“CÍRCULO
Martinho Júnior, Luanda
As mais que legítimos rupturas que foram os 4 de fevereiro de 1961 e o de 1982 nas duas margens do Atlântico Sul, obrigam-nos muito mais que a um simples acto de memória: obrigam-nos à mais que legítima reflexão sobre o colectivo que nós somos, para que ele ganhe a sustentabilidade de garante de segurança vital para as presentes e futuras gerações!
01- Para os que procuram ganhar conhecimento em relação às ciências humanas no Sul Global, há um arsenal de questões prévias sempre a definir e a ter em consideração: vão-se fazer as abordagens em que termos, a partir de que métodos, de que experiências, em função de que ética e de que moral, quando a desesperada busca de ética e de moral correspondem mais que nunca aos quotidianos ultraperiféricos em pleno século XXI, no espectro do contraditório universal entre barbárie e civilização, entre o que é obsoleto e retrógrado e o que é urgente emergência?!
Assim há um conjunto alargado de notas prévias de natureza profundamente dialética a fazer nas abordagens de ordem antropológica, de ordem histórica, de ordem sociológica, de ordem psicológica e de ordem económica, por que as leituras do balanço entre barbárie e civilização, evocando as correntes de interpretação e sua identidade no espaço e no tempo, passam ao domínio da filosofia substantiva que emerge dessa abrangência tão exigente, a filosofia-síntese da lógica com sentido de vida, que por dentro do pensamento e da acção interligam cada passo da nossa própria existência por causa da necessidade extrema das opções em relâmpagos de fulminante urgência!
Nesse quadro de lógica com sentido de vida, as questões da libertação e da liberdade, da democracia e da tirania, da legitimidade e da legalidade, do capitalismo e da aspiração socialista, das assimetrias e dos desequilíbrios que desembocam na insuportável injustiça social, da hegemonia unipolar e do multilateralismo, entre outras mais questões de fundo inerentes ao ser e aos artifícios do ter, iluminam a perspicácia dos investigadores que fazem a abordagem na larga pista das ciências humanas e económicas, tal como iluminam o conhecimento sobre o relacionamento do homem com a natureza!
No relacionamento do homem para com a natureza há também questões que são medidas por via do balanço sobre a intensidade, pertinência e acutilância das pesquisas responsáveis e o lastro do que é irracional, por que em pleno século XXI o homem ganhou consciência não só dos estragos provocados pela sua acção em relação à natureza, particularmente por causa do que foi nocivo no âmbito da revolução industrial, sobre o ambiente que propicia a sua própria vida, mas também ganhou a consciência que está a ir buscar à natureza recursos que o planeta, a Mãe Terra, tem cada vez mais dificuldade em renovar, ou até mesmo reciclar, o que adverte para o abismo do fim da espécie, o abisma do qual o homem se aproxima, de que o Comandante Fidel alertou naqueles idos anos da década de 80 do século passado.
Os 4 de Fevereiro, o de 1961 e o de 1982, ocorridos nas margens do Atlântico Sul, obrigam-nos de facto ao balanço entre o que é mais que legítimo e a legalidade, mas vão mais longe: obrigam-nos a questionar questões essenciais, a fim de não nos deixarmos levar por uma qualquer “revolução colorida” ou “primavera árabe”, expedientes ilegais que se aproveitam de franjas de legitimidade e subvertem a democracia!
02- Por causa das enormes falências de sua própria educação, parida em circunstâncias de irracionalidade produto de jugos que estão muito para lá das montanhas e dos desertos, o homem não ganhou individual e colectivamente a noção da responsabilidade sobre a água, por que o homem é aquele analfabeto que desconhece até que a água perfaz 65% do seu próprio corpo e, se desconhece isso em relação a si próprio, em relação à vida de que tanto carece a humanidade tanto pior: sobre a água na natureza e no ambiente que o cerca, o homem aplica a irracionalidade da grande devassa!
Essa questão tem implicações de vulto na melhor definição das questões que se prendem à segurança vital que sendo mais que legítima, obriga à legalidade que nada tem a ver com elitismo, ou utilitarismo economicista!
No caso do território angolano a ausência de lógica com sentido de vida, optando e fazendo prevalecer tendências economicistas e elitistas de espectro pragmático-liberal que avassalam África em função de interesses que respondem a círculos de poder exteriores ao continente, o contraditório é neste momento muito legitimamente crítico, apesar de ser extremamente limitado!
Não há respeito devido por que não se orienta a prioridade do conhecimento para a água na natureza, para a necessidade de seu salutar controlo e gestão, o controlo e a gestão da água interior!
A região fulcral que nutre em
África e na América, as nascentes do Kwanza e do Orinoco, à luz da legitimidade
que se desprende desde os
03- Essa falência em Angola implica-se na mentalidade do desrespeito para com a Mãe Terra, para com a água emanada na região central das grandes nascentes, para o ciclo atmosférico, à superfície e nos subterrâneos aquíferos, o desrespeito pela premente necessidade de proteger recursos que são vida em termos de garantes de segurança efectivamente vital para as presentes e futuras gerações, em relação aos alicerces da necessidade de sustentabilidade nas opções económicas, necessidade essa que provém da gestão inteligente dos recursos, que aliás pode e deve ser o ponto de partida duma cultura patriótica e renascentista de inteligência nacional!
Em todas as épocas esses balanços são implicitamente feitos, particularmente nas horas mais decisivas ou nas suas memórias e em Angola esses balanços ocorreram também implicitamente no 4 de fevereiro de 1961, quando fermentava a ideia de necessidade absoluta de romper com o colonialismo, dadas as características da persistência infecunda desse colonialismo, do seu niilismo em relação às mais legítimas aspirações dos que sofriam colectivamente a opressão e a repressão, a falta de ética e a falta de moral de quem detinha poder em estado de fascismo e de colonialismo e o homem angolano que sarcasticamente era compelido ao grotesco da figura de “indígena”!...
Há que legitimamente reinterpretar as imensas lições dos 4 de Fevereiro!
Da parte do colonial-fascismo inaugurou-se por causa do choque da ruptura e das capacidades de resposta do movimento popular de libertação em África, a necessidade de, ao persistir mentalidade e poder, se encontrarem soluções expeditas que não passavam de mais irracionalidade perante os desafios que a ruptura impunha, num ambiente volátil de contraditórios que transversalmente incidiam e se reflectiam, nos seus parâmetros filosóficos, doutrinários e ideológicos, no poder retrógrado e onde se manifestava a sua acção, definindo as suas características, desde a natureza do que consistia na superestrutura ideológica que alimentava a barbárie de sua própria persistência e sobrevivência, até à vertigem alienada do seu comportamento e acção!
04- A “africanização da guerra” foi assim um primeiro sinal de sua impotência face aos desafios de ruptura, como também um primeiro sinal sobre como iria fazer as abordagens face a um movimento popular de libertação que se disseminava em África e contagiava legitimamente os povos, um a um, de Argel ao Cabo… um movimento popular de libertação inteligente, vigoroso, renascentista e salutar que remetia o colonial-fascismo português inserido no espaço da África Austral e Central (espaço do Exercício AlCoRA) para uma zona cinzenta onde disputava espaço de natureza tão fluida, carregado de contraditórios, tentando assim salvaguardar a continuidade de sua manifestação, ou seja numa pungente situação em que só lhe faltava perceber que estava a ser posto em causa, por via da mais telúrica mensagem, o seu próprio ser!
No 4 de Fevereiro de 1961 os autores intelectuais (eles próprios religiosos de formação católica uns, de formação metodista outros, outros ainda de patrióticas sensibilidades que arrojaram com a prisão e o desterro) começavam a ter mananciais de inquietação e de opção que respondiam a tudo isso do lado dos oprimidos e de sua psicologia, (uma abordagem que Franz Fanon fez com imensa capacidade crítica em função da luta de libertação nacional na Argélia) ainda que a identidade nacional fosse um ténue embrião nessa altura e a noção da necessidade de respeito para com a Mãe Terra fosse ainda tão esbatida, apesar da informação de natureza antropológica sobretudo de quem foi autor material do acto (substractos sociais do subúrbio urbano de Luanda e dos circuitos rurais no entorno de Luanda, onde grassavam janelas de cosmopolitismo, apesar do trabalho escravo, ou semiescravo)!
Pondo em risco sua segurança física, os que levaram a cabo a ruptura que simbolizava o acto mais que legítimo do 4 de Fevereiro de 1961 em Angola, deram um passo no sentido da segurança vital que só pode ser segurança colectiva, nos caboucos duma cultura de patriotismo!...
O seu poder foi de tal ordem que abalou a Igreja Apostólica Romana: ou continuava de pé a legalidade retrógrada e pérfida da Concordata da Santa Sé com Salazar, ou a telúrica reflexão levava a Paulo VI, por via da Encíclica “Populorum Progressio” e ao passo da audiência dos que protagonizavam a continuidade da luta popular de libertação em África, como Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos!
Foi essa a mensagem captada pelo movimento de libertação em África em ruptura própria, mais que legítima. “daqueles por quem se espera”!
Foi uma derrota tática esse 4 de Fevereiro de 1961 em Angola, como seria uma derrota tática o 4 de fevereiro de 1982 na Venezuela Boliviariana, 21 anos mais tarde no outro lado do Atlântico, mas essas derrotas táticas foram mesmo “por ora”, por que os fenómenos de ruptura são fenómenos de profundas raízes garantes de continuidade que vão marcar sempre o vigor e a energia de décadas na vida dos oprimidos enquanto ainda o forem e são um inspirador recurso de pensamento, acção e criatividade em todos os momentos na vida, para todas as gerações que procuram perceber as conjunturas e as perspectivas éticas e morais substantivas de sua existência, algo que passa também pela compreensão consciente do que diz respeito à segurança vital colectiva!...
Martinho Júnior, 2 de Fevereiro de 2022
Imagem: quadro de Malangatana, sem título, alusivo à luta de libertação popular patriótica em ruptura contra o colonialismo, qum contributo decisivo à autodeterminação e à independência dos povos em África – https://mag.sapo.pt/showbiz/artigos/malangatana-antonio-ole-shikhani-e-bertina-lopes-em-leilao-de-arte-africana-em-nova-iorque
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