segunda-feira, 28 de março de 2022

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

Soba Levou a Fome para Casa

Seke La Bindo

Aconteceu mesmo no Dala, à vista das quedas, no tempo em que o homem era burro e o burro era homem. O sobrinho de um poderoso soba, senhor de água e terra, celeiros repletos e súbditos espalhados por toda a terra, casou com uma bela princesa. O jovem saiu com a sua mulher da embala e construiu a sua casa, com a força da sua vontade. Nunca na região existiu um casal tão feliz e unido.

Um dia o velho soba morreu e o sobrinho foi ocupar o seu lugar. Quando chegou à embala, uma velha mulher que o viu nascer, disse-lhe estas palavras sábias:

- Muitas concubinas não conseguem fazer uma esposa!

O jovem estava eufórico com as suas novas funções e pensou para si que a velha devia estar perturbada, devido à sua longa idade e por carregar nas suas costas curvadas tantos cacimbos.

A mamã que o ajudou a crescer foi felicitá-lo por ser o novo soba. E aproveitou para lhe dizer:

- Quem tem muitas mulheres não tem o amor de nenhuma!

O soba estava tão feliz pela sua nova condição que mal ouviu as sábias palavras daquela que foi a sua primeira professora.

Nessa noite disse à mulher que ia arranjar outras mulheres para que na sua casa houvesse sempre comida para os hóspedes e os viajantes. A mulher ficou pensativa e respondeu:

- Tu és o soba, por isso podes fazer o que quiseres. Mas nunca te esqueças dos anos que fomos felizes quando erguemos a nossa casa e a enchemos de filhos.

Na aldeia existia um velho sábio que sabia tanta coisa, que até conhecia o corredor desde as montanhas até ao mar. O soba disse-lhe que queria arranjar mais mulheres, para nunca faltar comida em sua casa. O velho olhou-o com um ar misterioso e depois sentenciou:

- Wahálika wáfwa zala! Quem tem muitas mulheres morre de fome.

O soba ficou pensativo mas achou que o velho sábio, dada a sua idade avançada, perdeu o juízo. É bom ter sempre uma mulher a cuidar da lavra e outra no pilão a fazer farinha. Jamais pode acabar a comida na casa de um soba com muitas mulheres. Mas mesmo assim, ainda foi consultar uma velha que adivinhava a chuva e aspergia bênçãos sobre as lavras, que multiplicavam por mil a produção das mandioqueiras. Ela devia saber se a sua decisão de ter muitas mulheres estava certa. 

A velha adivinha olhou para ele e disse num tom severo:

- Walimakéxi kulanda! A quem trabalha não falta comida. 

Depois a velha pegou-lhe ternamente na mão e disse em surdina:

 - Mais vale termos um pé do que duas muletas.

O soba ficou decepcionado com a resposta da velha adivinha e não a levou a sério. Devia estar perturbada com as suas incursões ao mundo dos mortos. Ou quando foi ao rio encontrou o Come Vidas. O encontro eixou-a  tão assustada que não é capaz de compreender a bondade de um soba ter muitas mulheres.

E não ouviu mais ninguém. Arranjou seis mulheres e construiu uma cubata para cada uma na sua embala. Andava tão contente com a sua vida, que nem sequer foi capaz de ver a infinita tristeza que a sua primeira mulher carregava.

Um dia o soba foi à cubata de uma das mulheres e disse-lhe para preparar o pirão e o conduto. E a bela jovem respondeu ríspida:

- Vai comer na casa onde dormiste. 

E o soba nessa noite dormiu sem nada no estômago. Uns dias depois foi à cubata de outra mulher e pediu-lhe que preparasse o pirão e o conduto. E ela virou-lhe as costas. Sem se dignar olhá-lo nos olhos disse zangada:

- Vai comer na cubata daquela que é a tua favorita.

O soba nessa noite foi outra vez dormir com a fome.

No dia seguinte foi à cubata de outra mulher e ordenou-lhe que preparasse uma grande panela de comida porque estava com fome. E a jovem encolerizada, respondeu:

- Vai comer na casa daquela que dizes ser a mais bela.

O soba nesse dia dormiu com a infelicidade.

No dia seguinte, chegaram de terras longínquas os seus vassalos que vinham trazer os seus tributos. O soba agasalhou-os e mandou as mulheres prepararem muita comida. À noite, quando chegou à tchóta, o soba encontrou os vassalos em silêncio e viu que no meio existia apenas um prato de comida para todos. Na casa do soba não havia fuba nem nada.

 Na manhã seguinte, bem cedinho, o soba foi ter com os vassalos à tchóta mas eles tinham partido bem cedo, porque na casa do soba não havia comida. Mas encontrou os mais velhos reunidos. E quando ele se sentou no seu lugar de soba, o porta-voz dos anciãos disse-lhe:

- Tu envergonhaste o nosso povo, os teus vassalos foram recebidos com fome. Na tua casa não existe o que há nas casas de quem trabalha. 

E retiraram-se. 

O soba ficou sozinho na tchóta, meditou e depois foi às cubatas das suas mulheres e mandou-as embora, ficando com a sua primeira companheira. E desde esse dia a casa do soba conheceu a felicidade e a abundância. 

A Mãe Extremosa e o Velho Viajante

Seke La Bindo

Lengwe era a melhor de todas as mães. Tirava da sua boca para alimentar os filhos, cobria-lhes a nudez com panos tecidos pelas suas mãos, agasalhava-os sob as asas quando o sol estava vermelho e lançava frio sobre os ninhos. Mas como ficou viúva cedo, faltava-lhe um homem que a ajudasse a vencer os tempos difíceis. Passava dias inteiros à janela para ver se passava algum pretendente. 

Um dia passou à porta de sua casa um belo jovem e ela perguntou:

- Queres agasalho, viajante? Não houve resposta. Lengwe foi ter com ele e atravessou-se no seu caminho. Repetiu a pergunta:

- Queres agasalho, viajante? Mas o homem nada disse. Respondeu com gestos, porque não ouvia nem falava. Lengwe pensou: 

- Este pode ser o companheiro que me interessa, porque o surdo não ouve intrigas: tjisit’atwi kayevi olombonde! 

O homem seguiu o seu caminho, sem dizer uma palavra. Lengwe ficou triste, mas continuou a cuidar dos filhos.

Num belo dia aproximou-se de sua casa um homem ricamente vestido mas com um andar aos tropeções. Lengwe interpelou-o:

- Queres agasalho em minha casa, viajante?

O homem parou a sua caminhada e respondeu:

- Onde estás que não te vejo? 

Lengwe pensou:

- Este homem é cego, pode ser o companheiro ideal, porque os cegos não conseguem ver as desgraças: omeke kamoli owima!

O viajante respondeu:

- Vou em demanda da terra da luz, onde os meus olhos podem ver. 

E seguiu o seu caminho aos tropeções.

Lengwe aceitou a sua solidão e continuou a cuidar dos filhos com carinho.

Andava na sua azáfama quando um dia se aproximou de casa, um jovem forte, que cantava cânticos desconhecidos. A mulher perguntou-lhe:

- Queres casar comigo, jovem cantor?

O homem respondeu:

- Eu nasci para percorrer o mundo, derrubar fronteiras e preconceitos, contradizer todos os deuses e reduzir a nada as religiões: Ame ndukwalunamalala, nda kuti, ndukwakulengwila, l’okuleva afendelo osi!

E continuou o seu caminho por montes e vales, rios e desertos, nuvens e mares.

Lengwe acabava de cuidar dos filhos e logo se punha à janela, à espera de um pretendente. Até que um dia passou à sua porta um homem velho, alquebrado, amparado a uma bengala.

A mulher pensou:

- Este velho dá um bom marido. Sabe muito e pode ajudar-me a carregar o meu pesado fardo.

- Queres casar comigo, viajante?

O velho parou, limpou o suor e respondeu:

- Eu sou uma velha montanha, a única coisa que vejo é donde vem a sombra: Ndukula womunda, oku kwilila ulembo, ndeteko!

- És mesmo tu, o desejado!

O velho nesse momento transformou-se num pássaro de mil cores, voou em círculos por cima da casa de Lengwe, de repente poisou no terreiro e transformou-se num belo rapaz. Os dois casaram e foram muito felizes.

O Lápis Prodigioso e a Lição da Vovó*

Seke La Bindo

Um menino Nataniel olhava atentamente para a avó, que estava a escrever uma carta de amor para um filho tão pródigo, que os contornos do seu sorriso se apagavam na doce memória dos anos em que era criança. Ele partiu quando sua mãe ainda via nele um fruto precioso na flor da idade e não tinha cabelos brancos de sofrimento e saudade.

A certa altura, o menino perguntou:

- Vovó Emília estás a escrever uma história sobre mim?

A avó parou de escrever a carta, sorriu, e respondeu ao neto:

Estou a escrever sobre ti, é verdade. Mas mais importante do que as palavras é o lápis que estou a usar e o que este momento significa. Gostava muito que tu fosses como ele, quando cresceres. 

O menino Nataniel olhou para o lápis, intrigado, e não viu nada de especial naquele objecto tão simples. Todos podiam ter um lápis, desde os meninos pobres aos mais ricos. Qualquer cantina do bairro tem lápis e esferográficas à venda que custam pouco mais que uns trocos desprezíveis.

O menino olhou para Vovó Emília e disse:

- Mas este lápis é igual a todos os que já vi!

Vovó Emília respondeu:

- Tudo depende da forma como olhas para as coisas, meu netinho! Há cinco qualidades nele que, se tu conseguires adquiri-las ou cultivá-las, estarás sempre em paz com o mundo.

Então Vovó Emília explicou ao neto Nataniel as qualidades que aquele simples objecto tinha e que todos os seres humanos deviam ter. 

Primeira qualidade: 

Todos podemos fazer grandes coisas, mas não devemos esquecer nunca que só realiza quem aprende, só aprendemos se tivermos professores e quem sabe mais palavras é mais do que quem sabe menos porque é capaz de fazer mais do que os outros. Devemos sempre conduzir a nossa vida em direcção ao saber. 

Segunda qualidade: 

De vez em quando é preciso parar de escrever e afiar a ponta, porque ela gasta-se. Isso faz com que o lápis sofra um pouco, mas com a ponta bem afiada fica mais eficaz para a escrita. Portanto, temos de saber suportar alguma dor, porque as dificuldades fazem de nós pessoas melhores.

Terceira qualidade: 

O lápis permite que usemos uma borracha para apagar aquilo que está errado. Isto é extraordinário. Se as pessoas pudessem usar uma borracha para apagar todos os erros que cometem na vida, tínhamos um mundo de pessoas felizes e realizadas. Corrigir os nossos erros, não é mau, pelo contrário, é algo muito importante para nos mantermos no caminho da Liberdade, da Dignidade e da Justiça.

Quarta qualidade: 

O que realmente importa no lápis, não é a madeira ou a sua forma exterior, mas o que está dentro. Porque esse pedacinho simples de carvão é que dá visibilidade às letras que as nossas mãos desenham no papel. Portanto, temos que cuidar do nosso interior, com todo o cuidado. 

Quinta qualidade: 

O lápis deixa sempre uma marca no papel. Também com as pessoas é assim. Tudo o que fazem na vida deixa traços, mais ou menos visíveis. Por isso devemos estar sempre conscientes de que os nossos actos não podem prejudicar ninguém. 

Moral da história: 

Devemos respeitar tudo o que nos envolve, por mais insignificante que seja. E ter a noção de que todos os momentos da vida são uma oportunidade. 

Conclusão: 

Ainda que sejas prudente e velho, não desprezes um conselho.

*Esta história foi contada por João Barros em Cabinda

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