I CAPÍTULO
Casukola e a Gota Azul
A manhã é um enigma sem resposta porque umas vezes se perde no cacimbo e outras, quando se abre em esplendor de girassol à luz que brota das montanhas, não é visível.
Os cães da aldeia ladram ao pêndulo que marca as horas matinais e os mabecos rasgam as vestes do horizonte até às primeiras chuvas. Os pássaros descem no voo da claridade e poisam nas lavras da abundância, com as asas viradas para o sol.
Irrompe na aldeia o canto do amanhecer que vai soando dolente até ao romper do meio-dia. Uma estrela perdida do Cruzeiro do Sul é a mãe da estrada diurna. Mas nem pelo rasto da música conseguimos chegar ao labirinto. É um enigma tão fundo que nem a noite com seus feitiços consegue adivinhar.
Só a Gota Azul entra nesse mundo de sombras e claridades, medos e risos, mistérios e deslumbramentos. Ela nasceu de uma lágrima de luz, pequena réstia de luar e desceu a face de Casukola, até ao rio de todas as gotas azuis, que corre nas margens da aldeia. Mas a Gota Azul é um enigma ainda maior do que a manhã.
Casukola tem uma janela aberta sobre o Pingano e dela contempla o amanhecer. No tempo do Cacimbo escorrem gotas de água do tecto de zinco, que fazem pequenos buracos na terra vermelha. Ela ouve o canto suave das águas distantes da Kapopa, numa manhã ainda mais distante.
A picada é atravessada pelo voo soluçante das viuvinhas com longos rabos de penas e levanta-se uma nuvem de poeira quando passam as carrinhas carregadas de mabuba. Há no ar uma mistura fina de pó e neblina. Em pé, enfrentando a solidão, o Velho Tuma faz uma profecia:
- Um mocho sábio vai morrer na clausura!
O pastor Sumbula parte com as cabras para o pasto das planícies do Dambi, à vista das águas límpidas do rio insubmisso. Fica por lá até ao regresso das cerejas nos cafezeiros.
O Velho Tuma responde ao enigma:
- O Negage nos dias tristes de Junho. E o Morro das Pedras na última viagem para a cidade do Uíje. É a memória mais triste de Sumbula.
Ukamba ua ndengue utunda um xanga. A amizade faz-se desde a longínqua floresta dos Dembos onde juntos cortámos lenha. Antes de construirmos cidades, construímos amizades e irmandades, na caça ao sofo manso e à kaseixa que se perdeu na lavra, pela rama tenra da batata-doce.
O pastor Sumbula dorme nos braços da amizade e não viu a Gota Azul chegar à grande lagoa que cresce por si, nas águas azuis, pátria do senge. Ela percorreu o mundo e ainda não é caudal nem correnteza violenta, nem água parada, nem mansas ondulações da Baía de Luanda. É um rio azul que corre para o firmamento e desagua na fantástica lagoa que espelha o amanhecer, todos os dias, até ao último suspiro da eternidade.
Casukola viu a sua imagem nas águas e murmurou:
- Meu amor, ainda há amanhecer para os que abrem caminhos?
Eis o enigma.
II CAPÍTULO
Profecia de Tuma à Vista do Fogo Sagrado
O pastor Sumbula agasalhou o seu rebanho no curral feito com ramos de bordão e como todas as noites foi falar com o Sonho Dourado, o amigo que nunca o abandonou, mesmo quando a onça traiçoeira ameaçava o seu gado.
Casukola adormeceu enquanto lá fora o cacimbo rolava em espessas nuvens brancas desde o cume da serra do Pingano até às margens da aldeia e do rio azul que corria no sentido contrário à mãe de todos os rios.
O pastor Sumbula e o Sonho Dourado seguiam o voo de uma estrela cadente que estava desaparecida do Cruzeiro do Sul. O cacimbo gelava o coração e os cães que guardavam o rebanho, se enroscavam de frio. O pastor e o seu sonho chegaram às margens do rio que atravessa as mais altas montanhas, sem nunca transbordar a Gota Azul.
O Velho Tuma falou:
- Kuba ki kutexi ê, kuenda ki kujimbiril’ê.
Demos tudo, até o fogo sagrado. Na aldeia de Casukola e da Gota Azul, as pessoas antes de aprenderem a falar, aprendem a dar.
O pastor Sumbula disse ao Sonho Dourado:
- Um dia amanheceu o fio da espada, o punhal afiado e a submissão ao amo.
O Velho Tuma levantou um pouco o véu do enigma:
- Esse foi o tempo indecifrável das horas roubadas, da luz confiscada, das muralhas de sombras.
Na margem do rio que é berço da Gota Azul um adivinho do Bembe proclamou:
- A prisão é o roubo dos séculos!
Nesse instante, o pastor Sumbula adormeceu e libertou o Sonho Dourado. A face de Casukola era o rio sereno da Gota Azul.
O adivinho do Bembe afastou-se do fogo sagrado e disse ao povo da aldeia que a solução do enigma está nas sombras.
A noite rolou as suas horas tranquilas por mil noites até ao sono perfeito e ao despertar das sombras. O pastor Sumbula aconchegou o Sonho Dourado à primeira réstia de sol que reavivou o rio azul e também deu a sua sentença:
- É preciso dar pasto às crias mas sem esbanjar a água e o capim fresco.
Nesse instante, o enigma penetrou no movimento do pêndulo e as horas esvaíram-se na Gota Azul, que regressou ao olhar de Casukola, para repousar das longas jornadas da noite.
Do alto do seu mundo, o Sonho Dourado cantou:
Vai o dongo para o mar
Velas pandas
Vagas brandas
Restos de sol a esvoaçar
Ficou o silêncio no cais
Saudades a navegar.
O enigma começa a desvendar a forma e o Velho Tuma sabe como sair do labirinto do amanhecer, mas por enquanto guarda para si a sabedoria.
III CAPÍTULO
A Lagoa Prodigiosa Que Fica Cheia Por Si
O pastor Sumbula levou cedo o rebanho para o pasto, tão cedo que a lua ainda não tinha desaparecido nas colinas de Ambaca. As crias corriam à frente das mães, felizes pelo leite e a liberdade. Lá longe, no Luinga, um pakação solitário soltou tremendos urros chamando a fêmea que há muito partiu com a manada para as margens opulentas do Lucala.
Casukola foi à janela do tempo e encontrou a Gota Azul escorrendo pelo tronco de uma tacula aprumada. Mas o seu olhar fixou-se na lagoa prodigiosa que começava a nascer no ventre da mãe. Do outro lado, depois de atravessar o rio que nunca transbordou nem afogou ninguém, o pêndulo marcava o amanhecer. A luz corria lenta nas águas.
- Um amigo é mais do que um rio, disse Casukola à Gota Azul, que começava a escorrer para a lagoa prodigiosa. Depois deslizou suavemente até ao brilho de alegria que resplandecia no olhar da menina.
O Velho Tuma foi para as montanhas do Kiseke e guardou silêncio absoluto até encontrar forças para desvendar o enigma. Com a voz embargada pela emoção, virou o olhar para o Dimuca dizendo:
- Houve tempo, manhãs sem sombras, toda a Terra de todos e de ninguém, que dávamos sem olhar a quem.
Eis a chave do enigma: Rizanga ria banga Tumba Ndala riene riri tekel’ê.
Quando desabar o horizonte vamos caminhar até às margens da lagoa que se enche por si. Nem as gotas de cacimbo, nem a tristeza, nem a Gota Azul, nem as águas de Março anunciando o café cereja nas tongas, nos fazem alargar o imenso espelho do amanhecer.
Tumba Ndala é um inventor de prodígios mas não se atreveu a despertar o pastor Sumbula ou perturbar o sono feliz de Casukola. A harmonia precisa tanto de silêncio! É assim como a música das marimbas no calor da noite.
O pastor Sumbula interrogou o seu gado saciado de pasto:
- O que faz crescer as águas da lagoa, se Tumba Ndala não sabe fazer chuva, ele que sabe fazer tudo, até os labirintos da manhã?
Casukola e a Gota Azul partiram em demanda da lagoa prodigiosa, que se enche por si. A Gota Azul, que já conhecia o caminho sem espinheiras nem marimbondos, bailava no olhar da menina. Como a viagem foi muito longa, ficou recolhida nos olhos de Casukola, até ao fim da jornada.
De repente, um sinal de fogo no céu alertou homens e bichos, meninas, meninos e a Gota Azul. Tinham chegado à lagoa prodigiosa de Tumba Ndala. Não era manhã nem tarde, muito menos amanhecer ou anoitecer. A partir daquele instante, ninguém madrugou e ninguém andou para se perder. O sinal de fogo era uma estrela que se libertou do Cruzeiro do Sul. Às vezes a liberdade não serve para nada mas faz bem aos corações.
Em silêncio, os pastores olhavam para uma caminha de capim, envolta na fantástica Gota Azul, onde Casukola dormia e ia despertando, pouco a pouco. O pastor Sumbula ficou adorando o sonho que despertava, um prodígio maior do que a lagoa que se enche por si. Ficou ali, acalentando aquele momento fantástico até ao despertar completo de Casukola e a Gota Azul se esvair no rio que nunca transbordou. Depositou junto à cama a sua oferta onde já estavam muitas oferendas de outros pastores. Entre elas estava um coco repleto de água doce e fresca.
O Velho Tuma pegou no coco e disse:
- Os sonhos só despertam nos dias especiais. E esse enigma, ninguém consegue decifrar.
*Neste romance, incluí várias histórias de jinongonongo, preciosidades do fabuloso Mosaico Cultural Angolano, tonalidade do Kimbundu.
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