O sol chegou às terras entre Longa e Mavinga quando o Fogo teve pena dos rastejantes e cegos que rasgavam trilhos nos areais. A primeira luz solar era tão intensa que ao dardejar nas pedras criou o Txikungulo, pássaro com cabeça de homem. Mas não tinha asas nem cantava, apenas soltava silvos, às vezes ais e suspiros. Para que um pássaro quer a vida se não tem asas para voar nem canto para amar? Era preciso um novo poder que aperfeiçoasse a obra moldada pelos raios luminosos à flor das pedras.
Txikungulo rastejou pelos areais e um dia, quando os raios de sol queimavam impiedosamente as suas penas, decidiu repousar à sombra de um imponente pau de Girassonde. Silvava e gemia, como um tristíssimo bastardo da sorte. As abelhas casavam com Nhumbe, a essência do mel. E carregadas de pólen voavam até à colmeia, no ramo mais alto da árvore preciosa.
- Quando chegarei às alturas dos favos de mel, quando?
Assim suspirava Txikungulo.
Nas suas deambulações entre Longa e Lupire, o pássaro com cabeça de homem encontrava as mais prodigiosas criações, mas nunca viu nos seus caminhos umas asas que lhe servissem e o elevassem às nuvens ou aos ramos mais altos das árvores. Percorreu matas e chanas, colinas e pântanos, desde Mavinga até às terras do Cuchi.
Um dia, perto da aldeia de Chilandangombe, viu uma belíssima mariposa, batendo as asas pintadas, num voo suave e lento. Subiu, subiu, até aos ramos mais altos de uma gigantesca Mucibe, a árvore dos deuses. Era tão formosa, aquela mariposa!
Txikungulo quis cantar-lhe um hino à altura de tão sublime beleza, mas apenas soltou silvos agudos e gemidos abafados. Como a falta de asas pode causar tanta tristeza! Hipnotizado pelas cores da mariposa, decidiu enviar uma mensagem às alturas onde não chegavam os sons que soluçava. Fez uma flecha e construiu um arco. Apontou, disparou e acertou no coração da mariposa. Tinha acabado de nascer o Amor nas terras do Cuando Cubango. Dali foi levado para o Mundo, nas chamas do Fogo.
Mas a mariposa perdeu as cores e as asas, quando caiu a primeira chuva sobre a savana de Lupire. Assim despida e desasada, caiu morta no areal. A seguir ao Amor, nasceu a Dor nas imensas chanas que levam ao fim do mundo. Desde então, Txikungulo acalentou ao peito as asas desbotadas da sua amada.
Depois de muito sofrer e rastejar pelos areais, do Cuchi a Mavinga, o pássaro com cabeça de homem foi visitado pelo Fogo. E das chamas rubras que o envolveram num abraço paternal, nasceu um novo ser, com asas e penas vistosas. Da antiga cabeça nasceu um casal de Kassekele, a gente do porco-espinho, que criou o seu paraíso a Leste do rio Cubango.
Txikungulo, alado, aprendeu a assobiar finíssimos sons e cantar as mais belas melodias de amor. Desde então fez ninho em todas as árvores dos deuses. O seu canto, quando está poisado num pau de Girassonde, é o mais belo sonho do mundo. Ou ouvi-lo, o feroz Leão fica tão manso como a Gunga, o Jacaré do Cuito adormece ao Sol e a Serpente transforma o veneno em mel.
Os Kassekele ficaram em terra, à procura da água. Partiram em todas as direcções e quando chegaram às quedas do rio Cutato, nos Ganguelas, resolveram ficar naquelas paragens, louvando o arco-íris que se formava das águas desprendidas.
Ali cultivaram o tabaco, que trocavam por bois. As chanas em breve ficaram repletas de massango e massambala. Tanta água e tanta comida abriram as portas à Felicidade.
Os mais jovens regressaram a Leste. Encontraram ferro para as flechas e minas de sal. Nunca mais saíram do seu chão.
Nas cataratas do Cutato ficaram os adoradores da água, a gente dos caranguejos, afamada de Mukuankala. Uns e outros são filhos da Liberdade. Nunca fizeram ninho e todos os caminhos são seu lar. África é filha dos que nasceram da cabeça prodigiosa do Txikungulo, amado pai da dança e do canto. O deus maior.
*Conto dos Khoisan recolhido na aldeia de Samaria, Cuito Cuanavale
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