quinta-feira, 22 de abril de 2021

Implodir o padrão dos descobrimentos

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Está em consulta pública o primeiro programa nacional de combate ao racismo. Antes tarde que nunca, sem dúvida. Mas ao lê-lo salta à vista o cuidado com não afrontar aqueles que, como o primeiro-ministro, dizem recusar "uma visão flageladora da nossa história". Ora assim fica difícil combater o racismo.

ão há um português que não tenha sido educado para achar que aquilo a que se chama "a época dos descobrimentos" e o decorrente império "onde o sol nunca se punha" foram o irrepetível momento de glória da história do país, ao qual se vai buscar perpétua validação e inspiração. Desconstruir esta ideia, ou associar-lhe outras perspetivas, é um projeto de psicanálise coletiva que não se faz, nunca se faria, de um dia para o outro.

Aquilo que teria necessariamente de levar tempo, porém, nunca foi iniciado como projeto político. Nunca houve nos decisores da democracia a determinação de enfrentar o mito - pelo contrário. Nem quando a ONU lançou a década dos afrodescendentes, em 2015, Portugal acordou da sua negação - aliás, pelo contrário, nesse mesmo ano o relatório periódico do país ao Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial, apresentado em setembro (no fim do governo Passos), recusava a necessidade de medidas específicas para os afrodescendentes: "Não há medidas especiais ou discriminações positivas relacionadas com os afrodescendentes. As pessoas de ascendência africana beneficiam, como qualquer outra pessoa em Portugal, de medidas e políticas destinadas a combater o racismo e a promover a integração."

Sete anos depois, a reboque do Plano de Ação da UE contra o Racismo 2020-2025, Portugal apresenta enfim o seu primeiro Programa Nacional de Combate ao Racismo. Em consulta pública até maio, o documento prevê várias medidas importantes e que se saúdam.

Mas salta à vista - pelo menos saltou à minha - que na secção "educação e cultura" se evita abordar claramente a questão do ensino da história e da sua narrativa glorificadora e mistificadora. O que ali se lê é: "Diversificar o ensino e os currículos, designadamente, através da inclusão de conteúdos, imagens e recursos sobre diversidade e presença histórica dos grupos discriminados, e processos de discriminação e racismo, nos currículos manuais escolares de disciplinas obrigatórias, como a disciplina de cidadania e desenvolvimento, no âmbito de atividades curriculares e extracurriculares." E a seguir: "Disponibilizar recursos pedagógicos que promovam uma educação para a igualdade e a não discriminação, incluindo o relato de factos históricos e os seus impactos no racismo da contemporaneidade." Uma pessoa lê isto e fica na dúvida sobre se existirá uma disciplina chamada "história", não é?

Mas depois lembra-se que há pouco mais de um mês o PM se disse preocupado com a "visão autoflageladora da nossa história", "as guerras culturais em torno do racismo e da memória histórica" e o risco delas para a "identidade nacional" - para não falar do facto de ainda em 2017 o presidente ter visitado o ex-entreposto esclavagista de Gorée e afirmado que Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura (o comprovativo clássico de que "nós até fomos os bons").

O problema está longe de se ater aos políticos, porém: em 1997 o júri da Fundação para a Ciência e Tecnologia recusou, alegando que o racismo não é um problema em Portugal, financiamento a um projeto da investigadora Marta Araújo, que se propunha analisar o discurso dos manuais escolares de história sobre a questão racial; em 2001 voltaram a dizer-lhe que "olhar tão para trás na história não é uma forma de trazer progresso." Em 2007 lá conseguiu financiamento, para concluir aquilo que qualquer um de nós concluirá se ler os ditos manuais: que, incrivelmente, não fazem, no que diz respeito à relação com os povos dominados no contexto imperial e colonial, grande diferença do que era a narrativa do Estado Novo, elidindo uma parte considerável daquilo que foi a realidade histórica.

Não se trata pois, como tantos têm repetido a propósito da discussão que enfim se iniciou, de "apagar a nossa história" ou de a "reescrever", mas de trazer para o conhecimento geral aquilo que a investigação histórica da academia há muito estabeleceu, e que é sistematicamente elidido no discurso "oficial", incluindo o da educação dos níveis básico e secundário.

O programa de história do básico e secundário não mexe desde 2002 - ou seja há praticamente 20 anos. A responsabilidade pelos programas, como pela aprovação dos manuais, é das associações de professores - neste caso os de história; os governos limitam-se a homologar. É pois importante saber como a associação dos professores de história tenciona pôr em prática o plano de combate ao racismo na sua disciplina; como pensam contribuir para desfazer estereótipos e complexificar a visão romantizada dos "descobrimentos" e daquilo que se lhes seguiu, exorcizando a ideia verdadeiramente insultuosa de que o colonialismo português "não foi racista".

É evidente que muito tempo se perdeu e que estamos muito atrasados, mas não há outro remédio senão o de ter paciência e começar do princípio - porque é aqui, no princípio, que estamos. E no princípio de tudo está implodir o padrão de descobrimentos que na escola se inculca aos alunos. Para que possam, sem mitomanias, construir a sua identidade. Flagelo é termos chegado à terceira década do século XXI com tanto por fazer.

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