Marta F. Reis | Jornal i | opinião
A dor é grande para os que
perderam, que não são só os “vencidos da história”, mas os que perderam os seus
quando a luta se radicalizou e que merecem uma palavra
Morreu aos 84 anos Otelo Saraiva de Carvalho. Fazia ontem a A23 a ouvir as reações, do homem que com as ganas de ser possível, que tinha de ser possível, organizou o 25 de Abril – de que gerações mais novas como a minha tiveram a sorte de ser herdeiras sem nunca poder saber e sentir realmente o que foi viver sem liberdade num país onde os miúdos, os nossos avós, iam, quando iam, descalços para a escola – à tragédia das vítimas das FP25 e à resistência em julgar, sempre e agora na hora da sua morte, um dos seus mitos.
Ao ver a estrada deserta, as portagens a debitar, pensava no tanto que ainda há por realizar nesse Portugal que ontem se pôs mais uma vez em revisitação e com que chocamos em cada saída de uma grande cidade para o interior, cada vez mais deserto, com ruínas e casas à venda, os velhos mais velhos.
Otelo Saraiva de Carvalho tinha a candura, como ele reconhecia, de dizer o que pensava, o coração na boca e foi isso que o fez persistir após o fracasso do golpe de 16 de março de 1974. Na última entrevista que deu ao SOL e ao i, em 2020, sobre as comemorações limitadas do 25 de Abril em tempo de pandemia, respondeu que não ia estar presente mas que até preferia ver de casa. “Confesso que faço um frete todo os anos para corresponder ao convite que me é enviado pelo presidente da Assembleia da República para comparecer à cerimónia solene da comemoração do 25 de Abril. Faço um certo frete em ir lá porque os representantes de cada um dos partidos fazem discursos de circunstância”.
Seria, na linguagem atual, um populista de esquerda, notou ontem um politólogo.
Foi um herói por acaso, Vasco Lourenço estava nos Açores. Mas foi-o e derrubaram naquela madrugada o regime, os conhecidos e os que trabalharam anonimamente nas transmissões, nos abastecimentos e de que não reza a história, depois de anos contra uma guerra que tantas vidas e juventude roubou e tantos traumas deixou nos que agora envelhecem neste Portugal desigual.
Otelo morre como figura
controversa e a sua vida (e a história) encerra a contradição de ter sido um
dos que deram a Portugal a democracia, mas que julgado na justiça nessa
democracia foi amnistiado por uma maioria política e cumpriu apenas cinco dos
15 anos de prisão a que foi condenado por associação terrorista. A dor é grande
para os que perderam, que não são só os “vencidos da história”, mas os que
perderam os seus quando a luta se radicalizou e que merecem uma palavra
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