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A expansão da OTAN e a provocação ininterrupta à Rússia foi e é um perigoso erro geopolítico e uma traição à esperança de paz compartilhada pela humanidade
A controvérsia
EUA/OTAN/Ucrânia/Rússia não é inteiramente nova. Já vimos o potencial de sérios
problemas em 2014, quando os Estados Unidos e os Estados europeus interferiram
nos assuntos internos da Ucrânia e secretamente/abertamente conspiraram para o
golpe de estado contra o presidente democraticamente eleito da Ucrânia, Viktor
Yanukovych, porque ele não estava jogando o jogo que lhe foi determinado pelo
Ocidente. Claro, nossa mídia saudou o putsch como uma “revolução
colorida” com todos os sinais exteriores de democracia.
A crise de 2021/22 é uma continuação lógica das políticas expansionistas que a
OTAN tem perseguido desde o fim da União Soviética, como vários professores de
direito internacional e relações internacionais têm indicado há muito tempo –
incluindo Richard Falk, John Mearsheimer, Stephen Kinzer e Francis Boyle. A
abordagem da OTAN concretiza a pretensão estadunidense de ter a “missão” de
exportar seu modelo socioeconômico para outros países, não obstante as
preferências dos estados soberanos e a autodeterminação dos povos.
Embora as narrativas dos EUA e da OTAN tenham se mostrado imprecisas e às vezes
deliberadamente mentirosas em várias ocasiões, o fato é que a maioria dos
cidadãos do mundo ocidental acredita acriticamente no que lhes é dito. A
“imprensa de qualidade”, incluindo o New York Times, Washington Post, The
Times, Le Monde, El Pais, NZZ e FAZ são efetivas câmaras de eco do consenso de
Washington e apoiam entusiasticamente a ofensiva nas relações públicas e na
propaganda geopolítica.
Claro, a OTAN dificilmente pode ser vista como uma religião de bem-aventuranças e do sermão da montanha (Mateus V, 3-10), exceto por uma bem-aventurança tipicamente ocidental – Beati Possidetis – bem-aventurados aqueles que possuem e ocupam. O que é meu é meu, o que é seu é negociável. O que eu ocupo, eu roubei honestamente e conforme as regras. Quando olhamos para a OTAN como religião, podemos entender melhor certos desenvolvimentos políticos na Europa e no Oriente Médio, Ucrânia, Iugoslávia, Líbia, Síria, Iraque.
O credo da OTAN é um pouco calvinista – um credo para e pelos “eleitos”. E, por definição, nós no Ocidente somos os “eleitos”, que significa “os mocinhos”. Somente nós teremos a salvação. Tudo isso pode ser tomado pela fé. Como toda religião, a religião da OTAN tem seu próprio dogma e léxico. No léxico da OTAN, uma “revolução colorida” é um golpe de estado, democracia coincide com capitalismo, a intervenção humanitária implica “mudança de regime”, “estado de direito” significa NOSSAS regras, o Satã número 1 é Putin e o Satã número 2 é Xi Jinping.
Podemos acreditar na religião da OTAN? Claro. Como o filósofo romano / cartaginês Tertuliano escreveu no século III DC – credo quia absurdum. Acredito porque é um absurdo. Pior do que os absurdos ordinários – exigem mentiras constantes para o povo norte-americano, para o mundo, para a ONU.
Exemplos? A propaganda enganosa de armas de destruição em massa em 2003 não foi apenas uma simples “pia fraus” – ou mentira leve. Foi bem orquestrada e havia muitos jogadores. A parte triste é que um milhão de iraquianos pagou com a vida e seu país foi devastado. Como norte-americano, eu e muitos outros gritamos “não em nosso nome”. Mas quem ouviu? O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, repetidamente classificou a invasão como contrária à Carta da ONU e, quando encurralado por jornalistas para esclarecimentos, afirmou que a invasão era “uma guerra ilegal”.
Pior do que meramente uma guerra ilegal, foi a mais grave violação dos Princípios de Nuremberg desde os Julgamentos de Nuremberg – uma verdadeira rebelião contra o direito internacional. Não apenas os EUA, mas a chamada “coalizão dos dispostos”, 43 Estados ostensivamente comprometidos com a Carta da ONU e com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, atacaram deliberadamente o estado de direito internacional.
Alguém poderia pensar que, depois de ter sido enganado em questões de vida ou morte, um ceticismo saudável, algum grau de cautela se estabeleceria, que pessoas racionais pensariam “já não ouvimos esse tipo de propaganda antes?” Mas não, se a OTAN é de fato uma religião, a priori tomamos seus pronunciamentos com base na fé. Não questionamos Jens Stoltenberg [Secretário-geral da Otan]. Parece haver um acordo tácito de que mentir em questões de Estado é “honroso” e que questioná-las é “antipatriótico” – novamente o princípio maquiavélico de que o suposto fim bom justifica os meios maus.
A apostasia é um dos problemas de qualquer religião. Isso acontece frequentemente quando os líderes de uma religião mentem descaradamente para os fiéis. Quando as pessoas perdem a fé na liderança atual, elas procuram outra coisa em que acreditar, por exemplo, história, herança, tradição. Atrevo-me a me considerar um patriota dos EUA – e um apóstata da religião da OTAN – porque rejeito a ideia de que estou com “meu país esteja ele certo ou errado”. Quero que meu país esteja certo e faça justiça – e quando o país estiver no caminho errado, quero que ele retorne aos ideais da Constituição, de nossa Declaração de Independência, do discurso de Gettysburg – algo em que ainda posso acreditar.
A OTAN emergiu como a religião perfeita para valentões e belicistas, não muito diferente de outras ideologias expansionistas do passado. No fundo, os romanos eram orgulhosos de suas legiões, os granadeiros franceses morreram alegremente pelas glórias de Napoleão, soldados aos milhares aplaudiram as campanhas de bombardeio sobre o Vietnã, Laos e Camboja.
Pessoalmente, vejo a OTAN na tradição do valentão da aldeia. Mas a maioria dos norte-americanos não pode saltar sobre suas próprias sombras. Emocionalmente, a maioria deles não tem a audácia de rejeitar nossa liderança. Talvez porque a OTAN se autoproclame uma força positiva para a democracia e os direitos humanos. Eu perguntaria às vítimas de drones e de urânio empobrecido no Afeganistão, Iraque, Síria, Iugoslávia o que eles pensam sobre a linhagem da OTAN.
Muitas religiões são solipsistas, exageram sua própria importância, baseadas na premissa de que ela e somente ela possui a verdade – e que o diabo ameaça essa verdade. A OTAN é uma religião solipsista clássica, autossuficiente, egoísta, baseada na premissa de que a OTAN é, por definição, a Força boa. Um solipsista é incapaz de autorreflexão, autocrítica, incapaz de ver os outros como ele mesmo – com pontos fortes e fracos, e possivelmente com algumas verdades também.
A OTAN se baseia no dogma “excepcionalista” praticado pelos Estados Unidos há mais de dois séculos. De acordo com a doutrina do “excepcionalismo”, os EUA e a OTAN estão ambos acima do direito internacional – até acima do direito natural. “Excepcionalismo” é outra expressão para o slogan romano “quod licet Jovi, non licet bovi” – o que Júpiter pode fazer, certamente não é permitido para mortais comuns como nós. Nós somos os “bovi”, os bovinos.
Além disso, nós, no Ocidente, nos acostumamos tanto com nossa “cultura da trapaça” – que reagimos surpresos quando outro país não aceita simplesmente quando o enganamos. Essa cultura da trapaça se tornou tão natural para nós, que nem percebemos quando enganamos outra pessoa. É uma forma de comportamento predador que a civilização ainda não conseguiu erradicar.
Mas, honestamente, a OTAN também não é um reflexo do imperialismo do século XXI, semelhante ao neocolonialismo? A OTAN não apenas provoca e ameaça rivais geopolíticos, mas na verdade saqueia e explora seus próprios Estados membros – não para sua própria segurança – mas para benefício do complexo militar-industrial. Isso deveria ser óbvio para todos – mas não é nada óbvio – que a segurança da Europa está no diálogo e no compromisso, na compreensão das opiniões de todos os seres humanos que vivem no continente. A segurança nunca foi idêntica à corrida armamentista e demonstração de força.
De acordo com a narrativa predominante, os crimes cometidos pela OTAN nos últimos 73 anos não são crimes, mas erros lamentáveis. Como historiador – não apenas como jurista – reconheço que podemos estar perdendo a batalha pela verdade. É bastante provável que em trinta, cinquenta, oitenta anos, a propaganda da OTAN emerja como a verdade histórica aceita – solidamente cimentada e repetida nos livros de história. Isso ocorre em parte porque a maioria dos historiadores, assim como os advogados, são canetas de aluguel.
Esqueça a ilusão de que com o passar do tempo a objetividade histórica aumenta. Pelo contrário, todas as mentiras que as testemunhas oculares podem desmascarar hoje acabam se tornando a narrativa histórica aceita, uma vez que os especialistas estão todos mortos e não podem mais desafiar a narrativa. Esqueça os documentos desclassificados que contradizem a narrativa, porque a experiência mostra que só muito raramente eles podem derrubar uma mentira política bem arraigada. Na verdade, a mentira política não morrerá até que deixe de ser politicamente útil.
Infelizmente, muitos norte-americanos e europeus continuam a comprar a narrativa da OTAN –talvez porque seja fácil e reconfortante pensar que somos os “mocinhos” e que os graves perigos “lá fora” tornam a OTAN necessária para nossa sobrevivência. Como Júlio César escreveu em seu “De bello civile” – quae volumus, ea credimus libenter. Acreditamos no que queremos acreditar – em outras palavras, mundus vult decepi – o mundo realmente quer ser enganado
Vista objetivamente, a expansão da OTAN e a provocação ininterrupta à Rússia foi e é um perigoso erro geopolítico, uma traição à confiança que devemos ao povo russo – pior ainda – uma traição à esperança de paz compartilhada pela grande maioria da humanidade . Em 1989/91 tivemos a oportunidade e a responsabilidade de garantir a paz global. A arrogância e a megalomania mataram essa esperança.
O complexo militar-industrial-financeiro conta com a guerra perpétua para continuar gerando bilhões de dólares em lucros. 1989 poderia ter inaugurado uma era de implementação da Carta da ONU, de respeito ao direito internacional, uma conversão de economias militares em economias de segurança humana e serviços humanos, o corte de orçamentos militares inúteis e o direcionamento dos fundos liberados para erradicar a pobreza, a malária, as pandemias, dedicando mais fundos à pesquisa e desenvolvimento no setor da saúde, melhorando hospitais e infraestrutura, abordando as mudanças climáticas, conservando estradas e pontes…
Quem tem a responsabilidade por esta enorme traição do mundo? O falecido presidente George H. W. Bush e a falecida primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, juntamente com seus sucessores e todos os seus conselheiros neoconservadores e proponentes do “excepcionalismo”, juntamente com os think tanks e especialistas que os aplaudiram.
Como essa traição foi possível? Somente através de desinformação e propaganda. Só com a cumplicidade da mídia corporativa, que aplaudiu a ideia de Fukuyama de “o fim da história” e “o vencedor leva tudo”. Por um tempo, a OTAN se deleitou com a ilusão de ser o Hegemon. Quanto tempo durou essa quimera do mundo unipolar? E quantas atrocidades foram cometidas pela OTAN para impor sua hegemonia no mundo – quantos crimes contra a humanidade foram cometidos em nome da “democracia” e dos “valores europeus”?
A mídia corporativa obedientemente jogou o jogo ao declarar que a Rússia e a China são nossos inimigos jurados. Qualquer discussão razoável com russos e chineses foi e é denunciada como “apaziguamento”. Mas não deveríamos nos olhar no espelho e reconhecer que os únicos que deveriam se “apaziguar” somos nós? Na verdade, precisamos nos acalmar e parar de agredir todo mundo – parar as ofensivas militares e de informação.
Se há um país que pouquíssimo se importa com o estado de direito internacional – também conhecido como “ordem internacional baseada em regras” de Blinken – é, infelizmente, meu país, os Estados Unidos da América.
Entre os tratados que os EUA não ratificaram estão a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Estatuto do TPI, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, o Tratado de Céus Abertos, o Protocolo Facultativo à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, o Protocolo Facultativo à Convenção de Viena sobre Relações Consulares, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a Convenção sobre Trabalhadores Migrantes, a Convenção sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais…
No final das contas, entendemos que nem Huntington nem Fukuyama captaram corretamente o século 21 – Orwell sim.
*Publicado em Carta Maior
*Alfred de Zayas é professor da Escola de Diplomacia de Genebra e atuou como
Especialista Independente da ONU na Promoção de uma Ordem Internacional
Democrática e Equitativa 2012-2018.
*Publicado originalmente por CounterPunch |
Traduzido por César Locatelli
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