quinta-feira, 28 de abril de 2022

CICATRIZES DOS QUE MATAM POR CONTROLE REMOTO

#Publicado em português do Brasil

Sob ordens erráticas, seus drones massacram civis e aldeias. Eles são jovens e já liquidam mais gente que soldados em terra. Barbárie dos EUA é segredo militar: chagas de guerra devem ser enterradas. Surtos e suicído tornam-se cotidianos

Dave Philips, no New York Times | Traduzido: César Locatelli | em Outras Palavras

Depois de se esconder por uma noite nas montanhas, o capitão da Força Aérea Kevin Larson se agachou atrás de um rochedo e observou a floresta através de sua respiração, esperando a polícia que ele sabia que viria. Era o dia 19 de janeiro de 2020. Ele estava agarrado a um fuzil de assalto com 30 tiros e à convicção de que, depois de tudo o que ele havia passado, não tinha como ir para a prisão.

O capitão Larson era um piloto de drones – um dos melhores. Ele pilotava o MQ-9 Reaper, fortemente armado e, em 650 missões de combate entre 2013 e 2018, lançou pelo menos 188 ataques aéreos, ganhou 20 medalhas por seus feitos e matou um dos homens mais importantes da lista dos terroristas procurados dos Estados Unidos.

O piloto de 32 anos mantinha, em sua geladeira, uma nota de agradecimento manuscrita pelo diretor da CIA. Ele se orgulhava disso, mas não dizia por quê, já que quase tudo que fazia no programa de drones era segredo. Ele tinha que manter os detalhes trancafiados atrás das portas de alta segurança na Base Aérea de Creech, em Indian Springs, Nevada.

Havia também coisas das quais ele não se orgulhava trancadas atrás daquelas portas – coisas que, acredita sua família, terminaram por deixá-lo encurralado nas montanhas, segurando um rifle.

Na Força Aérea, os pilotos de drones não escolhiam os alvos. Esse trabalho era de alguém que os pilotos chamavam de “o cliente”. O cliente podia ser um comandante de força terrestre convencional, a CIA ou uma célula secreta de ataque do comando de Operações Especiais. Isso não importava. O desejo do cliente devia ser satisfeito.

E às vezes o que o cliente queria não parecia ser o certo. Havia ataques de mísseis tão precipitados que atingiam mulheres e crianças, ataques baseados em inteligência tão frágil que aldeões comuns tornavam-se alvos e regras confidenciais de combate que permitiam ao cliente matar conscientemente até 20 civis para eliminar um inimigo. As equipes tinham que assistir tudo em cores e alta definição.

O capitão Larson tentou enterrar suas dúvidas. Em casa em Las Vegas, ele exalava uma confiança despreocupada. Ele adorava sair para dançar e era tão incrivelmente bonito que fazia trabalhos paralelos como modelo. Ele dirigia um Corvette conversível azul elétrico e um Jeep azul enfeitado e tinha uma linda e jovem esposa.

Mas garras de angústia ocasionalmente o assaltavam, em um comentário antes de dormir ou em uma piada sombria no bar. Certa vez, em 2017, seu pai o pressionou sobre seu trabalho, e o capitão Larson descreveu uma missão em que o cliente lhe disse para rastrear e matar um suposto membro da Al Qaeda. Então, contou ele, o cliente lhe disse para usar a câmera de alta definição do Reaper para seguir o corpo do homem até o cemitério onde seria enterrado e matar todos que compareceram ao funeral.

“Ele nunca falou sobre o que fazia – ele não podia”, disse seu pai, Darold Larson. “Mas ele dizia coisas assim, e isso fazia você saber que o trabalho o deixava contrariado. Ele disse que estava sendo forçado a fazer coisas que iam contra sua bússola moral”.

Os drones foram anunciados como a melhor maneira de se travar a guerra – uma ferramenta que poderia matar com precisão a milhares de quilômetros de distância, manter os militares norte-americanos seguros e, muitas vezes, permitir que chegassem em casa a tempo para o jantar. O programa de drones começou em 2001 como uma operação pequena e rigidamente controlada que caçava terroristas de alto nível.

Mas durante a última década, à medida que a batalha contra o Estado Islâmico se intensificava e a guerra no Afeganistão se arrastava, a frota crescia, os alvos se tornavam mais numerosos e mais comuns. Com o tempo, as regras destinadas a proteger os civis foram quebradas, como mostraram investigações recentes do New York Times, e o número de pessoas inocentes mortas nas guerras aéreas dos Estados Unidos superava aquele que o Pentágono admitiria publicamente.

A história do capitão Larson, entrelaçada com a de outros membros das tripulações de drones, revela um custo invisível do outro lado desses ataques controlados remotamente.

As tripulações de drones lançaram mais mísseis e mataram mais pessoas do que quase todos os militares juntos na última década, mas os militares não as encaravam como tropas de combate. Como seus membros não eram enviados para missões, raramente tinham os mesmos períodos de recuperação ou exames de saúde mental que outros combatentes. Em vez disso, eram tratados como funcionários de escritório, de quem se esperava cumprir turnos intermináveis em uma guerra eterna.

Sob estresse implacável, contaram vários ex-membros dessas tripulações, as pessoas entravam em colapso nervoso. Bebida e divórcio tornaram-se comuns. Alguns deixavam a sala de operações em prantos. Outros tentaram suicídio. E os militares não reconheciam o impacto integral que a função exercia sobre eles. Apesar de centenas de missões, o arquivo pessoal do capitão Larson, sob o título “Serviço em Combate”, oferece apenas uma única palavra: “Nenhum”.

Os membros da tripulação de drones disseram em entrevistas que, embora matar remotamente seja diferente de matar no chão, deixa cicatrizes profundas mesmo assim.

“Em vários aspectos, é mais intenso”, disse Neal Scheuneman, operador de sensor de drones que se aposentou como sargento da Força Aérea em 2019. “Um jato de combate pode ver um alvo por 20 minutos. Nós tínhamos que vigiar um alvo por dias, semanas e até meses. Nós o víamos brincar com seus filhos. Nós o víamos interagir com sua família. Víamos toda a sua vida se desenrolar. Você está remoto, mas, ao mesmo tempo, está muito conectado. Então, um dia, quando todos os parâmetros são atendidos, você o mata. Você assiste a morte dele. Você vê o remorso e o enterro. As pessoas muitas vezes encaram este trabalho como um videogame, e eu tenho que avisá-los, não há botão de reiniciar.”

Na esteira das investigações do Times, o Pentágono prometeu fortalecer os controles sobre ataques aéreos e melhorar a forma como investiga os registros de mortes de civis. A Força Aérea também passou a fornecer mais serviços de saúde mental para tripulações de drones para lidar com os lapsos do passado, disse o comandante da Ala 432 em Creech, coronel Eric Schmidt.

“Não estamos fisicamente em perigo, contudo estamos observando um campo de batalha e vendo algumas cenas ou fazendo parte delas. Vemos os efeitos que podem ter nas pessoas”, disse o Coronel Schmidt. No passado, disse ele, a guerra remota não era vista como um combate real e havia um estigma contra a busca de ajuda. “Tenho orgulho de dizer que avançamos muito”, acrescentou. “É triste que tivemos que fazer isso.”

O capitão Larson tentou lidar com o trauma usando drogas psicodélicas. Isso se tornou outro segredo que ele tinha que manter. A Força Aérea, no final das contas, descobriu. Ele foi acusado de usar e distribuir drogas ilegais e despojado de seu status de piloto. Seu casamento se desfez e ele foi levado a julgamento, enfrentando uma possível pena de prisão de mais de 20 anos.

Como ele não era um veterano de combate convencional, não havia necessidade de avaliação psicológica para ver que influência sua experiência de combate poderia ter tido em sua conduta imprópria. Em seu julgamento, ninguém mencionou os 188 ataques sigilosos de mísseis ou o funeral que ele atacou. Em janeiro de 2020, ele foi rapidamente condenado.

Desesperado para evitar a prisão, remoendo o que encarou como uma traição por parte dos militares aos quais dedicou sua vida, o capitão Larson fugiu.

Uma paisagem moral vexatória

O capitão Larson cresceu em Yakima, Washington, filho de policiais. Ele foi um escoteiro de conduta honesta e correta que ia à igreja quase todos os domingos e uma vez aconselhou um amigo de longa data a ficar longe da maconha. Na Universidade de Washington, onde foi destacado aluno, ingressou no Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva e na Patrulha Aérea Civil, decidido a se tornar um piloto de caça.

A Força Aérea, no entanto, tinha outros planos para ele. Quando ele foi comissionado em 2012, o Pentágono havia desenvolvido um apetite aparentemente insaciável por drones, e a Força Aérea estava lutando para acompanhar. Naquele ano, produziu mais pilotos de drones do que pilotos de caças tradicionais e ainda assim não conseguiu atender à demanda.

“Ele ficou em prantos quando recebeu a notícia. Tão desapontado. Ele queria voar”, disse sua mãe, Laura Larson, em entrevista. “Mas uma vez tendo começado, ele gostou. Ele realmente sentiu que estava fazendo algo importante.”

O capitão Larson foi designado para o 867º Esquadrão de Ataque em Creech – uma unidade que os pilotos revelam que o trabalho era, em grande parte, feito em ligação com a CIA e com o Comando Conjunto de Operações Especiais. As tripulações de drones operavam a partir de um aglomerado de contêineres em um remoto pedaço de deserto.

Cada tripulação tinha três membros: um operador de sensor para guiar a câmera de vigilância e operar a mira a laser, um analista de inteligência para interpretar e documentar as gravações em vídeo e um piloto para comandar o Reaper e apertar o botão vermelho que lançava seus mísseis Hellfire.

As especificidades das missões do Capitão Larson são em grande parte um mistério. Ele manteve os detalhes confidenciais escondidos de seus pais e de sua ex-mulher. Seus amigos mais próximos no esquadrão de ataque e dezenas de outros tripulantes atuais e antigos não responderam aos pedidos de entrevistas; leis de sigilo e acordos de confidencialidade tornam crime discutir detalhes confidenciais.

Mas vários pilotos, operadores de sensores e analistas de inteligência, que fizeram o mesmo tipo de trabalho em outros esquadrões, conversaram com o Times sobre detalhes não confidenciais e descreveram suas lutas com a mesma carga de trabalho punitiva e cenário moral vexatório de Larson.

Mais de 2.300 militares estão atualmente alocados em tripulações de drones. No início do programa, afirmaram, as missões pareciam bem executadas. As autoridades escolhiam cuidadosamente seus alvos e tomavam cuidados para minimizar as mortes de civis.

“Observávamos um alvo de alto valor por meses, reunindo informações e esperando o momento exato para atacar”, disse James Klein, ex-capitão da Força Aérea que voou com os drones Reapers em Creech, de 2014 a 2018. “Era o modo correto de usar a arma”.

Mas em dezembro de 2016, o governo Obama afrouxou as regras em meio à escalada da luta contra o Estado Islâmico, pressionando as autoridades a aprovar ataques aéreos em níveis hierárquicos mais baixos. No ano seguinte, o governo Trump secretamente as afrouxou ainda mais. Decisões sobre alvos de alto valor que antes eram tomadas por generais ou mesmo pelo presidente foram efetivamente entregues a soldados alistados em Operações Especiais. O cliente, progressivamente, transformou os drones em combatentes de baixo nível. Ataques, antes realizados somente após rigorosos processos de coleta de inteligência e aprovação, eram muitas vezes ordenados em cima da hora, atingindo escolas, mercados e grandes grupos de mulheres e crianças.

Antes das regras mudarem, disse Klein, seu esquadrão desferiu cerca de 16 ataques aéreos em dois anos. Depois, passou a conduzi-los quase diariamente.

Certa vez, disse Klein, o cliente o pressionou para atirar em dois homens que caminhavam à beira de um rio na Síria, dizendo que eles carregavam armas nos ombros. As armas foram depois identificadas como varas de pescar, disse Klein, e embora o cliente tenha argumentado que os homens ainda poderiam ser uma ameaça, ele o convenceu a não atacar.

Em outro caso, disse ele, um colega piloto recebeu ordens para atacar um suposto combatente do Estado Islâmico que estava empurrando outro homem em uma cadeira de rodas em uma rua movimentada da cidade. O ataque matou um dos homens; também matou três transeuntes.

“Não havia razão para desferir aquele tiro”, disse Klein. “Conversei com a piloto depois e ela estava em lágrimas. Ela não voltou a voar por um longo tempo e acabou indo embora de vez.”

Os esquadrões não se empenhavam em avaliar ataques ruins se não houvesse erro do piloto. Eles eram vistos como problema do cliente. As tripulações apresentavam relatórios de vítimas civis, mas o processo investigativo era tão falho que raramente tinha qualquer impacto; muitas vezes nem sequer se produzia uma resposta.

Com o tempo, o Sr. Klein ficou zangado e deprimido. Seu casamento começou a desmoronar.

“Comecei a ter medo de ir trabalhar”, disse ele. “Todo mundo meio que espera que você faça essas coisas e fique bem, mas isso nos corroía.”

No final, ele acabou se recusando a disparar mais mísseis. A Força Aérea o transferiu para uma função não combatente e, alguns anos depois, em 2020, ele se aposentou, um dos muitos operadores de drones desiludidos que desistiram discretamente, disse ele.

“Estávamos tão isolados que não tenho certeza se alguém via isso”, disse ele. “O maior indicativo é que pouquíssimas pessoas permaneciam em campo. Elas simplesmente não aguentavam”.

Em seu trabalho como policial, a mãe do capitão Larson conduzia interrogatórios de estresse após eventos traumáticos. Quando os policiais em seu departamento atiravam em alguém, eles eram obrigados a tirar uma folga e se encontrar com um psicólogo. Como parte do processo de cura, todos os presentes na cena do incidente eram obrigados a sentar e conversar sobre o que havia acontecido. Ela não tem conhecimento de que seu filho tenha passado por qualquer procedimento dessa natureza.

“A certa altura, eu o puxei de lado e disse: ‘Se as coisas começarem a incomodá-lo, você e seus amigos precisam conversar sobre isso’”, disse a sra. Larson. “Ele apenas sorriu e disse que estava bem. Mas acho que ele estava lutando mais do que jamais deixou transparecer.”

Não existe exigência para que a Força Aérea forneça, às tripulações de drones, avaliações de saúde mental requeridas para tropas destacadas para o combate tradicional, mas uma pesquisa, de mais de uma década, com a força de operadores de drones, encontrou níveis consistentemente altos de estresse, desconfiança e exaustão emocional. Em um estudo, 20% dos membros das tripulações de drones relataram níveis clínicos de sofrimento emocional – o dobro da taxa entre o pessoal não-combatente da Força Aérea. A proporção de tripulantes que relataram transtorno de estresse pós-traumático e pensamentos suicidas foi maior do que nas tripulações tradicionais.

Vários fatores contribuem – carga de trabalho, turnos em constante mudança, problemas de liderança e exposição ao combate. Mas o mais prejudicial, de acordo com Wayne Chappelle, psicólogo da Força Aérea que lidera os estudos, são as mortes de civis.

Ver apenas um ataque que causa mortes inesperadas de civis pode aumentar o risco de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) de seis a oito vezes, disse ele. Uma pesquisa publicada em 2020, vários anos após a mudança das regras para os ataques, descobriu que 40% dos membros da tripulação de drones relataram testemunhar entre um e cinco assassinatos de civis. Sete por cento haviam testemunhado seis ou mais.

“Depois de algo assim, as pessoas podem ter reações emocionais sem solução e perturbadoras”, disse Chappelle. “Nós assumimos que isso não é saudável – ter pensamentos intrusivos, memórias intrusivas. Eu considero isso saudável e normal. Como você qualifica alguém que fica bem com isso?”

Ter tempo livre para processar o trauma é vital, disse ele. Mas durante os anos em que os Estados Unidos lutavam simultaneamente contra o Talibã, o Estado Islâmico e a Al Qaeda, isso era quase impossível.

A partir de 2015, a Força Aérea começou a incorporar o que chamou de equipes de desempenho humano em alguns esquadrões, compostas por capelães, psicólogos e fisiologistas operacionais, oferecendo um ouvido acolhedor, estratégias de enfrentamento e práticas saudáveis para otimizar o desempenho.

“É uma abordagem de equipe holística: mente, corpo e espírito”, disse o capitão James Taylor, capelão da Creech. “Eu tento abordar a fadiga da alma, as questões existenciais com as quais muitas pessoas têm que lutar neste trabalho.”

Mas as tripulações de drones disseram que as equipes eram apenas modestamente eficazes. O estigma de procurar ajuda mantém muitos membros da tripulação afastados, e há uma percepção de que as equipes estão mais focadas em manter as tripulações em operação do que em lidar com as causas do trauma. De fato, uma pesquisa de 2018 descobriu que apenas 8% dos operadores de drones usavam os serviços das equipes, sendo que dois terços daqueles que passavam por sofrimento emocional não os utilizavam.

Em vez disso, disseram os membros da tripulação, eles tendem a trabalhar em silêncio, na esperança de evitar um colapso.

Bennett Miller foi um analista de inteligência, treinado para estudar os vídeos captados pelos drones Reaper. Trabalhando em missões de operações especiais na Síria e no Afeganistão em 2019 e 2020 da Base Aérea de Shaw, na Carolina do Sul. O ex-sargento técnico assistia mortes de civis “quase mensalmente”.

“No começo, não me incomodava muito”, disse ele. “Eu pensava que isso fazia parte do processo de ir atrás dos bandidos.”

Então, no final de 2019, disse ele, sua equipe rastreou um homem no Afeganistão que o cliente disse ser um financista de alto nível do Talibã. Por uma semana, a equipe observou o homem alimentar seus animais, comer com a família em seu quintal e caminhar até uma vila próxima. Então o cliente ordenou que a tripulação o matasse, e o piloto disparou um míssil enquanto o homem descia o caminho de sua casa. Assistindo ao vídeo depois, Miller viu a família juntar os pedaços do homem e enterrá-los.

Uma semana depois, o nome do mesmo financista do Talibã apareceu novamente na lista de alvos.

“Pegamos o cara errado. Eu tinha acabado de matar o pai de alguém”, disse Miller. “Eu tinha visto os filhos dele pegarem as partes do seu corpo. E eu tinha ido para casa e abraçado meus próprios filhos.”

O mesmo padrão ocorreu mais duas vezes, disse ele, mas a liderança do esquadrão não fez nada para endereçar as questões que foram vistas como erros do cliente. Dois anos depois, Miller estava à beira das lágrimas quando descreveu os ataques em uma entrevista em sua casa. “O que fizemos foi assassinato, e ninguém pareceu notar”, disse ele. “Apenas nos disseram para seguir em frente.”

O Sr. Miller ficou insone e zangado. “Eu não conseguia lidar com a culpa ou a ansiedade de saber que isso provavelmente aconteceria novamente”, disse ele. “Eu fui pego nesta armadilha onde se eu me importo com o que está acontecendo, é devastador. E se eu não me importo, perco quem eu sou como pessoa.”

Em Shaw, disse ele, seu esquadrão não tinha uma equipe de desempenho humano. “Tínhamos apenas um bar do esquadrão.”

Em fevereiro de 2020, ele chegou em casa de um turno noturno de 15 horas, trancou-se no quarto, colocou um revólver engatilhado na cabeça e pela porta disse à esposa que não aguentava mais. Ele foi hospitalizado, diagnosticado com TEPT e aposentado por questões médicas.

Além de suas modestas pensões padrão, veteranos com lesões relacionadas a combate, mesmo lesões sofridas em treinamento, recebem uma compensação especial no valor de cerca de US$ 1.000 por mês. O Sr. Miller não se qualifica, porque o Departamento de Veteranos não considera o combate de missões com drones.

“É como se eles estivessem dizendo que todas as pessoas que matamos de alguma forma não contam”, disse ele. “E nós também não.”

Uma questão de perdão

Em fevereiro de 2018, o capitão Larson e sua esposa, Bree Larson, entraram em uma discussão. Ela estava com raiva por ele ter passado a noite toda fora e, como se lembrou na entrevista, quebrou o telefone dele. Ele a arrastou para fora da casa e a trancou, sem uma roupa adequada, para fora. A polícia de Las Vegas veio, e quando eles perguntaram se havia drogas ou armas na casa, a Sra. Larson contou a eles sobre o saco de cogumelos alucinógenos (psilocibina) que seu marido mantinha na garagem.

Quando ela e o capitão Larson se conheceram em 2016, disse ela, ele já estava usando cogumelos uma vez a cada poucos meses, muitas vezes com outros pilotos. Ele também tomava MDMA – conhecido como ecstasy ou molly – algumas vezes por ano. As drogas podiam ser ilegais, mas ofereciam alívio, disse ele a ela.

“Ele apenas dizia que tinha um trabalho muito estressante e precisava delas”, disse Larson. “E era perceptível. Por semanas depois, ele ficava mais relaxado, mais focado, mais amoroso. Parecia terapêutico.”

Um número crescente de veteranos de combate usa drogas psicodélicas ilicitamente, em meio a evidências crescentes de que são tratamentos potentes para as feridas psicológicas da guerra. Espera-se que o MDMA e a psilocibina sejam aprovados em breve para uso médico limitado pela agência de controle de alimentos e drogas (FDA).

“Isso me deu uma clareza e uma honestidade que me permitiu reescrever a narrativa da minha vida”, contou um ex-oficial da Força Aérea que disse ter sofrido de depressão e danos morais após centenas de missões com o drone Reaper; ele pediu para não ser identificado para discutir o uso de drogas ilegais. “Isso levou a algum autoperdão. Esse foi um grande primeiro passo.”

Em Las Vegas, as autoridades civis estavam dispostas a perdoar o capitão Larson, mas a Força Aérea o acusou de uma série de crimes – posse e distribuição de drogas, fazer declarações falsas a investigadores da Força Aérea e uma acusação exclusiva das Forças Armadas: conduta imprópria de um oficial. Seu esquadrão o colocou de castigo, proibiu-o de usar um traje de voo e disse-lhe para não falar com outros pilotos. Ninguém examinou para detectar TEPT ou outros danos psicológicos oriundos de seu serviço, disse Larson, acrescentando: “Acho que ninguém percebeu que poderia estar conectado”.

À medida que a acusação avançava por mais de dois anos, o capitão Larson trabalhava no ginásio da base e organizava grupos de voluntários para prestar serviço comunitário. Seu casamento foi anulado. Lutando com sua saúde mental, buscando maneiras produtivas de lidar com o trauma, ele leu livro após livro sobre pensamento positivo e montou uma sala especial de meditação em sua casa, de acordo com sua namorada na época, Becca Triano.

“Eu não sei o que ele viu, com o que ele teve que lidar”, disse ela. “O que eu vi no final foi ele realmente trabalhando duro para tentar permanecer são.”

O julgamento finalmente aconteceu em janeiro de 2020. Sua ex-esposa e um amigo piloto testemunharam sobre seu uso de drogas. A polícia produziu as provas. Isso foi tudo.

Depois de deliberar por algumas horas na manhã de 17 de janeiro, o júri voltou com veredictos de culpado em quase todas as acusações.

Em fuga

O piloto receberia a sentença após uma pausa para o almoço. Seu advogado lhe disse para voltar em uma hora. Em vez disso, ele fugiu.

Ele carregou seu jipe com comida e roupas e saiu em disparada, convencido de que enfrentaria uma longa sentença de prisão, disse Triano. Em poucas horas, a Força Aérea tinha um mandado de prisão contra ele.

O capitão Larson foi para o sudoeste, em Los Angeles, e passou a noite com um amigo, depois começou a seguir para o norte. Na tarde de sábado, 18 de janeiro, ele estava dirigindo por vinhedos e bosques de sequoias na rodovia US 101 no condado de Mendocino, ao norte de São Francisco, quando a Patrulha Rodoviária da Califórnia avistou seu Jeep e o parou.

O capitão Larson esperou calmamente que o oficial se aproximasse de sua janela. Então ele acelerou – pela estrada e, depois, para uma estreita estrada de terra que serpenteava até as montanhas. Depois de vários quilômetros, ele entrou na mata e se escondeu. Os policiais não conseguiram encontrá-lo, mas eles sabiam algo que ele não sabia: todas as estradas do cânion eram becos sem saída, e os oficiais bloquearam a única saída.

A noite caiu. Nada a fazer a não ser esperar.

De manhã, durante uma comunicação no interior do desfiladeiro, segundo os registros, agentes da Força Aérea explicaram, aos delegados do xerife do condado de Mendocino, que o homem procurado era um desertor que havia fugido de uma condenação por drogas, provavelmente estava armado e que ele possivelmente era um suicida.

Os policiais subiram o desfiladeiro e avistaram marcas de pneus em um desvio estreito. Os agentes subiram a pé até avistarem o jipe azul nas árvores, mas não arriscaram ir mais longe. Eles tinham uma opção melhor, algo que pudesse ter uma visão do jipe sem qualquer perigo. Um pequeno drone foi logo lançado ao céu.

O capitão Larson estava escondido atrás de um rochedo coberto de musgo. Não havia sinal de telefone nas profundezas do desfiladeiro, nenhuma maneira de buscar esperança ou consolo que ele pudesse ter evocado. Ele só conseguiu gravar uma mensagem de vídeo para os membros de sua família. Ele disse, a um por um, que os amava. “Sinto muito”, disse ele. “Eu não vou para a prisão, então vou acabar com isso. O plano sempre foi este.”

Havia muita coisa que ele não explicou – dúvidas que permaneceram para sua família e amigos pelos anos que se seguiram. Ele não falou sobre as centenas de missões secretas ou seu impacto. Ele não disse o que sentia com o silêncio de seus comandantes enquanto as mortes de civis se tornavam rotina, e depois ficarem tão calados enquanto um piloto condecorado era processado por porte de drogas. Ele não falou nada sobre os outros pilotos que usaram as mesmas drogas e depois o evitaram como um vírus após ele foi pego.

Talvez ele estivesse planejando dizer mais coisas, mas quando ainda falava para a câmera do telefone foi interrompido por um zumbido furioso, como um enxame de abelhas.

“Eu ouço os drones”, disse ele. “Eles estão me procurando.”

Se o tivessem encontrado vivo, seus perseguidores teriam dito isso: no final, a Força Aérea decidiu não sentenciá-lo à prisão, apenas à demissão.

Mas agora, exatamente como o capitão Larson havia feito inúmeras vezes, os oficiais só podiam estudar as imagens dos drones e analisar as evidências – jogado atrás do rochedo, baleado com seu próprio rifle de assalto – de outra morte não intencional.

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