Foram formuladas diversas teorias para explicar a baixa progressão do coronavírus. Um hospital sul-africano planeava uma experiência que poderia desvendar o mistério, mas foi traído por um problema técnico.
comunidade científica mundial está surpreendida com as baixas taxas de infeção e mortalidade causadas pelo covid-19 no continente africano.
De acordo com a BBC News, há mesmo um enigma difícil de decifrar quando se tenta arranjar explicações para o facto de haver tão poucos casos em comparação, por exemplo, com a Europa ou os Estados Unidos, num continente com elevados níveis de pobreza, higiene deficiente, com bairros e casas sobrelotadas e, como tal, impossibilidade de se cumprir o distanciamento social.
No início da pandemia, foram muitos os especialistas que anteciparam o pior cenário para África, tendo em conta os factos que favoreciam uma rápida disseminação do novo coronavírus. "Achei que estávamos a caminhar para um desastre, um colapso completo", disse Shabir Madhi, o principal virologista da África do Sul. A esta ideia juntava-se a perceção de que mesmo o sistema de saúde sul-africano, o mais desenvolvido do continente, iria ficar rapidamente sobrecarregado.
Só que nada disso aconteceu e a África do Sul tem, por exemplo, uma taxa de mortalidade por covid-19 sete vezes mais baixa do que a do Reino Unido, apesar de a possibilidade de algumas mortes não ter entrado nos registos oficiais.
"A maioria dos países africanos não tem pico de infeções. Não percebo porquê. Estou completamente perdido", admitiu Salim Abdoul Karim, chefe da equipa consultiva do Ministério da Saúde sul-africano para o covid-19. "É um enigma. É absolutamente inacreditável", concordou Madhi.
Várias teorias foram colocadas em cima da mesa. Uma delas tinha que ver com o facto de a esperança média de vida em África ser cerca de metade daquela que se verifica na Europa e, como tal, poucos são aqueles que vivem até aos 80 anos, por exemplo. "A idade é o fator de risco mais alto nas infeções de covid-19. E a população jovem de África é uma barreira", disse Tim Bromfield, diretor regional do Instituto Tony Blair para a Mudança Global.
Contudo, à medida que a pandemia evoluiu, esta teoria foi sendo abandonada e Salim Abdoul Karim já veio desvalorizá-la: "A idade não é um fator assim tão importante."
Houve ainda quem tivesse defendido que o vírus tinha menor impacto devido à altitude ou às temperaturas mais altas, mas essas explicações também depressa foram abandonadas.
No entanto, há quem considere que o facto de África ser um continente grande e com ligações deficientes poderia estar a favorecer um atraso no pico de infeções, uma vez que o vírus circularia de forma mais lenta. Ainda assim, Karim prefere não dar muita importância a essa teoria porque "não há a certeza se algum dia o vírus irá disseminar-se como um louco em África".
Uma nova teoria foi recentemente desenvolvida pelos cientistas da unidade de Análise de Doenças Infecciosas e de Vacinas, do hospital Baragwanath, no Soweto, que aponta no sentido de a resposta a este enigma poder estar num certo grau de imunidade ao covid-19 desenvolvido pela população africana por ter estado exposta a outros coronavírus, responsáveis pelas gripes comuns. "É uma hipótese", admitiu Shabir Madhi, acrescentando haver dados fornecidos por cientistas dos Estados Unidos que também parecem suportar esta hipótese.
Os cientistas sul-africanos questionam, no entanto, a razão pela qual a Índia, que também tem bairros pobres sobrelotados onde há maior possibilidade de exposição a outros coronavírus, não apresentar resultados semelhantes aos de África, ou seja, baixas taxas de infeção e morte por covid-19.
"A proteção pode ser muito mais intensa em áreas densamente povoadas, em contextos africanos. Isso pode explicar por que em grande parte do continente existam infeções assintomáticas ou leves", justificou o Madhi, considerando os dados de África "completamente inacreditáveis".
A ironia é que a pobreza enraizada em África possa estar, pela primeira vez, a funcionar a favor da sua população. Contudo, essa ideia é negada pelos mais céticos, que dão como exemplo o Brasil, onde existem altas taxas de infetados nas favelas sobrelotadas.
A unidade de Análise de Doenças Infecciosas e de Vacinas do hospital Baragwanath, na África do Sul, procurou encontrar uma explicação mais concreta através de amostras de sangue humano recolhidas há cinco anos, conservadas numa câmara frigorífica a 180 graus negativos. O objetivo era analisar as células dessas amostras sanguíneas, conhecidas como PBMC, que serviram de ensaio para uma investigação de uma vacina para uma gripe no Soweto.
O problema é que quando os cientistas se preparavam para testar essas amostras em laboratório verificaram que a temperatura das câmaras frigoríficas tinha oscilado durante esses cinco anos, o que afetou de imediato a fiabilidade dessa experiência. "Estamos muito dececionados", disse Gaurav Kwatra, o líder da equipa de investigação, que promete ainda assim procurar novas amostras para que sejam testadas.
Enquanto isso não acontecer, irá manter-se o enigma em torno dos baixos casos de covid-19 no continente africano.
Diário de Notícias | Imagem: © Fredrik Lerneryd/AFP
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