Bom dia este é o seu Expresso Curto
Como acabar com um estado de emergência e como ser salvo por um estado de inteligência
Germano Oliveira | Expresso
Bom dia,
Vai
acabar o estado de emergência mas vai continuar o estado de responsabilidade
individual, “temos de poder contar com cada um de nós, cada português conta
porque cada português sabe que é Portugal”, disse ontem o Presidente da
República; vai
acabar o estado de emergência mas vai continuar o estado de prevenção,
“mesmo sem estado de emergência há que manter ou adotar todas as medidas
consideradas indispensáveis para impedir recuos, retrocessos, regressos a um
passado que não desejamos - acrescento que, se necessário for, avançarei com um
novo estado de emergência”, acrescentou ontem Marcelo Rebelo de Sousa; vai
acabar o estado de emergência mas vai continuar o estado de prudência,
“é bom que fique claro aquilo que têm dito os especialistas: não estamos numa
época livre de covid, livre de vírus, podemos infetar os nossos contactos e
permitir que a doença se continue a transmitir - enfrentamos o risco de novas
variantes menos controláveis pela vacina”, alertou o Presidente; vai acabar o
estado de emergência e começou o estado de agradecimento, “estou-vos grato por
este ano e dois meses de corajosa e disciplinada resistência, cada abertura
implica mais responsabilidade e os tempos próximos serão ainda mais exigentes -
acredito na vossa sensatez”, afirmou ainda Marcelo; vai acabar o estado de
emergência e devemos regressar já este sábado ao estado
de calamidade, estar em
calamidade parece pior que estar em emergência mas em
O Presidente da República declarou
por 15 vezes o estado de emergência e explicou ontem detalhadamente
por que motivo não há por enquanto uma 16ª vez, “pesou a estabilização e até a
descida do número de mortos, a descida de internados em cuidados intensivos, a
redução do indicador de contágio, bem como a estabilização do número de
infetados, pesou também o avanço em testes e, mais importante, em vacinação,
pesou o já terem decorrido mais de um mês sobre a Páscoa e mais de três semanas
sobre a segunda abertura das escolas, pesou ainda o que significaria como
reconhecimento do consistente e disciplinado sacrifício de milhões de
portugueses desde novembro e mais intensamente desde janeiro”, e depois o
Presidente usou esse termo tão bonito e urgente, Esperança, vai com uma letra
grande porque a Esperança está a crescer, que seja ESPERANÇA em breve, mas
voltando ao que disse Marcelo: “[o fim do estado de emergência] é também um
sinal de Esperança mobilizadora para o muito que nos espera a todos na vida e
na saúde, na economia e na sociedade”, portanto haverá certamente sofrimento
ainda antes de a Esperança ser toda feita de capitulares mas também já a há
certeza de que cada vez mais pessoas entre nós estão prontas para enfrentar o
novo mundo que aí vem: 827.839
portugueses já tomaram as duas doses da vacina, são mais 137.844 que na semana
anterior, e 76% das pessoas com mais de 80 anos já têm a vacinação completa -
se quiser mais detalhes consulte estes
gráficos interativos sobre o maior e mais rápido processo de vacinação mundial
(inclui tudo sobre Portugal) e se desejar mais boas notícias veja como
a vacinação está a proteger os mais vulneráveis e dá segurança para o país
continuar a abrir.
O Presidente da República sublinhou na declaração de ontem ao país que a vacinação e os testes pesaram na decisão de acabar com o estado de emergência e há mais novidades relevantes sobre cada um desses fatores: a task force prevê que todas as pessoas com mais de 30 anos estejam vacinadas até setembro (conheça as datas) e a proliferação de autotestes à covid-19 levou as autoridades do Ambiente e da Saúde a elaborar recomendações sobre a forma correta de colocar os kits no lixo depois de serem usados. Agora só falta mesmo o regresso ao estado de normalidade, há gente importante que diz que isso é só no final de 2022, e como vai ser preciso dançar e sorrir a sério nesse final de 2022 ou na data em que a normalidade tiver de reacontecer há um outro tipo de testes em curso para nos prepararmos sem medo para as canções e o humor: Pedro Abrunhosa e o humorista Fernando Rocha nos eventos-teste em Braga. Compra de bilhetes só com agendamento de teste PCR.
OUTRAS NOTÍCIAS
. É preciso saber ganhar, saber perder, saber estar, saber conviver, saber
aceitar a liberdade de imprensa - e isto foi um regresso ao passado que faz
tanto mal ao futuro: Agente
que agrediu repórter de imagem da TVI foi sócio de Alexandre Pinto da Costa na
Energy Soccer e FPF,
Liga e TVI condenam agressão a repórter de imagem no Moreirense-FC Porto e
também Rui
Rio critica alegada “inação” da GNR em agressão a jornalista da TVI;
. sobre as coisas verdadeiramente relevantes no futebol, que são os
futebolistas e os grandes textos que se podem escrever sobre eles: Coates,
o capitão coragem que mudou com o contexto;
. “antigo presidente da Comissão Europeia reuniu-se com Ricardo Salgado a meses
do fim do Banco Espírito Santo, mas nem percebeu como poderia ajudar”: Durão
Barroso garante que a sua Comissão Europeia não tinha como travar a queda do
BES;
. não se esqueça de ler a legenda da fotografia deste texto antes de ler a
prosa: Gaioso
Ribeiro: execução judicial de Luís Filipe Vieira seria “desfavorável” para o
Novo Banco (e depois leia esta Gaioso
Ribeiro: “Fui administrador da Benfica SAD. Isso em nada compromete a minha
idoneidade” e esta Fundo
com créditos de Luís Filipe Vieira não deverá pagar a tempo e horas ao Novo
Banco);
. a única consequência, diz o Instituto Nacional de Estatística, é que o acesso
ao site dos Censos
2021 pode ficar mais lento: Censos.
INE afasta empresa tecnológica “para que não subsistam quaisquer dúvidas da
segurança da informação”;
. ministro das Finanças dá um passo atrás que pode ser um passo em frente para
profissionais na linha da frente contra a covid-19: João
Leão admite rever medidas que PCP disse não estarem a ser cumpridas;
. há um vídeo e um simulador para quem precisar de saber se está a pagar
demasiado: Deco
alerta que “muitos portugueses” pagam mais IMI do que deviam;
. as novas subscrições já vão ter os novos preços, as subscrições existentes só
sofrem alterações no próximo mês: Spotify
vai aumentar preços na Europa - saiba quanto;
. Real Madrid 1-1 Chelsea: Com
que então era este o badalado superfutebol;
. há sentença no caso Dexter (uma
série magnífica que deu nome a um caso trágico em Portugal): Homicídio
no Algarve. Maria Malveiro condenada a pena máxima, ex-companheira Mariana
apanha quatro e é libertada;
. para quem gosta de bom calçado: recomendo que se ouça isto enquanto se lê
esta notícia do site do Expresso - Há
um novo braço de ferro comercial com os EUA. Sapatos italianos e espanhóis
podem sofrer, mas os portugueses estão a salvo;
. nasceram menos 2153 crianças e morreram mais 11.565 pessoas de um ano para o
outro: Saldo
natural negativo da população agravou-se pelo 12.º ano consecutivo (mas
depois há isto, é uma conquista: Taxa
de mortalidade infantil em 2020 foi a mais baixa de sempre em Portugal);
. “Joe Biden, o 46.º Presidente dos Estados Unidos, já conseguiu algo que
Donald Trump nunca alcançou”: Quase
100 dias depois, 55% dos norte-americanos aprovam o desempenho de Biden;
. parciais de 6-1 e 6-3, jogo durou uma hora e 25 minutos: João
Sousa eliminado na estreia no Estoril Open (e Nishikori desiste); e depois
leia isto também, é importante: Temos
de falar sobre a dor de João Sousa;
. é uma bela viagem ir aqui porque
o Expresso acrescentou mais podcasts à sua já excelente e diversificada oferta
porque gostamos muito de estar no seu ouvido: entre as novidades há Marques Mendes, Francisco Louçã, Nuno Rogeiro, José Miguel
Júdice, o Alta
Definição de Daniel Oliveira, as Invasões Bárbaras, o Volante SIC, o CineTendinha - assine
no Spotify, na Apple Podcasts, no Google Podcasts, no Soundcloud, no
PocketCasts, no Overcast, no Podcast Republic, no Downcast, no Castro, no
Podbean, no RadioPublic ou em qualquer outra aplicação de podcasts que use
porque o Expresso está consigo em todo o lado (e há uma edição fresquinha de um
dos podcasts do Expresso mais antigos mas sempre moderno - Comissão
Política. Marcelo, o país e a descolonização: um discurso muda a história?);
. há coisas extraordinárias que se
podem fazer com seis euros por mês.
PRESIDÊNCIA PORTUGUESA DA UE
O resultado da votação é conhecido hoje mas a maioria dos eurodeputados
mostrou-se a favor da ratificação do Acordo de Comércio e Cooperação pós-Brexit
negociado entre o Reino Unido e a UE. No debate
de ontem no hemiciclo, os eurodeputados deixaram vários avisos a Boris
Johnson sobre as medidas que podem ser usadas pela União caso o país continue a
violar os compromissos assumidos, como tem vindo a acontecer com o Acordo de
Saída, nomeadamente em relação ao protocolo das Irlandas. Ursula von der Leyen
garante que “não hesitará” em acionar as medidas legais em caso de falhas. A
presidência portuguesa do Conselho defendeu o pleno respeito do protocolo sobre
a Irlanda do Norte, considerando ser “fundamental” para a estabilidade das
futuras relações entre a UE e o Reino Unido.
FRASES
Anda o país ocupado – ao que chegámos… - a adivinhar se António Costa quer
rumar à Europa em 2022, em 2024 ou se tudo isto é inventado pelos spin doctors
do PS. Para uns esse é destino de quem está farto da “choldra” de que já se
falava nos “Maias”, e que somos nós; para outros é uma fuga às
responsabilidades. Alguns anseiam por isso e outros (às vezes os mesmos…) temem
que isso ocorra desde logo porque se querem ver livres de António Costa, mas
estão apavorados que seja Pedro Nuno Santos o senhor que se segue. -- José Miguel Júdice no
Expresso e na SIC Notícias
Para ter votos suficientes para negociar poder, Ventura tem de prometer um
regime terrorista de violação constitucional (castração, prisão perpétua, pena
de morte, apartheid para ciganos); então, quanto mais ganhar mais perde. Para
ter votos suficientes para disputar alguma coisa do centro, Rio não se pode
propor ao país para reduzir o RSI ou os subsídios de desemprego, tem de dizer
alguma coisa de aceitável. Pensar que destes caminhos diversos pode resultar um
acordo ‘para as próximas décadas’ é uma fantasia. Muito ficará pelo caminho e
só assim se poderão entender, traindo-se um e outro ou um ao outro. -- Francisco Louçã no
Expresso
Marcelo Rebelo de Sousa está a pressionar o poder legislativo para avançar no
dossier daquilo a que se tem chamado, sem rigor, criminalização do
enriquecimento ilícito. Um dossier antigo que já esbarrou, por falta de cuidado
dos deputados, com dois chumbos do Tribunal Constitucional, em 2012 e 2015, por
violação de um princípio básico do Direito: a não inversão do ónus da prova. É
a Justiça que tem de provar que o cidadão é culpado, não é o cidadão que tem de
provar que é inocente. É verdade que, na nossa relação com o fisco, as coisas
são um pouco diferentes. -- Daniel Oliveira no
Expresso
Desde há muitos anos, desde há décadas diria eu, que quase praticamente toda a legislação que nós temos hoje no domínio da luta contra a corrupção foi aprovada pela mão do Partido Socialista.
Constança Urbano de Sousa em declarações à TSF, aqui citadas
pelo Expresso (a propósito disto mas não só ouça a edição
de hoje do podcast Expresso da Manhã)
O QUE EU ANDO A LER
Respeito muito a sorte, um dia a minha família quis meter-me no ciclismo e tive
de fazer um teste com outros atletas, no fim da prova caí e bati com a boca no
chão, o meu primeiro troféu no desporto foi lábios inchados para uns dias e um
dente torto para a vida, que campeão, agora sempre que sorrio os outros podem
ver como a sorte me sorriu mas nunca quis que os dentistas mexessem na minha
sorte porque sempre que a escovo com o meu dentífrico quando me levanto de
manhã e depois quando me deito à noite essa é a maneira que tenho de celebrar
todos os dias a gratidão de ter a minha inteligência intacta: eu ia sem
capacete no dia em que caí porque o ciclismo agora obriga a usá-lo mas naquele
tempo não, portanto eu podia ter batido com a cabeça mas bati com a boca no chão,
não sei como aconteceu mas sei que cair é um azar mas cair bem é uma sorte e eu
cá prefiro negar coisas a dentistas do que depender de neurologistas, a vida é
mesmo um milagre ainda maior quando o estado da cabeça continua no seu melhor,
por isso respeito muito a sorte de ter um dente que se tornou torto e uma
inteligência que se manteve direita, penso sempre nisso quando pego na minha
escova de dentes e para mim tem beleza e conforto maiores que um sorriso
perfeito, portanto deixem-me em paz dentistas que me querem pôr um aparelho,
anos depois já era ciclista a sério e voltei a ter uma queda que me entortou
outra parte do corpo mas tenho tanta sorte na minha sinuosidade e aprendo tanto
com ela, veja bem: um dia fui treinar sprints na estrada de Entre-Os-Rios para
depois ir competir à pista de Alpiarça, acabou mal, a corrente da bicicleta
partiu-se e eu capotei, lembro-me de ver o mundo ao contrário enquanto andava à
volta no ar e depois de não me conseguir levantar quando tentei sair do chão,
foi assim que descobri pela primeira vez como dói cair depois de subirmos na
vida e como custa ainda mais levantar-nos, mas voltando à história: nesta queda
eu ia de capacete e ele estalou-se quando bati na estrada e a minha clavícula
também, é uma agonia absurda mas de tudo o que se podia ter quebrado foi o osso
do ombro que se articula com o esterno e o úmero que cedeu, o pescoço caiu bem
as costas também e a cabeça idem porque graças a Deus o capacete, depois no
hospital avisaram-me que iria caminhar torto durante umas semanas porque o
ombro afetado tinha ficado temporariamente desnivelado, ainda hoje está porque
fui a um endireita depois do hospital porque queria acelerar a recuperação mas
devia era ter feito a fisioterapia que me recomendaram para curar lentamente a lesão,
por isso respeito muito a sorte que só me deixou um ombro torto em vez de danos
piores para me ensinar que há decisões de momento que têm consequências para a
vida inteira, continuando: tive mais quedas entretanto, numa ganhei uma
cicatriz na coxa quando deitei abaixo parte do pelotão ao cair numa curva com
areia e fui entre todos aquele que se magoou menos e noutra fiquei com uma
cicatriz debaixo do queixo quando bati a 50 à hora numa pessoa que atravessou a
estrada sem olhar, às vezes penso na sorte que tive em todas as quedas graves
porque ora aprendi filosofia ora anatomia mas nunca perdi o essencial que é a
minha memória e imaginação e o meu juízo e raciocínio e a minha capacidade de
abstração e conceção, o dicionário diz que
isso tudo é inteligência e essa ficou-me sempre intacta nos meus
desastres de bicicleta, não interessa a dimensão da inteligência mas sim que é
a nossa, neste caso a minha, tive tanta sorte “e não há nada de mal nisso, o
inimigo queixava-se de Napoleão por ele ter generais com sorte, ao que o
imperador retorquia que não gostava de generais sem sorte”, isto é do João
Lobo Antunes no prefácio do “De Profundis,
Valsa Lenta”, é a história de quando o grande José Cardoso Pires teve
um acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, aconteceu assim e é
contado pelo próprio:
“Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos,
sentei-me à mesa do pequeno-almoço, onde já estava a minha mulher com a Sylvie
e o António, que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons
dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta
que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala
com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na
chávena de chá e fiquei. ‘Sinto-me mal, nunca me senti assim’, murmurei numa
fria tranquilidade.
Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: ‘Como é que tu te chamas?’.
Pausa. ‘Eu? Edite.’ Nova pausa. ‘E tu?’ ‘Parece que é Cardoso Pires’, respondi
então”,
e a seguir ele levanta-se para ir tratar da higiene matinal e eu descubro a
lê-lo que a minha escova de dentes fez coisas melhores por mim que a dele por
ele,
“Tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a
passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta
de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a
minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem
nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação
passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a
visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela
mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere
apenas um facto, uma presença), exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá
encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de
partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois,
uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto”,
tenho uma pessoa na minha vida que sei que leu recentemente duas vezes este
livro do José Cardoso Pires, esta minha pessoa teve um acidente de bicicleta
mais grave que todos os meus porque quando se levantou não pôde negar coisas a
neurologistas e aprendeu de maneira absolutamente pior que a minha quanto nos
custa reerguer a vida depois de ela nos cair ao chão, eu tive sempre a sorte
toda nas vezes que caí e esta minha pessoa teve toda a sorte nenhuma de uma só
vez, respeito muito a sorte mas não entendo mesmo como ela se distribui, talvez
eu tenha mais medo do que respeito pela sorte, enfim, esta pessoa da minha vida
que caiu esqueceu-se de palavras nomes factos e memórias depois do acidente, o
José Cardoso Pires descreve no “Valsa Lenta” em quem nos transformamos quando
isso acontece:
“Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto.
Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências
do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que
relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as
tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a
memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser
medido como sentido”,
mais adiante no livro o José Cardoso Pires conta que chegou a ser noticiado que
ele tinha morrido, “morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa
passou a notícia à imprensa para o outro lado dos muros do Hospital de Santa
Maria”, mas o triunfo dele não foi ter ficado vivo mas ter voltado a ser a
pessoa dotada que era antes do AVC, isso é que é ressuscitar: o diagnóstico
inicial que lhe fizeram não fazia prever uma recuperação total, antevia-se uma
perda permanente de faculdades intelectuais, mas a ciência é continuamente
surpreendida pela instinto humano de preservação e superação - ninguém soube
explicar de que maneira aconteceu mas ele recuperou subitamente, num dia era o Outro
e no dia a seguir era o José Cardoso Pires, os médicos espantaram-se, “alguém
me dá os parabéns como se tivesse sido eu o autor deste triunfo e um psiquiatra
meu amigo expõe o fundamental da recuperação surpreendente, surpreendente,
repetiu ele, que me tinha acontecido”, no prefácio do livro o João Lobo Antunes
também conta a sua surpresa com a recuperação do José Cardoso Pires e é nessa
reflexão que aparece o Napoleão mas tanto mais,
“É claro que lhe podia enunciar cientificamente os possíveis mecanismos pelos
quais se operou a sua restitutio ad integrum. Não sei, nem para o caso importa
muito, quais eles foram. Eu tenho duas outras explicações originais, uma talvez
pouco científica, e a outra digna de mais madura reflexão.
A primeira é que você simplesmente teve sorte, e não há nada de mal nisso. O inimigo queixava-se de Napoleão por ele ter generais com sorte, ao que o imperador retorquia que não gostava de generais sem sorte, princípio para mim fundamental na prática da profissão.
A segunda é que a área que temporariamente você deixou à sede e à fome, e pela
qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada
que a do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se sabe hoje que os
donos do ouvido absoluto, que lhes permite a identificação imediata de qualquer
som - e Mozart tinha-o, e de forma admirável -, têm a área auditiva do córtex
cerebral indiscutivelmente hipertrofiada”,
respeito muito a sorte mas respeito ainda mais a inteligência, por isso estou
hipertrofiado não de esperança mas da certeza de que a minha pessoa que caiu
está agora a ser autora de um triunfo à maneira dela, nada surpreendente
surpreendente para quem a conhece porque a área que ela deixou temporariamente
à sede e à fome e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é
exímia, é mais musculada que a do comum dos mortais e isso não é treta porque
ela é a campeã do halterointeligenciofilismo: a má sorte pode partir-nos a vida
mas a inteligência pode consertá-la e tu, pessoa que caiu e que já vi entretanto
de pé, tu és dona de uma força absoluta e tens uma inteligência que é
inspiração e também a tua salvação - e se tiveres medo neste teu caminho,
porque ter medo nem sempre é cobardia porque às vezes é somente inteligência,
lê duas vezes a Clarice
Lispector: “Naquela hora da noite conhecia esse grande susto de estar viva
tendo como único amparo apenas o desamparo de estar viva. A vida era tão forte
que se amparava no próprio desamparo”.
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