O sampaísmo ainda existe no PS? Nas pessoas, não. Nas ideias, sim
O que foi o sampaísmo? Foram pessoas e foram ideias. As ideias ficaram - e traduziram-se na 'geringonça'. Foi no entanto no PS um movimento orgânico de curta duração. Alguém dizia: ser amigo de Sampaio era frequentar "o sítio mais desconfortável do mundo".
Primeiro, as pessoas: o sampaísmo foi basicamente o grupo que, em 1992, apoiou Jorge Sampaio (então secretário-geral) contra António Guterres no combate entre os dois pela liderança do PS, no X congresso - combate que Guterres venceu.
Já quanto às ideias: modernização à esquerda do ideário do partido face ao que era representado por históricos como (por exemplo) Manuel Alegre. Uma modernização, inspirada em socialistas franceses como Michel Rocard, que incluía também uma relação diferente com o PCP, por oposição ao virulento antagonismo dinamizado por Mário Soares desde o 25 de Abril.
Essa nova relação com o PCP teve a sua primeira grande tradução prática nas eleições autárquicas de 1989. Sampaio liderava o partido e não tinha candidato para a câmara mais importante do país, Lisboa. João Soares, líder de uma pequena fação interna no PS que lhe fazia oposição, queria ser o candidato. Sampaio, porém, não estava disposto a autorizá-lo.
Foi um dos principais sampaístas da altura, Nuno Brederode Santos (1944-2017), seu amigo de sempre, quem explicou ao então líder do PS que tinha de ser ele próprio a avançar para Lisboa. E Sampaio assim fez e foi mais longe, surpreendendo tudo e todos ao propor uma coligação do PS com o PCP. Rompeu-se um bloqueio no diálogo entre socialistas e comunistas que na realidade já vinha de antes do 25 de Abril.
Nessa campanha, Brederode foi o principal conselheiro político de Sampaio. Quanto ao programa para a cidade, um engenheiro e um arquiteto moldaram-lhe o discurso: Fonseca Ferreira (1943-2019) e Nuno Portas. A campanha foi dirigida por um militante do PS com apenas 28 anos (mas que já andava na política desde os 14, tendo sido além do mais criado num ambiente familiar fortemente politizado): António Costa.
É ele quem nessa altura faz todos os dias a ligação operacional do aparelho do PS com o aparelho do PCP. Os comunistas conheciam-no bem. É certo que António sempre foi do PS. Mas altura ainda era vivo o seu pai, Orlando da Costa (1929-2006). Escritor e publicitário, Orlando militou a vida toda no PCP. Nunca se foi embora, nem quando o fim do império soviético provocou dezenas de dissidências. No funeral, tinha uma bandeira do PCP a cobrir-lhe o caixão.
Do lado de lá, o seu principal interlocutor pelo PCP era então o mesmo dirigente que ainda hoje representa a direção do partido nas negociações com o PS, nomeadamente nas dos orçamentos do Estado: Jorge Cordeiro.
Desse tempo ficou talvez a principal herança do sampaísmo hoje ainda vigor no PS: o capital de confiança recíproca criado entre o PCP e António Costa. Em 2015, quando Costa, à frente do PS, percebe que vai perder as eleições legislativas para Pedro Passos Coelho - mas podendo a esquerda ficar em maioria no Parlamento - é com Jerónimo de Sousa que fala primeiro para propor aquilo que Vasco Pulido Valente imortalizaria depois como a "geringonça". O Bloco, pensou então, viria por arrasto, se o PCP fosse a jogo. Foi o que aconteceu.
Vingou a doutrina que Costa já
apresentara sobre a necessidade de um novo "arco da
governabilidade" (ou "arco do poder"). Até à geringonça, o
tal "arco da governabilidade" era constituído pelo PS, PSD e CDS (no
sentido em que eram os três únicos partidos 'autorizados' a exercer poder
governativo); para Costa, porém, os partidos à esquerda do PS também teriam de
ser incluídos nesse lote - e foi o que fez de
Nas pessoas, o sampaísmo foi-se dissolvendo quando Guterres derrotou Sampaio, em 1992. Integrava personalidades como algumas das já referidas: António Costa, Brederode Santos, Fonseca Ferreira. Mas também Ferro Rodrigues (hoje presidente do Parlamento), João Cravinho, Paulo Pedroso, José Vera Jardim (colega de Sampaio numa sociedade de advogado em Lisboa), entre muitos outros.
Guterres conquista o PS em 1992 e o país em 1995, chegando a primeiro-ministro. Os socialistas regressam ao poder depois de dez anos de travessia do deserto cavaquista. E Guterres dá o grande "abraço do urso" aos sampaístas integrando-os no seu Governo. Depois da derrota, os sampaístas tinham-se partido ao meio: de um lado os moderados (Ferro Rodrigues e António Costa), defendendo que era tempo de enterrar o machado de guerra; do outro os radicais, dirigentes como João Cravinho ou Paulo Pedroso, que achavam o contrário.
Todos acabariam por ser ministros de Guterres: Ferro fica com a pasta da Segurança Social (que mais tarde seria entregue a Pedroso); João Cravinho vai para as Obras Públicas; António Costa começou por ser ministro dos Assuntos Parlamentares e depois passou para a Justiça (por onde já tinha passado Vera Jardim).
O primeiro governo de Guterres (1995-1999) integrava ainda mais de uma dezena de antigos militantes do MES, o partido de extrema-esquerda de que Sampaio se tinha afastado em 1974. Ideologicamente, Guterres desloca o partido para o centro; volta a relação de antagonismo com o PCP. A porta aberta no diálogo à esquerda com a vitória de Sampaio em Lisboa, em 1989, fechou-se no final de 2001. Foi quando, depois de uma campanha desastrosa, João Soares, tendo renovado a coligação com os comunistas, perde Lisboa para Pedro Santana Lopes. A relação do PS com a Igreja também muda. Como diz um antigo dirigente, "passa da fase do respeito [com Sampaio] para a fase do respeitinho [com Guterres]".
O PS regressa ao Governo em 1995 mas um ano antes já Jorge Coelho (pela lado guterrista) tinha reunido com Costa e Ferro (pelo lado sampaísta), ficando decidido que o projeto de poder do partido não se poderia resumir a tentar vencer as legislativas.
O segundo mandato de Mário Soares em Belém terminaria em 1996. E era preciso o partido não se conformar com a ideia de que o inquilino seguinte do palácio viria da direita (Cavaco Silva, por exemplo).
O PS tinha de tentar ganhar tudo. Ou seja, arquivar de vez a velha "teoria dos ovos e dos cestos" instrumentalmente inventada em 1986 por Soares na campanha que o levou pela primeira vez a Belém. A teoria dizia que os portugueses não queriam ver o Governo e a Presidência dominados pelo mesmo partido - ou seja, queriam os ovos distribuídos por vários cestos. Nessa conversa, Coelho, Costa e Ferro acabam enfim por adotar um objetivo que há muito Sá-Carneiro tinha celebrizado no slogan "Uma maioria, um Governo, um Presidente".
Em 1995, o PS vence as legislativas (embora sem maioria). Guterres queria que o candidato do partido a Belém fosse Fernando Gomes, presidente da câmara do Porto. Guterres ainda tem um encontro com Balsemão para avaliar uma candidatura alternativa, como o militante nº 1 do PSD conta no seu recem-publicado livro de memórias. Sem avisar ninguém, Sampaio avança e impõe um facto consumado ao líder do partido, que não tem outro remédio se não apoiá-lo. Em 14 de janeiro de 1996, Jorge Sampaio é eleito Presidente da República com 53,91 por cento, contra 46,1 por cento para Cavaco Silva.
Isso todavia não implica um novo fôlego para o sampaísmo. Ao contrário de Soares, o novo Presidente da República não perde um segundo do seu tempo em Belém a manobrar peças no partido que liderou durante escassos três anos. Sem Sampaio, o sampaísmo no PS - que na verdade só muito a espaços foi algo organizado - vai-se dissolvendo até desaparecer.
Além do mais, Sampaio faz sempre questão de exerce a sua ideia de interesse geral, sobretudo face aos seus amigos. Nenhum amigo pode contar com ele para tratamentos de favor. Que o diga Ferro Rodrigues, que se demitiu da liderança do PS em 2004 quando o PR Sampaio nomeou Santana Lopes primeiro-ministro em vez de convocar eleições antecipadas.
Esse foi apenas e só mais um momento em que se confirmou uma velha piada de Nuno Brederode Santos: "Ser amigo do dr. Sampaio é frequentar o sítio mais desconfortável do mundo."
João Pedro Henriques | Diário de Notícias
Imagem: Jorge Sampaio
apresentando em novembro de
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