terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A UCRÂNIA É O PRETEXTO


Mariana Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião

Em 1962, o Mundo viveu um impasse perigoso quando, em plena Guerra Fria, a União Soviética instalou mísseis nucleares na ilha de Cuba, recentemente libertada do ditador Fulgêncio Batista.

Perante a ameaça, Kennedy determinou o bloqueio naval da ilha, levantado quando os EUA se comprometeram a não invadir Cuba e ambas as potências retiraram os seus mísseis, a URSS de Cuba e os EUA da Turquia, perto da fronteira soviética.

Em 1991, com o fim da URSS, desfez-se o Pacto de Varsóvia, a aliança militar que juntava os países sob hegemonia soviética. Contra as promessas então feitas, a Aliança Atlântica (NATO), dominada pelos Estados Unidos da América, não se dissolveu. Pelo contrário, expandiu-se para vários países que antes tinham pertencido ao bloco soviético, levando a sua lógica militarista ao espaço de influência russo. Vladimir Putin, o autocrata que dirige a Rússia desde 2000, emerge deste caldo de humilhação económica e geopolítica que acompanhou o fim da URSS.

Desde que chegou ao poder apoiado pelas oligarquias da guerra e do petróleo/gás, Putin utiliza as pretensões norte-americanas, concretizadas através dos avanços da NATO, para reforçar o seu poder interno, calar a oposição e até justificar a sua própria política expansionista, nomeadamente no Cáucaso e em algumas províncias ucranianas com fortes comunidades pró-russas.

Desde o fim da URSS que a Ucrânia oscila entre a influência ocidental e a russa, com governos apoiados ora por um, ora por outro polo. A tensão levou a vários conflitos: além das forças pró-UE ou pró-russas, participaram movimentos nacionalistas de extrema-direita. Um dos seus pontos altos foi a anexação da República da Crimeia pela Rússia em 2014, depois de um referendo à população que não foi reconhecido pela Ucrânia ou pelos EUA.

O conflito conhece agora outro momento de impasse. Perante a iminente adesão da Ucrânia à NATO, Putin enviou 100 000 tropas para a fronteira, alegando que a decisão ameaça o seu território. Assim como os EUA não aceitaram, em 1962, a ameaça soviética junto à sua fronteira, nesta nova espécie de guerra fria, Putin não está disposto a ter ao pé da porta o poder militar norte-americano e exige o recuo do espaço da NATO. Além disso, não é de excluir que o presidente russo esteja a aproveitar este perigoso braço de ferro para se legitimar internamente, a caminho das eleições de 2024. Mas não é o único a fazê-lo.

Enquanto a Rússia (e as autoridades ucranianas) continuam a afastar a hipótese de uma invasão, os porta-vozes do Ocidente parecem querer precipitar o evitável. O responsável pela Defesa dos EUA anunciou uma invasão iminente, o primeiro-ministro britânico mencionou, sem provas, a existência de agitadores russos na Ucrânia e o presidente Biden quis competir com Putin em arrogância e temeridade. Ao contrário da solução diplomática, que exigiria a retirada de todas as forças estrangeiras e a neutralidade militar da Ucrânia, o conflito permite aos EUA a imposição de sanções inéditas à Rússia, como a expulsão do sistema de pagamentos internacionais e o bloqueio do gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha. Ambas as potências ficariam assim isoladas e enfraquecidas. Por seu lado, na UE não falta quem deseje aproveitar o conflito para justificar o projeto de um exército europeu, a começar pela indústria do armamento.

Como sempre, há muito em jogo, nesta guerra económica e de influências a nível mundial. A Ucrânia é o pretexto e o seu povo é a última preocupação.

*Deputada do BE

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