sexta-feira, 15 de abril de 2022

A GUERRA NA UCRÂNIA É UMA GUERRA PELA EUROPA

Vijay Prasha*

A guerra na Ucrânia não é uma guerra simples. Não se trata de uma guerra meramente entre dois vizinhos sobre uma disputa de fronteira, por exemplo. É uma guerra complexa, uma guerra não apenas entre a Rússia e a Ucrânia, mas também uma guerra que envolve os Estados Unidos e a NATO (o Cavalo de Tróia dos Estados Unidos). O campo de batalha é a Ucrânia, mas não é apenas a Ucrânia. O campo de batalha, na verdade, é toda a Europa.

A EUROPA COMO ALIADO SUBORDINADO

No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estenderam o seu poder militar por meio de uma série de arranjos de segurança coletiva – do Pacto do Rio de 1947 ao Pacto de Bagdade de 1955. Um deles foi a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), formada em 1949. O objetivo da NATO, desde o início, era fornecer aos militares dos Estados Unidos a capacidade de expandirem o seu braço para fora do território dos Estados Unidos. Os Estados Unidos construíram bases na Europa e as suas forças armadas treinaram ao lado de militares europeus para criar o que mais tarde seria chamado 'interoperabilidade' (ou onde outros militares seriam treinados para coordenar lutas com o Comando Europeu dos EUA, criado em 1952). A tentativa europeia de construir uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC), como os Planos Fouchet de 1961 e 1962, soçobrou.

Quando a URSS entrou em colapso, os Estados Unidos confirmaram a permanência da NATO para garantir que Washington tivesse uma maneira de administrar a política externa da Europa. A Europa tentou desenvolver a sua PESC através do Tratado de Maastricht (1993) e do Tratado de Amesterdão (1997), mas os EUA conseguiram fazer gorar estas tentativas durante a guerra liderada pelos EUA para desmembrar a Jugoslávia (1999). As ambições alemãs foram contidas e a política da Europa ficou atrelada ao quartel-general da NATO. Usando o Artigo 5 da Carta da NATO, os Estados Unidos conseguiram atraí-la para a sua Guerra Global ao Terror (2001), que inclui a guerra no Afeganistão. A fragilidade encontrou a insistência dos EUA em atacar o Iraque em 2003, o que levou a outra tentativa da França e da Alemanha de desenvolver uma política externa independente; desta vez o instrumento foi o Tratado de Lisboa (2007), que criou o Alto Representante para a PESC.

Desde 2006, os Estados Unidos pressionaram a NATO para desenvolver uma postura global, o que atraiu os países da NATO para as aventuras dos EUA em rodear a China e a Rússia a partir de exercícios navais conjuntos no Mar Báltico e no Mar do Sul da China. Os documentos recentes da NATO – NATO 2030 (2021) e no Conceito Estratégico (2022) – deixam claro que a NATO Global estará posicionada para ser aliada na campanha de pressão imposta pelos EUA contra 'os desafios da Rússia e da China à ordem internacional baseada em regras '. É importante notar que a ideia de 'ordem internacional baseada em regras' é simplesmente a interpretação da ordem mundial imposta pelos EUA, não a ordem baseada na Carta da ONU (1945).

A EUROPA INCLINA-SE PARA A EURÁSIA

A partir de 1991, as ex-repúblicas da URSS, incluindo a Rússia, e os estados do Leste Europeu iniciaram um processo de integração com a Europa. Isso incluiu que muitos deles procurassem a adesão ao sistema comercial europeu – incluindo a União Europeia – e alguns deles se juntassem à NATO. A Rússia aderiu ao programa Parceria para a Paz da NATO em 1994, enquanto sete estados do Leste Europeu – incluindo dois que fazem fronteira com a Rússia (Estónia e Letónia) – aderiram à NATO em 2004. Moscovo, durante as presidências de Boris Yeltsin (1991-1999) e Vladimir Putin (1999), não se opôs a esses desenvolvimentos até a crise financeira mundial de 2006-07. Supunha-se que a Europa Central e Oriental, incluindo a Rússia, se juntaria ao Projeto Atlântico Norte, com a Rússia a juntar-se até ao G-7 (tornando-se o G-8) em 1997.

Durante a crise financeira mundial, tornou-se evidente que a integração no projeto europeu não seria totalmente possível devido às vulnerabilidades da Europa. Inevitavelmente, porém, a Europa iniciou um processo de vinculação à Rússia e à China. Com as sanções impostas pelos EUA ao Irão (aprofundadas em dezembro de 2006) e a guerra EUA-NATO na Líbia (2011), a Europa perdeu duas das suas principais fontes de energia e passou a depender cada vez mais do gás natural e do petróleo russos. Em 2011, ficou claro que o futuro fornecimento de gás natural da Alemanha teria de vir do gasoduto NordStream 2 que atravessava o Mar Báltico. Além disso, a Europa Central e Oriental anteviu o seu futuro na Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), liderada pela China, com  grandes parceiros da União Europeia como a Polónia (2015) e a Itália (2019) a juntarem-se à BRI;

A integração da Europa na Eurásia abriu as portas para a sua independência em política externa. Mas isso não foi permitido. Todos os manobrismos  da NATO Global fizeram parte da prevenção desse desenvolvimento.

OS EUA AFIRMAM-SE

Temerosos das grandes mudanças ocorridas na Eurásia, os Estados Unidos conduziram uma política tanto na frente comercial como na diplomática/militar. Comercialmente, os EUA tentaram substituir a dependência europeia do gás natural russo prometendo fornecer à Europa gás natural liquefeito (GNL) tanto dos fornecedores dos EUA como dos estados do Golfo Árabe. Como o GNL é muito mais caro do que o gás canalizado, este não foi um acordo comercial significativo. Os desafios aos avanços chineses em alta tecnologia, particularmente em telecomunicações, robótica e energia verde, não poderiam ser sustentados pelas empresas do Vale do Silício. Essa é a razão pela qual os EUA escalaram o seu outro instrumento de força, ou seja, a tentativa de usar a retórica da guerra ao terror para banir as empresas chinesas (devido a alegações de questões de segurança e privacidade) e usar os seus meios diplomáticos e militares para desafiar o senso russo de estabilidade.

Ficou claro para os países europeus que não havia substituto efetivo  para a energia russa nem para o investimento chinês. Proibir o 5G da Huawei e impedir a certificação do NordStream 2 só prejudicaria o povo europeu. Isso era claro. Mas o que não ficou tão claro foi que, ao mesmo tempo, os Estados Unidos começaram a desmantelar a arquitetura que mantinha a confiança de que nenhum país iniciaria uma guerra nuclear. Em 2002, os Estados Unidos abandonaram unilateralmente o tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) e em 2018-19, os Estados Unidos abandonaram unilateralmente o tratado de Forças Nucleares de Alcance médio (INF). Os países europeus desempenharam um papel fundamental no estabelecimento do tratado INF em 1987 através do movimento de 'congelamento nuclear'; mas em 2018-19, o abandono do tratado foi recebido com relativo silêncio do povo europeu. Ao mesmo tempo, os países europeus – por meio da NATO – começaram a participar em exercícios de “liberdade de navegação” no Mar Báltico, no Mar Ártico e no Mar do Sul da China – enviando mensagens ameaçadoras à China e à Rússia. Esses movimentos efetivamente aproximaram muito a China e a Rússia.

A Rússia indicou em várias ocasiões que viu o que estava a ser feito e que defenderia as suas fronteiras e a sua região com força. Quando os EUA intervieram na Síria em 2012 e na Ucrânia em 2014, esses movimentos ameaçaram a Rússia com a perda dos seus dois principais portos de águas quentes (em Latakia, na Síria, e em Sebastopol, na Crimeia). Essa é a razão pela qual a Rússia interveio para anexar a Crimeia em 2014 e para intervir militarmente na Síria em 2015. Essas indicações sugeriam que a Rússia usaria as suas forças armadas para proteger o que considera os seus interesses nacionais. O governo da Ucrânia fechou o canal da Crimeia do Norte que trazia à península 85% da sua água, forçando a Rússia a abastecer a região com água pela ponte Kerch construída a um custo enorme entre 2016 e 2019. As declarações russas sobre “garantias de segurança” não se dirigiam à Ucrânia, nem mesmo à NATO, mas aos Estados Unidos. Havia medo em Moscovo de que os EUA colocassem mísseis nucleares de médio alcance ao redor da Rússia.

A disputa pela Europa – manifestada agora na guerra contra a Ucrânia – é decisiva para o nosso mundo de hoje. As sanções dos EUA contra a Rússia certamente afetarão o povo russo, mas terão graves efeitos negativos na economia mundial, à medida que os preços dos alimentos e dos combustíveis subirem cada vez mais. Não há dúvida de que o governo russo violou a lei internacional ao invadir a Ucrânia. Mas esta não é uma guerra que diga respeito apenas à Rússia e à Ucrânia. É uma guerra que é impulsionada pela tentativa dos frágeis Estados Unidos  manterem a sua posição de primazia no mundo. A guerra deve terminar, como todas as guerras terminam. As negociações devem ser aprofundadas, mas não apenas entre a Rússia e a Ucrânia. Precisamos de uma discussão séria no mundo sobre a instabilidade impulsionada pela guerra imposta pelos EUA à Eurásia.

*Vijay Prashad é historiador, editor e jornalista indiano. É escritor e correspondente-chefe da Globetrotter. É também diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social.

Fonte da fotohttps://mltoday.com/the-war-in-ukraine-is-a-war-over-europe/

Fontehttps://peoplesdemocracy.in/2022/0403_pd/war-ukraine-war-over-europe, publicado e acedido a 03.04.2022

Tradução de TAM

* Publicado em Pelo Socialismo

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