José Goulão | AbrilAbril | opinião
Um telegrama da insuspeita Associated
Press, assinado por Kathy Gannon, testemunha o seguinte: em 2 de Julho «os
Estados Unidos deixaram a base aérea de Bagram no Afeganistão ao cabo de quase
20 anos apagando as luzes e fugindo durante a noite sem notificarem o novo comandante afegão da base, que deu pela
partida dos norte-americanos mais de duas horas depois, segundo fontes afegãs».
O império e o seu aparelho de
guerra, a NATO, escapuliram-se de fininho pela calada da noite tentando evitar
a repetição das imagens de 1975 em Saigão, quando chefes militares e diplomatas
norte-americanos treparam apressadamente para helicópteros na altura em que os
patriotas vietnamitas estavam a entrar na cidade. O secretismo cobarde da
operação não esconde nem disfarça, porém, mais uma derrota militar dos Estados
Unidos e dos aliados – entre os quais Portugal – desta feita na sua guerra mais
longa, que duplicou o tempo de envolvimento no Vietname.
Para trás ficaram mais centenas
de milhar de baixas – o número real provavelmente jamais será conhecido –
biliões de dólares queimados, um país em guerra e completamente destruído. Mais
um, a juntar ao Iraque, à Síria e à Líbia, para citar apenas os casos mais
recentes.
Missão cumprida, proclamou o
comandante em chefe de turno da «civilização ocidental», Joseph Biden. «Os
Estados Unidos fizeram o que vieram fazer… apanhar os terroristas que nos
atacaram em 11 de Setembro; agora é hora de voltar para casa». Assim se escreve
a história, falsificando-a, contando com a memória cada vez mais curta das
opiniões públicas trabalhadas por uma comunicação social agindo em modo de
propaganda. Segundo a narrativa oficial, o suposto responsável pelos atentados
de 11 de Setembro, Osama bin Laden, foi assassinado por forças especiais
norte-americanas em 2 de Maio de 2011, há dez anos: a «hora de voltar para
casa» está, portanto, uma década atrasada. É verdade que também não pode ter-se
a certeza sobre a morte de bin Laden nessa data, porque os matadores se
apressaram a lançar o cadáver aos peixes. A operação serviu principalmente para
honra e glória do presidente dos Estados Unidos que, até ao momento, terá
cometido mais execuções extrajudiciais: Barack Obama. De quem Biden foi
vice-presidente.
E não é necessário fazer uma
grande pesquisa de documentação para concluir que os objectivos oficiais
declarados da invasão do Afeganistão, iniciada no Outono de 2001, prometiam um
país reconstruido, democrático e estável, livre de terroristas uma vez derrotados
os Talibã e os seus protegidos. Ora os Talibã controlam hoje 80% do Afeganistão
– apenas menos 5% do que em 2001 –, em Cabul (e pouco mais) reinam um
presidente e uma classe política corrupta, as eleições, quando as há, são
exemplos de falsificação; e, segundo as notícias mais recentes, os ex-ocupantes
e os seus homens de mão estão a ressuscitar as milícias terroristas fundadas
pela CIA nos anos oitenta e que foram exterminadas pelos Talibã entre 1992 e
1996.
Bagram era um símbolo
A fuga imperial de Bagram é um
episódio que marca, como nenhum outro, a derrota dos Estados Unidos e da NATO
no Afeganistão. A base de Bagram era um símbolo e um centro operacional da
ocupação. Situada apenas a 60 quilómetros de Cabul, era também o principal
ponto de apoio militar ao regime instalado na capital e que nunca conseguiu
estender a sua acção muito para lá do perímetro da principal cidade do país.
Bagram era também um dos
principais centros de tortura que caracterizam as guerras eternas impostas
pelos Estados Unidos e aliados como sustentáculos de uma ordem mundial unipolar
assente no imperialismo e no colonialismo militar da NATO ao serviço da
globalização do regime único neoliberal.
Embora a fuga de Bagram marque o
fim de 20 anos de invasão e ocupação do Afeganistão pela NATO, a intervenção
norte-americana no país iniciou-se muito antes, há 42 anos, ainda na
administração do presidente democrata James Carter e do seu chefe do Conselho
de Segurança Nacional, o estratego Zbigniew Brzezinski.
Foi nessa altura que os Estados
Unidos, por intermédio da CIA e também do Paquistão, França, Reino Unido e
Arábia Saudita criaram a malha de terrorismo de fachada islâmica para
combaterem indirectamente a presença militar da União Soviética no apoio ao
governo progressista de Cabul. É impossível ter a noção do que seria hoje o
Afeganistão sob a acção continuada dos governos da República Democrática –
designadamente em áreas como a educação, a saúde, as vias de comunicação, o
abastecimento de água e energia e os direitos das mulheres – se a sua
actividade não tivesse sido sabotada pelo terrorismo disseminado pelos Estados
Unidos e que deu origem a aberrações como Bin Laden, a al-Qaeda e os gangues de
criminosos conhecidos como Mujahidines.
É importante recordar que a
República Democrática do Afeganistão sobreviveu três anos à retirada militar
soviética, em 1989, e apenas foi derrotada quando a Rússia do inqualificável
Boris Ieltsin e da sua corte de «reformadores» lhe retirou apoio, dando assim
alento às várias facções terroristas, que não tardaram em entrar numa
destruidora guerra civil.
Por outro lado, ao contrário da
narrativa oficial consumida no Ocidente, a retirada soviética não
foi descoordenada, nem desordenada, nem um caos, muito menos uma debandada pela
calada da noite.
Escreve o analista Lester W. Grau
na publicação Slavic Militay Studies: «Há uma narrativa e uma percepção
comum de que os soviéticos foram derrotados e expulsos do Afeganistão. Isso não
é verdade. Quando os soviéticos deixaram o Afeganistão em 1989 fizeram-no de
forma coordenada, deliberada e profissional, deixando para trás um governo a
funcionar, uma situação militar melhorada e um esforço consultivo e económico
que garantiu a viabilidade e a continuidade do governo. A retirada foi baseada
num plano diplomático, económico e militar coordenado, permitindo que as forças
soviéticas se retirassem em boa ordem e que o governo afegão sobrevivesse».
Pelo contrário, a acção
norte-americana baseada nos grupos terroristas islâmicos com mentalidade
medieval, que hoje funcionam como braços supletivos da NATO, por exemplo nas
guerras eternas na Síria e no Iraque, tal como aconteceu na Líbia, foi o
princípio do fim da experiência modernizadora do Afeganistão, afundando o país
num caos ingovernável só travado transitória e parcialmente pelos Talibã em
1996.
Da mesma maneira, a retirada
norte-americana e da NATO simbolizada em Bagram, sob o signo da missão
cumprida, deixa o Afeganistão como um país dilacerado e mergulhado na guerra
civil.
Mas a partida da guarnição da
base pela calada da noite significa uma retirada de facto ou uma transição para
a continuação da influência norte-americana agora sob o formato de guerra
híbrida, tal como acontece na Síria e em grande parte do Iraque? Muitos
indícios apontam para esta metamorfose da ocupação, mas os Talibã, progredindo
no terreno sobre a ineficácia e o desmoronamento das forças de segurança
montadas pelos ocupantes, têm muito a dizer quanto às próximas etapas no país.