segunda-feira, 26 de julho de 2021

Portugal | O adeus a Otelo Saraiva de Carvalho

Marta F. Reis | Jornal i | opinião

A dor é grande para os que perderam, que não são só os “vencidos da história”, mas os que perderam os seus quando a luta se radicalizou e que merecem uma palavra em democracia. Ontem pode não ter sido o dia, mas terá de ser.   

Morreu aos 84 anos Otelo Saraiva de Carvalho. Fazia ontem a A23 a ouvir as reações, do homem que com as ganas de ser possível, que tinha de ser possível, organizou o 25 de Abril – de que gerações mais novas como a minha tiveram a sorte de ser herdeiras sem nunca poder saber e sentir realmente o que foi viver sem liberdade num país onde os miúdos, os nossos avós, iam, quando iam, descalços para a escola – à tragédia das vítimas das FP25 e à resistência em julgar, sempre e agora na hora da sua morte, um dos seus mitos.

Ao ver a estrada deserta, as portagens a debitar, pensava no tanto que ainda há por realizar nesse Portugal que ontem se pôs mais uma vez em revisitação e com que chocamos em cada saída de uma grande cidade para o interior, cada vez mais deserto, com ruínas e casas à venda, os velhos mais velhos.

Otelo Saraiva de Carvalho tinha a candura, como ele reconhecia, de dizer o que pensava, o coração na boca e foi isso que o fez persistir após o fracasso do golpe de 16 de março de 1974. Na última entrevista que deu ao SOL e ao i, em 2020, sobre as comemorações limitadas do 25 de Abril em tempo de pandemia, respondeu que não ia estar presente mas que até preferia ver de casa. “Confesso que faço um frete todo os anos para corresponder ao convite que me é enviado pelo presidente da Assembleia da República para comparecer à cerimónia solene da comemoração do 25 de Abril. Faço um certo frete em ir lá porque os representantes de cada um dos partidos fazem discursos de circunstância”.

Seria, na linguagem atual, um populista de esquerda, notou ontem um politólogo.

Foi um herói por acaso, Vasco Lourenço estava nos Açores. Mas foi-o e derrubaram naquela madrugada o regime, os conhecidos e os que trabalharam anonimamente nas transmissões, nos abastecimentos e de que não reza a história, depois de anos contra uma guerra que tantas vidas e juventude roubou e tantos traumas deixou nos que agora envelhecem neste Portugal desigual. 

Otelo morre como figura controversa e a sua vida (e a história) encerra a contradição de ter sido um dos que deram a Portugal a democracia, mas que julgado na justiça nessa democracia foi amnistiado por uma maioria política e cumpriu apenas cinco dos 15 anos de prisão a que foi condenado por associação terrorista. A dor é grande para os que perderam, que não são só os “vencidos da história”, mas os que perderam os seus quando a luta se radicalizou e que merecem uma palavra em democracia. Ontem pode não ter sido o dia, mas terá de ser.

Sem comentários:

Mais lidas da semana