domingo, 1 de maio de 2022

Angola | Uma Separata Desconhecida e um Percursor Ignorado

Artur Queiroz*, Luanda

O poeta Maurício Gomes nasceu em Luanda no ano de 1920. Filinto Elísio de Menezes, o primeiro crítico da Literatura Angolana criada por nacionalistas, aponta-o como um percursor desse género, que serviu de suporte à Independência Nacional. O texto foi publicado numa separata do jornal Cultura da Sociedade Cultural de Angola, em 1950. Uma raridade bibliográfica que revela uma perspectiva até agora inédita. O autor aponta outro percursor: Viriato da Cruz. E ilustra o seu trabalho com o poema Sô Santo. 

Filinto Elísio de Menezes excluiu Geral Bessa Victor, poeta, advogado e jornalista, da lista de poetas percursores da Literatura Angolana criada por nacionalistas, ainda que tenha sido ele a primeira voz do movimento Vamos Descobrir Angola com a sua obra de estreia “Ao Som das Marimbas” (Lisboa, 1943). colaborou no jornal Cultura e na revista Mensagem. O tema do texto do crítico literário era outro, mas tratando-se de literatura ao serviço da luta pela Independência Nacional, vale a pena recuar no tempo e chegar ao ponto onde tudo começou: A Imprensa Livre (em oposição ao Boletim Oficial, do governador-geral), no século XIX.

O jornal Echo de Angola (12 Novembro de 1881) foi o primeiro jornal exclusivamente propriedade de angolanos e cuja Redacção era composta também por jornalistas africanos negros. Entre os seus redactores estava José de Fontes Pereira, justamente considerado um mestre do jornalismo luandense do último quartel do século XIX. Quando faleceu, era o decano dos jornalistas angolanos. Sant’Anna Palma, outro jornalista negro, no seu elogio fúnebre, considerou-o o melhor entre os melhores.

Arantes Braga, um angolano negro, foi fundador do jornal Pharol do Povo, subtítulo Folha Republicana. Foi o primeiro jornal de Angola que em plena monarquia, numa fase de tremenda repressão, se declarou defensor dos ideais republicanos. É considerado o mais arguto jornalista africano na produção de jornalismo político.

Pedro da Paixão Franco foi o mais mediático de todos os jornalistas africanos negros do século XIX. Além de jornalista, era escritor de mérito, deixando a obra em dois volumes, História de uma Traição. Além de jornalista e escritor, Pedro da Paixão Franco foi funcionário do Caminho-de-Ferro de Malanje.

Júlio Lobato era igualmente um jovem e talentoso jornalista que começou a sua carreira profissional na Imprensa Livre do último quartel do século XIX. Explodiu nos primeiros anos do século XX e em 1908 fundou o jornal A Voz de Angola que tinha como legenda: Libertando pela Paz; Igualando pela Justiça; Progredindo pela Autonomia. Este jornal tinha um contrato com a agência Reuter e publicava todas as semanas noticiário de Londres. Pela primeira vez um jornal de Angola assumia em subtítulo que era defensor da autonomia de Angola. A repressão caiu sobre Lobato e o seu jornal, mas a semente ficou. Geraldo Bessa Victor e Maurício Gomes são frutos dessa sementeira libertária.

Filinto Elísio de Menezes escreveu no seu ensaio “Apontamentos Sobre a Poesia de Angola” que Maurício Gomes é um poeta “que soube identificar a poesia com o povo e na qual a presença do homem (angolano) é evidente e permanente. Maurício Gomes é o poeta que se entristece quando se põe a olhar para a alma do negro. Por isso, a sua poesia, embora vibrante, objectiva e realista tem ressaibos de uma profunda melancolia”. Para ilustrar a sua tese, o crítico literário revela o poema ESTRELA PEQUENINA:

Tocadores, vinde tocar 

Marimbas, ngomas, quissanges 

Vinde chamar a nossa gente

 P’ra beira do grande Mar! 

Sentai-vos, irmãos, escutai: 

Precisamos entender 

As falas da Natureza, 

Dizendo da nossa dor, 

Chorando nossa tristeza. 

Ora escutai, meus irmãos: 

Aquele Sol no poente, 

Vermelho como uma brasa,

 Não é Sol somente. Não! 

É coágulo de sangue 

Vertido por angolanos 

Que fizeram o Brasil! 

Ouvi o mar como chora, 

Ouvi o mar como reza... 

Olhai a noite que chega,

 Veludo negro tecido 

De mil pedaços de pele 

Arrancados a chicote 

Ai! cortados a chicote 

Do dorso da nossa gente 

No tempo da escravatura... 

Noite é luto 

De que Deus cobre o mundo 

Com dó de nós... 

Disco de prata luzente 

Sobe ligeiro no espaço. 

Sabei que a Lua fulgente 

Contém lágrimas geladas 

Por pobres negros choradas... 

Pergunta-me a multidão, 

Sentada à beira do Mar: 

– Agora dizei, irmão, 

Daquela pálida estrela 

Tão pequenina e humilde 

Que brilha no nosso céu

 Qual é o significado? 

Talvez seja finalmente 

Deus a olhar para a nossa gente...

Da mesma época recordo o poema  EXORTAÇÃO onde Maurício Gomes revela de uma forma exuberante o seu nacionalismo libertário:

 Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,

poetas do Brasil,

do Brasil, nosso irmão,

disseram:

"— E preciso criar a poesia brasileira,
de versos quentes, fortes, como o Brasil,
sem macaquear a literatura lusíada".

Angola grita pela minha voz,
pedindo a seus filhos nova poesia!

Deixemos moldes arcaicos,

ponhamos de lado,

corajosamente,

suaves endeixas,

brandas queixas,

e cantemos a nossa terra

e toda a sua beleza.

Angola, grande promessa do futuro,
forte realidade do presente,
inspira novas idéias,
encerra ricos motivos

E preciso inventar a poesia de Angola!

Fecho meus olhos e sonho,
abrindo de par em par o coração,
e vejo a projeção dum filme colorido
com tintas de fantasia e cenas de magia:

As imagens são paisagens, gentes, feras.
E sucedem-se lenta, lenta, lentamente...
Assisto maravilhado
no despenhar gemente

  das quedas d'água do Duque de Bragança...
  Vejo crescer florestas colossais
  no Maiombe, onde o verde é símbolo
  de tanta esperança...

  Amboim fecundo, Amboim cafezeiro,
  de alcantis envoltos sempre em nevoeiro denso,
  como um fumo cheiroso
  do seu café gostoso,
  tão famoso no mundo...

  Deserto de Namibe a espreguiçar-se
  num bocejo mole,
  estendendo tentáculos de areia
  como povo gigante
 — visão alucinante, miragem
 no escrínio esquisito
 que aguarda avaramente
 a jóia mais horrivelmente linda|
 e única no mundo

 — a Welwitschia mirabilis,
que em si encerra mistério tão profundo...

É preciso escrever a poesia de Angola!

Vejo anharas infindáveis
onde noivam no capim,
|pelo amor amansadas,
feras bravas, indomáveis...
Vejo lagos de safira,
tão calmos
como olhos ternos,
chorosos,
de tímidas gazelas... 

     E terras rendilhadas do litoral,
     secas, rugosas, escalvadas,
     onde reina o imbondeiro
     gitantesco Prometeu agrilhoado,
     visão estranha, infernal, horrenda,
     verde pálido, branco, cinzento,
     lembrando líquen mágico, colossal...

     Baías, cabos, estuários,
     praias morenas,
     mares verdes, mares azuis,
     e rios de aspecto inofensivo
     mas cheios de jacarés...

     Terras de mandioca e batata doce,
     campos de sisal, minas e metais,
     goiabeiras, palmeiras, cajueiros,
     areais imensos, cheios de diamantes,
     chuvadas torrenciais,

     filas tristes de negros carregadores gemendo...
     cantando tristemente seus cantares...
     planaltos, montanhas e fogueiras,
     feiticeiros dançando loucamente:
     Angola é grande e rica e vária.

          E preciso criar a poesia de Angola!

     Terra enorme onde o inseto impera:
     mosquito da febre e mosca tzé-tzé,
     cobrindo tudo de sono.

     Olhai o senhor arquiteto Salalé,
     tão pequenino, tão teimoso e diligente...
     Como ele projeta e constrói castelos,
     milhões de vezes maiores que ele é,
     para vergonha nossa,
     que pouco fazemos
     presos de fútil, preguiçoso dandismo... 

     Encostai o ouvido atento
     ao coração do povo negro,
     escutareis, só vós, poetas da minha terra,
     que estais por nascer,
     aquilo que para outros é segredo defeso,
     mistério da esfíngica, malsinada alma negra.
     Criai ânimo, ganhai alento,
     e vibrantemente cantai a nossa terra! 

           É preciso forjar a poesia de Angola!

     Essa nova poesia
     será vazada em forma candente
     sem limites nem peias,
     diferente!...

     Mas onde estão os filhos de Angola,
     se os não oiço cantar e exaltar
     tanta beleza e tanta tristeza,
     tanta dor e tanta ânsia
     desta terra e desta gente?

     Essa nova poesia,
     forte, terna, nova e bela,
     amálgama de lágrimas e sangue,
     sublimação de muito sofrimento,
     afirmação duma certeza. 

     Poesia inconformista,
     diferente,
     será revolucionária,
     como arte literária,
     desprezando regras estabelecidas,
     idéias feitas, pieguices, transcendências...

     Poesia nossa, única, inconfundível,
     diferente,
     quente, que lembre o nosso sol,
     suave, lembrando nosso luar...
     que cheire o cheiro do mato,
     tenha as cores do nosso céu,
     o nervosismo do nosso mar,
     o paroxismo das queimadas,
     o cantar das nossas aves,
     rugir de feras, gritos de negros,
     gritos de há muitos anos,
     de escravos, de engenhos das roças,
     no espaço vibrando, vibrando...

     Sons magoados, tristíssimos, enervantes,
     de quissanges e marimbas...
     versos que encerrem e expliquem
     todo o mistério desta terra,
     versos nossos, húmidos, diferentes,
     que, quando recitados,
     nos façam reviver o drama negro
     e suavizem corações,
     iluminem consciências,
     e evoquem paisagens
     e mostrem caminhos,
     rumos, auroras...  

     Uma poesia nossa, nossa, nossa!
      — cântico, reza, salmo, sinfonia,
     que uma vez cantada,
     rezada,
     escutada,

     faça toda a gente sentir
     faça toda a gente dizer: 

— É poesia de Angola!

O crítico literário Filinto Elísio de Menezes, em 1950 já punha dúvidas quanto ao reconhecimento público da obra do poeta. Escreve ele: ESTRELA PEQUENINA é o poema no qual Maurício Gomes melhor se revela. Nestes poucos versos o poeta conseguiu um perfeito equilíbrio na forma e uma forte persuasão na finalidade. É possível que Maurício Gomes nunca consiga pôr de pé a sua poesia. Mas o que se lhe não pode negar é que foi ele dos primeiros artistas angolanos a proclamar a criação de uma poesia independente, sem os tropeços de influências estranhas. 

Antes de prosseguir, convém perguntar: Quem era Filinto Elísio de Menezes? O crítico literário chegou a Angola em 1948, um ano após a criação do jornal “Cultura” vindo de Cabo Verde onde era o gerente do Banco Nacional Ultramarino. O ensaísta e crítico literário escreveu, em 1948, que a Literatura Angolana, era desconhecida. Esse desconhecimento justificava a situação social e política porque “a dominação de um povo ocorre no momento em que os seus dirigentes, na sua insignificância, e em número reduzido, não cultivam o gosto pelas belas-artes. É apontado como o percursor de Mário Pinto de Andrade “na formulação de um discurso crítico que objectivava a autonomização e a legitimação das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, em geral, e da Literatura Angolana, em particular”.

Maurício Gomes não limitou a sua actividade à escrita. Ele foi verdadeiramente um activista cultural, que deixou marcas indeléveis na Sociedade Cultural de Angola e no seu jornal Cultura. Na separata de 1950, vem publicada a lista dos corpos gerentes desse ano. E lá está o poeta, como membro da Assembleia Geral. Os outros eram António Simões Raposo (presidente), José Manuel de Morais, Luís Henrique Ervedosa Abreu e Fernando Pimental Júnior. O presidente da Direcção era Eugénio Ferreira. Foram eleitos durante uma assembleia geral que ocorreu em 1949, tinha o poeta Maurício Gomes 29 anos.

A Sociedade Cultural de Angola nasceu em 1942 e o primeiro presidente da direcção foi o capitão Jorge Figueiredo de Barros. Vogais: José Costa, cantor lírico, Henrique Gago da Graça e Casanova Pinto. Em Dezembro de 1943 foi publicado o primeiro e único boletim da instituição. Em 1945, o capitão Jorge Figueiredo de Barros foi substituído na presidência por Manuel da Cruz Malpique. Nesta fase surgiu o primeiro número do jornal Cultura, do qual saíram 12 números. Em 1947, Eugénio Ferreira assumiu a presidência da direcção da Sociedade Cultural de Angola, até ao seu encerramento, em 1960, por ordem da PIDE, a polícia política do regime colonialista. A Sociedade Cultural de Angola foi extinta em 1965 por Portaria do Governo-Geral de Angola. 

Entre os primeiros corpos gerentes (1943) estavam figuras ligadas à Imprensa. Os jornalistas Norberto Lopes e Antero Gonçalves, que eu alcunhei de “Poderoso” quando fomos colegas de Redacção no Jornal de Angola, em 1976. Era anarco-sindicalista. Carlos Alves e Agnelo Paiva, cronistas. Júlio Castro Lopo, historiador da Imprensa Angolana. 

Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira (Cassé) publicaram “O Boletim Cultura e a Sociedade Cultural de Angola”. Está lá tudo. Por isso é uma obra de leitura obrigatória. 

Nos 12 números de Cultura é possível conhecer os primeiros textos de Maurício Gomes mas também de Luandino Vieira, onde publicou poemas, contos e fez ilustrações, acitividade pouco conhecida do autor de “Luuanda”. Mário António, que pertenceu à geração Mensagem, mas também colaborou activamente no jornal Cultura. Foi um dos fundadores, com António Jacinto, Luandino Vieira e Viriato da Cruz, do Partido Comunista Angolano.

António Jacinto é um dos fundadores do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, criado em 1948. Publicou os seus primeiros poemas na revista Mensagem mas também no jornal Cultura e no Notícias do Bloqueio, com Egipto Gonçalves, Papiniano Carlos e Luís Veiga Leitão. António Cardoso foi outro poeta que além da revista Mensagem, publicou os seus primeiros poemas no jornal Cultura.

Mensagem foi uma revista de Arte e Cultura da Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA). Entre os colaboradores, destacam-se intelectuais tais como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, Óscar Ribas, Mário António Fernandes de Oliveira. Elevaram a Literatura Angolana até níveis nunca antes alcançados. 

A separata do jornal Cultura da Sociedade Cultural de Angola (única), além do ensaio de Filinto Elísio de Menezes sobre a poesia angolana e o percursor Maurício Gomes, tem outros conteúdos muito valiosos. Desde logo o editorial de Eugénio Ferreira que também assina o ensaio MIGUEL TORGA POETA DA MONTANHA. Mas também uma peça de Jaime Salinas de Moura (O ROMANCE NA LITERATURA COLONIAL) e um ensaio de Pompílio da Cruz intitulado QUAL SERÁ O MUNDO DE AMANHÃ? Uma peça fundamental para compreender os fundamentos do movimento dos independentistas brancos que explodiu nos anos 60 e depois do 25 de Abril de 1974 se materializou na Frente Revolucionária de Angola (FRA) e Brigadas da Juventude Revolucionária (BJR), organizações de cariz terrorista. 

Maurício Gomes fez parte dos órgãos sociais da Sociedade Cultural de Angola. Não se limitou a ser uma voz singular da Poesia Angolana. A instituição teve um papel fulcral na divulgação do nacionalismo angolano de cariz revolucionário. O jornal Cultura e a revista Mensagem mobilizaram a intelctualidade angolana para a luta pela Independência Nacional. Este processo político e cultural culminou com as prisões políticas a 29 de Março de 1959, em Luanda, e que resultaram no “Processo dos 50”. O julgamento dos nacionalistas teve início a 5 de Dezembro de 1960. Mas antes, a 8 de Junho de 1960, o director da PIDE em Angola, São José Lopes, foi prender pessoalmente Agostinho Neto, aquele a quem os nacionalistas chamavam “o Nosso Moisés”. O poeta, médico e líder revolucionário foi deportado para Portugal e enclausurado no Aljube. 

Mas aluta continuou até à conquista da Independência Nacional. Intelectuais e artistas como Maurício Gomes têm um lugar na tribuna de honra do acontecimento mais importante das nossas vidas.

*Jornalista

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