# Publicado em português do Brasil
A notável (e quase ignorada) história dos jogos alternativos dos trabalhadores. Duraram 12 anos. Baniam bandeiras, hinos e nacionalismos. Foram os primeiros a incentivar atletas mulheres. Dos alojamentos aos trajes, nada cheirava a marketing
Gabriela Leite* | Outras Palavras
Ítalo Ferreira, primeiro
brasileiro a ganhar medalha de ouro em Tóquio, em 2021, nasceu
A prática de esportes, era, na virada do século XIX para o XX, restrita às classes altas. Servia para propagar valores do conservadorismo. O célebre barão, fundador do Comitê Olímpico Internacional, é uma boa figura para entender os ideais burgueses da época. O nobre francês acreditava na superioridade racial europeia, e se atormentava com a ideia da participação feminina nas competições. Para ele, a mulher era “acima de tudo companhia para o homem, a futura mãe de família”, e deveria “ser criada tendo esse destino em mente”. Embora sustentasse “ideais internacionalistas”, Coubertin não hesitou em elogiar o grande êxito das Olimpíadas de 1936, na era Hitler, saturadas de imagens da suástica e de saudações nazistas: “o grandioso êxito dos Jogos de Berlim contribuiu de modo magnífico para com o ideal Olímpico”
Mas, ainda nos primeiros anos do século XX, desenhos de jogos olímpicos dissidentes conseguiram bagunçar o coreto. Começaram a despontar organizações de trabalhadores para a prática coletiva de esportes e embriões de competições maiores. Até que, em 1920, representantes de organizações esportivas proletárias da Alemanha, Inglaterra, Bélgica, França e Áustria se reuniram para formar uma associação internacional. Assim foram criadas as Olimpíadas dos Trabalhadores, que aconteceram de maneira intermitente entre os anos 1925 e 1937, em diversos países da Europa.
A alternativa socialista para as
olimpíadas burguesas não fazia a separação por países – hasteava-se apenas a
bandeira vermelha. Nas primeiras edições, que aconteceram em fevereiro e julho
em cidades da Alemanha, compareceram mais de 150 mil pessoas, entre atletas e
público. O número foi superado em 1931, na Áustria, quando 250 mil espectadores
acompanharam o evento protagonizado por 100 mil esportistas – dez vezes
mais atletas que no Rio-2016 ou Tóquio-
Essa foi a edição mais emblemática das Olimpíadas dos Trabalhadores. Aconteceu em Viena – à época, uma das maiores fortalezas do movimento socialista. “Milhares de atletas de dezoito países se reuniram na capital austríaca para participar de competições em modalidades como atletismo, futebol, esportes militares [como cabo de guerra…] e até xadrez. Os exercícios de ginástica em massa, desfiles e outros eventos reuniram cerca de 80 mil participantes”, conta matéria assinada por Gabriel Kuhn e Georg Spitaler, na revista Jacobin Brasil. A edição popular superou tanto em número de atletas quanto de espectadores à comercial, sediada àquele ano na cidade de Los Angeles, nos EUA.
Os jornalistas retomam o espírito da época: “O movimento esportivo dos trabalhadores representava um contramodelo pedagógico aos esportes organizados por burgueses e capitalistas – tanto os jogos organizados pelo Comitê Olímpico Internacional quanto as ligas esportivas profissionais, como fizeram no futebol. Nessa visão, os danos e os limites impostos à vida da classe trabalhadora pelas más condições de vida e de trabalho deveriam ser contrabalançados pelo desenvolvimento físico individual e pela formação coletiva de uma identidade de classe autoconfiante.”
A edição seguinte dos jogos
olímpicos – da burguesia – aconteceria em 1936. O contexto político de ascensão
do nazismo fez com que uma organização comunista, Sportintern, formada a partir
da associação esportista de trabalhadores, se levantasse
O comitê de organização clamava
pela participação das mulheres – preteridas nos jogos tradicionais. Os
participantes eram financiados por sindicatos e vaquinhas. Como nas edições
anteriores, atletas acomodariam-se nas casas de família da classe trabalhadora,
em prédios públicos ou
“Em 18 de julho de 1936, enquanto milhares de atletas de todo o mundo chegavam a Barcelona para os jogos do dia seguinte, um golpe de estado foi realizado pelas forças conservadoras e fascistas espanholas. Os jogos foram cancelados e quase todos os atletas que conseguiram chegar foram mandados de volta para casa. Cerca de 200 estrangeiros, entre atletas, seus representantes e espectadores, decidiram ficar e lutar ao lado dos catalães e espanhóis, ingressando posteriormente nas Brigadas Internacionais”, conta matéria da revista britânica Red Pepper.
As últimas olimpíadas populares aconteceram em 1937 na Tchecoslováquia e na Bélgica. As edições seguintes, de 1943, seriam recebidas em Helsinque, na Finlândia (Tóquio, aventada, rejeitou o convite), mas foram canceladas após o início da II Guerra Mundial. Ao contrário das lucrativas olimpíadas burguesas, os jogos populares não conseguiram se reerguer no pós-guerra.
Em 2016, os Jogos Olímpicos ocuparam as ruas, praias, ginásios e estádios do Rio de Janeiro. Enquanto contribuíam para aprofundar as desigualdades da cidade, intensificar a especulação imobiliária e reprimir manifestações, registravam a marca de evento mais lucrativo para o Comitê Olímpico Internacional em 120 anos: apenas com a venda dos direitos de transmissão dos jogos, por 19 dias, foram arrecadados 4 bilhões de dólares. Já as patrocinadoras principais tinham, juntas, valor de mercado de mais de U$ 1,5 trilhão. Cifras que provavelmente encheriam de orgulho o barão de Coubertin.
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Como nos anos anteriores à II Guerra, nos deparamos com o dilema: torcer ou não torcer por atletas que apoiam o governo de Jair Bolsonaro, que confraterniza com nazistas, considera indígenas uma “raça” inferior e foi responsável pela morte de mais de 550 mil pessoas numa pandemia? E pior: como alegrar-se tranquilamente com a realização de um evento internacional durante uma crise sanitária que exige medidas de distanciamento que, caso ignoradas, podem criar novas variantes de um vírus mortal? Antifascistas, feministas, populares e politizadas, as Olimpíadas dos Trabalhadores podem servir de inspiração de celebração da cultura e do esporte sem render-se ao dinheiro e à espetacularização a qualquer custo.
*Gabriela Leite é
editora, designer e produtora audiovisual de Outras Palavras.
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