletromagnéticas com mentiras. Eles dirigem os bancos. Eles supervisionam as prisões. Eles emitem os formulários. Eles processam os papéis. Eles negam vale-refeição e cobertura médica para alguns e benefícios de desemprego para outros. Eles realizam os despejos e fazem cumprir as leis e os regulamentos. Eles não fazem perguntas. Eles vivem em um vácuo intelectual, um mundo de minúcias embrutecedoras. Eles são “os homens vazios”, “os homens de pelúcia”, de T.S. Eliot. “Silhueta sem forma, sombra sem cor”, diz o poeta. “Força paralisada, gesto sem movimento.”
Esses administradores de sistema possibilitaram os genocídios do passado, desde o extermínio de nativos americanos até a matança dos armênios pelos turcos, ao Holocausto nazista e às liquidações de Stalin. Eles mantiveram os trens funcionando. Eles preencheram a papelada. Eles apreenderam a propriedade e confiscaram as contas bancárias. Eles fizeram o processamento. Eles racionaram a comida. Eles administraram os campos de concentração e as câmaras de gás. Eles impuseram a lei. Eles fizeram seu trabalho.
Esses gerentes de sistemas, praticamente desprovidos de educação em qualquer área, com exceção de sua minúscula especialidade técnica, carecem de linguagem e autonomia moral para questionar as suposições ou estruturas reinantes.
Hannah Arendt em “Eichmann in Jerusalem” escreve que Adolf Eichmann foi motivado por “uma extraordinária diligência em cultivar seu progresso pessoal”. Ele se juntou ao Partido Nazista porque era uma boa mudança de carreira. Arendt continua
O problema com Eichmann era precisamente que muitos outros eram como ele, e que muitos não eram pervertidos nem sádicos, que eram, e ainda são, terrível e assombrosamente normais.
Quanto mais o ouvíssemos, mais óbvia ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente ligada a uma incapacidade de pensar, quer dizer, de pensar desde o ponto de vista de outra pessoa. Nenhuma comunicação foi possível com ele, não porque ele mentisse, mas porque ele estava cercado pela mais confiável de todas as proteções contra as palavras e a presença de outras pessoas e, portanto, contra a realidade como tal.” — Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”
O romancista russo Vasily Grossman, em seu livro “Forever Flowing” (“Fluindo para Sempre”), observou que “o novo Estado não exigia santos apóstolos, fanáticos, construtores inspirados, discípulos fiéis nem devotos. O novo Estado não exigia sequer empregados — apenas escrivãos”. Essa ignorância metafísica é alimento para o assassinato social.
Não somos capazes de absorver emocionalmente a magnitude da catástrofe que se aproxima e, portanto, não agimos.
No documentário Shoah, de Claude Lanzmann, sobre o Holocausto, ele entrevista Filip Müller, um judeu tcheco que sobreviveu ao extermínio em Auschwitz como membro do “grupo especial.”
“Um dia, em 1943, quando eu já
estava no Crematório 5, chegou um trem de Bialystok. Um prisioneiro do “grupo
especial” viu uma mulher que era esposa de um amigo dele, no vestiário. Ele foi
direto a ela e lhe disse: ‘Você vai ser exterminada. Em três horas, você será
cinzas’. A mulher acreditou nele porque o conhecia. Ela correu e avisou às
outras mulheres. ‘Nós vamos ser mortos. Vão nos dar gás’. Mães carregando seus
filhos nos ombros não queriam ouvir isso. Resolveram que a mulher era louca e a
expulsaram. Então, ela foi até os homens. Sem sucesso. Não que eles não
acreditassem nela. Eles tinham ouvido rumores no gueto de Bialystok, ou em
Grodno, e em outros lugares. Mas quem queria ouvir isso? Quando percebeu que
ninguém iria ouvi-la, ela arranhou todo o seu rosto. Desesperada.
No entanto, deixar de agir — e isso envolve realizar atos de desobediência civil sustentada e não violenta, em massa, numa tentativa de esmagar a megamáquina — é morte espiritual. É sucumbir ao cinismo, hedonismo e entorpecimento que transformou em engrenagens humanas aqueles gerentes de sistemas e tecnocratas que orquestram o assassinato social. É entregar nossa humanidade. É nos tornarmos cúmplices.
Albert Camus escreve que “uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. É um confronto constante entre o homem e sua obscuridade. Não é aspiração, pois é desprovida de esperança. Essa revolta é a certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que costuma acompanhá-la”.
“Um homem vivo pode ser escravizado e reduzido à condição histórica de objeto”, alerta Camus. “Mas se morre recusando-se a ser escravizado, ele reafirma a existência de outro tipo de natureza humana que se recusa a ser classificada como um objeto.”
A capacidade de exercer a autonomia moral, de se recusar a cooperar, de destruir a megamáquina, oferece-nos a única possibilidade que resta à liberdade pessoal e a uma vida com sentido. A rebelião é sua própria justificativa. Ela corrói, ainda que imperceptivelmente, as estruturas de opressão. Ela sustenta as brasas da empatia e da compaixão, bem como da justiça. Essas brasas não são insignificantes. Elas mantêm viva a capacidade de sermos humanos. Elas mantêm viva a possibilidade, por mais fraca que seja, de que as forças que orquestram nosso assassinato social possam ser interrompidas. A rebelião deve ser abraçada, finalmente, não apenas pelo que ela vai realizar, mas pelo que ela permite nos tornarmos. Nesse devir, encontramos a esperança.
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