domingo, 7 de março de 2021

Portugal | Representantes de luxo

Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião

Há quase uma década, o socialista Francisco Assis enchia noticiários, redes sociais e até petições com a tirada: "Qualquer dia querem que o líder parlamentar do PS ande de Clio." Ora. É que não faltava mais nada. Nessa semana, tudo começou com as declarações de Carlos Zorrinho sobre as novas viaturas da bancada socialista. O líder parlamentar do PS sublinhou que deixara de utilizar BMW para passar a Audi 5 e poupar dinheiro aos cofres do Estado. Ou seja, já então, a opinião pública repudiava estas soberbas, mas os governantes alheavam-se do seu próprio grotesco e insistiam, possidónios, em caprichos para cumprirem as suas estritas e honrosas obrigações. Pior é que, dez anos volvidos, tudo continua igual. O governante lusitano, imperturbável perante a agonia de quem já perdeu o emprego, o ganha-pão, a casa ou a sanidade mental, à pala da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, adquiriu agora 125 automóveis de luxo. Queriam o quê? Um citadino amarelo? Mas não só. Mesmo sem reuniões presenciais à vista, o governo decidiu investir em lencinhos e gravatas de seda de padrão personalizado, num centro de imprensa-fantasma, vinhos e espumantes, numa elefantíase que até já está a ser ridicularizada na imprensa internacional.

A sobriedade de um eleito nórdico que usa os transportes públicos ou se desloca a pé e que assim confere estatuto a qualquer bicicleta ou calhambeque continua a léguas das ambições da nossa classe política. Reparem que não se trata de um apelo ao miserabilismo, mas de um lamento pelo défice de contenção, racionalidade e respeito que leva a que, nomeadamente, se tema o pior relativamente aos apoios europeus. Neste capítulo, o nosso histórico parece um cadastro que, ao longo dos anos, fez com que Portugal tenha sido ultrapassado por muitos países do Leste que chegaram bem mais tarde à UE, caindo para os últimos lugares em PIB per capita. Há quem atribua este desaire às lacunas de educação formal com que partimos, mas a saloiice da nossa classe política e sua endémica corrupção não podem sumir-se do algoritmo. Tanto assim é que o capítulo dedicado à boa gestão dos fundos no pueril Plano de Recuperação e Resiliência é uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma, escancarando a porta para a pilhagem. Análises de custo-benefício, dados concretos, avaliações prévias, tudo o que permita o escrutínio, a transparência e o são debate público não constam. Vai de carrinho.

O início da nossa presidência europeia ficou marcado pela ignomínia do executivo de falsificar um CV para o cargo de procurador europeu para conseguir colocar um boy num lugar independente que visa, justamente, combater a corrupção. Este começo foi também troçado no exterior, ainda que a ministra da Justiça culpasse um administrativo, à boa maneira dos cobardolas chefes lusos de acusar o porteiro ou o contabilista. Portanto, a nossa hipótese de apresentar e projectar um país e uma missão debutou com a tentativa do governo de aldrabar portugueses e europeus e há-de terminar em Junho com os nossos representantes adornados com lenços de seda, ensopados em espumante num Navio de Loucos, indiferentes ao país que se afunda e à Europa que pasma e condena. No final, estes governantes tentarão imputar a tragédia ao povo ou ao motorista. Mas jamais ao carro topo de gama. Tão-pouco ao crime de atropelamento e fuga.

*Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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