sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

TRICAS E FACADAS DE DOIS VIGARISTAS – BERARDO E RENDEIRO

"Mãe África": como João Rendeiro usou Joe Berardo para lhe abrir portas e este lhe deu (várias) facadas fatais

O polémico multimilionário, que fez fortuna com a venda de legumes e a comprar minas abandonadas na África do Sul, foi usado como passaporte para João Rendeiro entrar no continente africano, aquele a que chamava “placa giratória de negócios”, mas o madeirense traiu-o. Duas vezes. Uma sem efeito. A segunda pelas costas. Contamos a arrepiante história de dois homens que dão palmadinhas nas costas um do outro quando se vêem, mas que em privado se odeiam

Quando em 1996 o economista João Rendeiro, agora detido na África do Sul, comprou, por mais de oito milhões de euros, uma empresa financeira chamada Incofina ao BCP, o magnata madeirense Joe Berardo, que fez fortuna na África do Sul a vender hortaliças e a comprar minas desativadas, foi dos primeiros entusiastas a aderir e a investir no novo projeto de banca privada para gente rica.

O desejo do madeirense de ser dono de um banco era, já na altura, bastante grande, como se veio a perceber anos depois, com a sua tentativa de assalto ao Milenium/BCP.

João Rendeiro - que a princípio estava satisfeito com o núcleo central de grandes acionistas, como Berardo, que lhe dava jeito ter na lista para lhe abrir portas na África austral (recorde-se que chegou a ter cinco funcionários em permanência em Joanesburgo), que apelidou de: "uma plataforma giratória de negócios" - cedo percebeu a embrulhada em que se metera ao convidar Joe Berardo para entrar no capital do seu neófito banco.

Rendeiro teve mesmo problemas sérios para controlar o lobo camuflado com pele de cordeiro que meteu dentro da sua instituição bancária. O pior foi o dia em que o lobo mostrou as garras e os dentes… E se deparou com um Rendeiro que não envergava propriamente o fato de capuchinho vermelho. E o contra-atacou ferozmente.

Não demorou três anos até que o truculento multimilionário traísse o "amigo" Rendeiro. Recorde-se que, entretanto, Berardo já foi preso, interrogado na justiça e em comissões de inquérito no Parlamento, alegando, em ambas as entidades. ser apenas dono de uma singela garagem no Funchal, na ilha da Madeira, e que, por esse motivo, não tem como ressarcir a banca nacional das centenas de milhões de euros que esta lhe emprestou para comprar… o BCP). 

Berardo traiu a confiança do maquiavélico banqueiro e fê-lo várias vezes, e com várias peripécias malucas, como o ex-banqueiro, agora detido na África do Sul, relata, bastante magoado, na sua biografia "Testemunho de um Banqueiro", um livro da autoria da jornalista Myriam Gaspar.

GUERRA DE TITÃS

"A minha relação com o Joe Berardo, que já tinha levado um abanão no episódio (Francisco) Capelo, azedou, quando estalou, em 1999, o conflito entre ele e Francisco Pinto Balsemão a propósito da SIC", conta, explicando detalhes da briga: "A Investec, propriedade do empresário madeirense, era a segunda maior acionista da televisão independente, com 24,99%, mas Pinto Balsemão controlava a sociedade direta e indiretamente. Quando Joe Berardo comunicou que ia vender a Investec, deram-se inúmeras peripécias que acabaram na sua aquisição pela Cofina de Paulo Fernandes e seus sócios".

Com dois principais acionistas do seu Banco Privado Português (BPP) à bulha na praça pública, João Rendeiro viu-se entalado entre a espada e a parede e teve que tomar partido – escolheu Francisco Pinto Balsemão e o seu escudeiro Luiz Vasconcellos. No livro o ex-banqueiro agora falido resume: "Tentei mediar esse conflito e até criar várias situações de investimento que eram bastante benéficas para ambos, mas Joe Berardo nunca aceitou qualquer das minhas propostas".

Ao detalhe, João Rendeiro descreve o aperto em que se tinha metido ao juntar na mesma cela dois animais de negócios e explica como tentou dar a volta ao problema, sem sucesso: "Mais uma vez fiquei perante um dilema. Eram os dois acionistas do Banco Privado Português. Quem devia apoiar? Sem a confiança de Francisco Pinto Balsemão, o seu perfil institucional e a relação entretanto criada com Luiz Vasconcellos, não teria estabilidade na estrutura acionista do Banco Privado. Além disso, como presidente do Conselho Consultivo, era um elemento chave de credibilidade do projeto. A opção não me deixava dúvidas". Joe Berardo saltava fora da equação. Rendeiro escolheu a espada.

VENDA RÁPIDA E LUCRATIVA

Traído pelo sócio a quem antes já tinha tentado, na sorrelfa, passado a perna, Joe Berardo ficou fulo da vida, mas não se vinga logo, fá-lo-á mais tarde… e à traição, pelas costas.

"Como seria de esperar, não gostou da minha posição. Sentiu-se traído. Pouco depois falou-me em vender a sua posição no banco. Tentei que se mantivesse mais tempo, queria preservar a estabilidade acionista, mas ele insistiu na saída. Acabei por aceitar que vendesse a posição. Acordámos um preço e uma comissão para o banco por intermediar o negócio e organizei a colocação da sua posição de acionista de quase 20% num conjunto de investidores", relata o ex-banqueiro caído em desgraça desde 2008.

Em "Testemunho de um Banqueiro", Rendeiro conta um episódio caricato que viveu então com Joe Berardo. "No dia em que a operação se concretizou, recebeu o dinheiro e ligou-me eufórico para o carro, onde seguiam várias pessoas, incluindo a Maria, para tecer elogios ao negócio. Estava radiante. Tinha realizado uma mais-valia muito significativa e agradecia-me toda a colaboração. Pensei para mim que estava tudo bem por ter terminado bem. Puro engano".

TRAIÇÃO À MODA DO ALASCA

E puro engano mesmo. "Uma semana mais tarde, estava eu de férias num cruzeiro no Alasca, fui surpreendido com um telefonema de Lisboa. No banco estavam muito preocupados. Joe Berardo mandara publicar na imprensa um anúncio da Metalgeste, de página inteira, em que dizia que, apesar de ter ganho imenso dinheiro com a venda da posição, o Banco Privado já não lhe merecia a sua confiança. Recusara-se a prestar-lhe informação e tinha investimentos muito perigosos no Brasil. Isso poderia causar sérios riscos no balanço do banco", recorda.

À sua biógrafa, Myriam Gaspar, João Rendeiro descreve como sentiu esta nova traição: "Fiquei atónito quando soube. Não esperava um ataque deste género. Joe Berardo sabia que eu estava do outro lado do mundo e aproveitou a minha ausência para levantar suspeitas sobre o banco. Como é óbvio os nossos clientes poderiam perder a sua confiança e haver dificuldades, até de liquidez. De imediato fizemos um comunicado a repor os factos". "Felizmente o anúncio da Metalgeste não teve qualquer impacto no banco. Não saiu nenhum cliente por causa disso e Joe Berardo não ganhou nada com este ataque gratuito. Como é óbvio, a nossa relação pessoal deteriorou-se bastante".

OS AMIGOS DE PENICHE

Como bom homem de negócios, daqueles que nunca fecha a porta, nem mesmo aos inimigos que o trapaceiam, João Rendeiro diz que gosta de Berardo e até afirma que não o vê como inimigo. Mas vamos ler o disse, e está escrito, no seu livro, para confirmarmos que é mesmo verdade. "Estes percalços esfriaram as nossas relações. Mas não somos inimigos. Rimos imenso quando nos encontramos, pois aprecio imenso o seu humor. Joe Berardo é uma pessoa com muito mérito, mas é capaz de alguns comportamentos que eu não aprovo".

E é um desses comportamentos, que deverá ter sido na "brincadeira", quiçá fruto do encantador "humor" do empresário madeirense, que Rendeiro guarda na memória empresarial. "Já antes fora protagonista de outro episódio. No início do Banco Privado, tentou reforçar a sua posição no capital sem me dizer nada. Deu ordens à corretora Midas para comprar a posição do Engenheiro Vaz Guedes, que tinha cerca de 10% do banco, passado assim a ter uma posição igual à minha. O Engenheiro Vaz Guedes teve a postura de um grande senhor, e avisou-me". Imagine-se se a coisa tivesse sido a sério…

RISOS DE HIENA

Quando o livro foi escrito, entre 2007 e 2008, Rendeiro confessou à sua biógrafa que as pazes com Berardo estavam quase feitas, embora, nas relações com o madeirense, fosse sempre bom ativar as cláusulas da reserva, aquilo a que o povo chama "cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém".

"Recentemente normalizei as relações pessoais com Joe Berardo num almoço onde nos rimos bastante de múltiplas peripécias. Ao explicar a um incrédulo amigo comum o que tinha acontecido, este disse: "É o poder curativo das menos valias do BCP"…

QUE INVEJA DE COLEÇÕES

Onde os dois homens começaram uma vaidosa disputa foi nas suas coleções de arte. Berardo, cujo primeiro quadro que comprou inflacionada foi uma Mona Lisa falsificada de Leonardo Da Vinci e jurou vingança ao contratar um marchand para o orientar, construiu a vasta coleção de arte contemporânea que hoje podemos ver, arrestada a favor do Estado, no Centro Cultural de Belém (CCB) e João Rendeiro não podia ficar atrás e foi adquirindo obras até criar a Coleção Ellipse, que jura não ser sua, mas é.

No seu livro, Rendeiro tece comentários sobre a coleção do rival, antes de relatar as suas: "São conhecidos os problemas que Joe Berardo teve para conseguir um depósito para a coleção de arte moderna. O Centro Cultural de Belém é hoje o melhor palco que a coleção poderia ter. É a principal sala de visitas do país. Além de estar exposta, a coleção ganhou um estatuto. No entanto, não concordo que se faça da cultura um negócio com o Estado. Ou se é um homem de cultura ou um homem de negócios. Não se pode ser as duas coisas". "Tenho esperança de que Joe Berardo, um dia, repense o acordo que fez com o Estado e faça uma doação significativa a Portugal", comenta. Não foi preciso, o Estado tratou disso pela via judicial...

QUADROS SUSPEITOS

Com a coleção pessoal arrestada pela justiça numa tentativa de ressarcir os lesados do BPP, João Rendeiro sonha com os tempos em que vivia rodeado de obras de arte e até ostentava nas paredes do seu gabinete no banco quadros de dois inimigos artísticos. Dizia que no seu gabinete tinha "um carinho especial pelo quadro de Julião Sarmento que partilha o meu gabinete com outra tela de Pedro Cabrita Reis, curiosamente dois arqui-inimigos".

Diz que a Fundação Serralves, no Porto, com o patrocínio do Banco Privado, adquiriu obras de artistas portugueses dos anos 70 e 80 que lá estão em depósito. Diz que doou, para celebrar os 50 anos da fundação, a famosa escultura Plantoir (conhecida como Colher de Jardineiro) de Claes Odenburgh&Coosje van Bruggen, que continuava no jardim da fundação, na Invicta.

"Tentei que a Coleção Ellipse ficasse depositada no Porto. Mas a administração de Serralves exigiu uma contribuição financeira e outras condições para que depositássemos as obras. Não aceitei", dispara, explicando que tentou "vender" o conceito às câmaras de Lisboa e de Cascais, mas esbarrou contra uma parede. E queixa-se: "Conclui que é extremamente difícil conversar e estabelecer acordos com o setor público. Nunca são as mesmas pessoas que tratam dos assuntos. E há uma certa desconfiança ou preconceito".

João Bénard Garcia | FLASH-The Mag, com mais imagens no original

Sem comentários:

Mais lidas da semana