Pedro Ivo Carvalho* | Jornal de Notícias | opinião
Estamos cansados. De estarmos fechados, mascarados, atordoados. De não termos descanso. E estamos sobretudo cansados dos chavões. Do "isto não é uma batalha, é uma guerra"; do "nada ficará como dantes"; do "a vacina é que vai resolver tudo"; até do famigerado "se não morrermos da doença, vamos morrer à fome".
Ora, mesmo concedendo que a vulgarização destes conceitos tem o efeito progressivo de transformar o óbvio ululante em poeira inaudível, há um chavão que é urgente resgatar para a montra política. O de que os mais desfavorecidos têm de passar à frente dos outros. Aqueles que nunca deixaram de trabalhar, que nunca puderam abdicar de andar nos transportes públicos a caminho do emprego, tantas e tantas vezes precário, aqueles que não beneficiaram das vantagens e conforto do teletrabalho, aqueles que perderam efetivamente poder aquisitivo e não podem gabar-se de terem criado poupança durante a pandemia. Aqueles, tantos, que ficaram sem trabalho.
O mais recente estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre a pobreza em Portugal é um grito estridente não apenas das classes baixas, mas das classes médias. Os novos pobres incluem os pobres de sempre, porque a pobreza é estrutural e geracional, mas acomodam outras realidades galopantes. Gente com filhos que por mais que se esfalfe chega ao fim do mês sem dinheiro para pôr comida na mesa. Quase 60% dos portugueses com mais de 18 anos e de baixos rendimentos trabalham. E destes há uma parte considerável (cerca de um terço) que tem um contrato de trabalho há dez ou mais anos. Portanto, a segurança laboral esboroa-se como princípio sacrossanto, porque o salário, conjugado com o desemprego em contexto familiar, é demasiadas vezes para repartir por todos.
A terraplanagem social e económica que nos espera acabará por cavar um fosso ainda mais sombrio junto destes náufragos. Olhemos, pois, para esta fase de desconfinamento com isso em mente: há demasiados entre nós que não podem dar-se ao luxo de voltar atrás. Gente a quem a mão protetora do Estado jamais chegará. Portugueses que dependem enormemente da solidariedade coletiva. Sejamos prudentes nos comportamentos e civilizados na retoma. É só mais um chavão, é certo. Mas neste lodaçal em que esbracejamos chegou a hora de os parcos triunfarem.
*Diretor-adjunto
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