domingo, 1 de maio de 2022

“O 25 DE NOVEMBRO É UMA DATA QUE NÃO TEM RELEVÂNCIA HISTÓRICA”

-- Capitão de Abril Rodrigo Sousa e Castro em entrevista ao Setenta e Quatro

João Biscaia | Setenta e Quatro 

Em conversa com o Setenta e Quatro, o capitão de Abril recorda a pobreza do Portugal de Salazar, a violência da Guerra Colonial e os primeiros passos do Movimento dos Capitães até este derrubar a ditadura. Desconstrói mitos sobre os arquivos da PIDE/DGS terem ido para Moscovo via PCP. Mas, sobretudo, de como nem todo o sonho de Abril foi cumprido.

Sentado numa cadeira de vime em sua casa, enquanto o vento assobia violentamente lá fora, o capitão de Abril Rodrigo Sousa e Castro diz calmamente que deve ser dos "poucos gajos que participou no 25 de Abril e no 25 de Novembro e que não tem nenhum pejo em dizê-lo".

O hoje coronel aposentado não guarda qualquer acanhamento ao desqualificar a mistificação entretanto construída sobre a suposta contrarrevolução, nem deixa de criticar "a vocação corrupta do nosso sistema democrático". Desmonta mitos com memórias que guarda na ponta da língua, ainda que de vez em quando lhe falhe o apelido de um ministro ou o dia exato de tal facto.

Não precisou da idade para assumir um posto. Subiu de alferes a capitão entre uma comissão em Angola e outra em Moçambique durante a Guerra Colonial. Pouco tempo depois, com apenas 30 anos, tornou-se "capitão de Abril". Fez parte do Grupo dos Nove, foi porta-voz do Conselho de Revolução e esteve encarregue da comissão de extinção PIDE/DGS.

Algumas das suas memórias, lavradas com mais detalhe no livro Capitão de Abril, Capitão de Novembro, são como pequenas parábolas que permitem espreitar para dentro de uma visão geral do Portugal do Estado Novo. Foi esse o ponto de partida para a conversa de largas horas entre o Setenta e Quatro e um homem que viveu alguns dos momentos mais marcantes da Revolução de Abril e que desempenhou um papel ativo e fulcral em mais de uma mancheia deles.

Nasceu e cresceu em Celorico de Basto, no Minho. Que memórias tem da sua infância? 

Cresci num meio rural e estudei num colégio de uma congregação religiosa. Muito pouca gente estudava, era um privilégio. Pude estudar por uma circunstância feliz: o facto de o meu pai ser ferroviário, chefe de estação, e eu e as minhas irmãs, enquanto estudantes, não pagarmos o transporte. Depois fui o único a ir para uma escola superior, a Academia Militar. Também não tinha outra opção, não tinha dinheiro para tirar um curso numa universidade.

Mais tarde, já capitão, estudei Economia no ISCEF, atual ISEG. Fora das aulas aquilo parecia uma madraça do MRPP. Quando lá cheguei, vindo das operações militares em África, tinha a noção absoluta da baixa intensidade da guerra. Os contactos de fogo com o inimigo eram esporádicos. Havia grandes desastres quando rebentavam minas debaixo de viaturas. Eram mais comuns os feridos graves, soldados sem pernas, sem braços, cegos, que os mortos. As baixas eram relativamente escassas, mesmo que sendo só uma já fosse mau. As zonas operacionais eram bastante restritas e eram poucas as unidades que contactavam diretamente com o inimigo.

Quando cheguei à universidade havia uns jornais de parede assinados pelo MRPP onde elencavam as baixas do exército colonial em África. Pelas minhas contas, eles numa semana matavam o total dos efetivos dos soldados portugueses em África. Eram às centenas. Fiquei estupefacto com aquilo. O governo era uma ditadura de extrema-direita, com uma polícia política que chegou a matar lá um estudante, o Ribeiro dos Santos, e o MRPP tinha tomado as cantinas, os corredores, e eu, um capitãozinho que vinha da guerra, não achava aquilo possível. Eram os epifenómenos que, apesar de tudo, começaram naquela altura a corroer a ditadura por dentro.

Foi nas comissões em África que diz ter tomado noção daquilo que era a ditadura e as verdadeiras intenções daquela guerra. Como foi a sua educação até aí?

Completamente ideológica. Além dos crucifixos nas escolas, éramos todos obrigados a ir às cerimónias religiosas. Ou pelo menos à desobriga, para nos confessarmos. Os professores ensinavam todos segundo o mesmo padrão. Era um ensino repressivo e à base da memorização. As coisas mais fundamentais em qualquer escola eram os objetos com que os professores castigavam os alunos: réguas, canas, palmatórias. Só me lembro de ser castigado uma vez, por um padre, com uma santa-luzia, uma palmatória que tinha orifícios para doer mais. Fiquei com as mãos a arder durante horas. 

Depois, no liceu, fui praticamente obrigado a ir para a Mocidade Portuguesa. Como tinha dificuldades económicas e eles pagavam o almoço e os livros, lá fui. Quando fiz 18 anos, em janeiro de 1963, concorri à função pública e fui colocado no primeiro juízo do tribunal cível da comarca do Porto, com ideia de em outubro seguinte concorrer à academia militar, como acabei por fazer.

No tribunal, como era maçarico, puseram-me a fazer penhoras pequenas a pessoas que deviam mil, dois mil escudos ao merceeiro, ao talhante. Foi aí, nas ilhas da cidade do Porto, nos bairros dos pescadores de Matosinhos, que eu conheci de facto a miséria que havia neste país. Entrava em casas onde não havia nada para penhorar. 

Recordo-me de entrar uma vez numa casa onde havia uma televisão. Em 1963 quase ninguém tinha uma televisão. A dona da casa tinha duas filhas deficientes, totalmente dependentes, e tinha feito um grande sacrifício para a comprar. E eu disse-lhe, "não, eu não vi televisão nenhuma" e fui-me embora. Saí do tribunal do Porto com uma carga de raiva absoluta. Vivia num país miserável. E fui para a Academia Militar. Aí já não tinha de pensar em mais nada. 

Mas foi já com a guerra a acontecer nas três frentes.

Sim, em 1963. Mas, repare, eu desde miúdo que queria ser oficial do Exército. Os miúdos ficavam deslumbrados com os dourados, com as fardas, quando aparecia alguém do Exército na vila, por altura das inspeções ou quando iam lá recolher cavalos. Depois a malta organizava-se nas freguesias para ir à inspeção. E ai do rapaz que não passasse. Um tipo que ficasse livre da tropa ia ter dificuldades em se casar.

Portanto, sim, vou já com a guerra começada, mas teria sempre que ir. A minha opção em ser [militar] profissional foi bastante normal. Até se poderia pensar na altura que, sendo o curso da Academia Militar de vários anos, entretanto a guerra acabava. 

Havia essa ideia de que a guerra não duraria o que durou?

De início. O discurso era que tinha havido ali [nas colónas] um surto de violência, uns quantos massacres no norte de Angola, que não era algo estrutural. E o que tinha acontecido na Índia e levou à perda das colónias indianas também não era conhecido em Portugal quando o Salazar deu ordem para os portugueses resistirem até ao último homem. 

Refere nas suas memórias um seu coronel, Correia Diniz, que tinha ainda uma ideologia expressa de defesa da civilização europeia e da cristandade. Era comum?

Era o que prevalecia no Centro Nacional de Comandos. Fiz a primeira comissão em Angola como alferes e fui destacado como adjunto do comandante de uma companhia de atiradores. Depois de uns tempos no leste de Angola, o Estado-Maior mandou que todos os alferes do quadro fossem tirar o curso de Comandos, que duraria 14 semanas. Nós tínhamos uma capacidade militar adquirida na academia e nos tirocínios que era igual ou superior, em alguns aspetos, à dos comandos. Mas eles tinham aquela ideia das "tropas especiais". 

Isso chateou-me bastante. A mim e aos 40 alferes que lá estavam. De certa maneira, começou ali a germinar um certo descontentamento em relação ao Exército. Eu era um alferes que já tinha levado em cima com tiros do MPLA e da UNITA, que já tinha caído em emboscadas. Essa foi a minha experiência durante meses assim que cheguei a Angola, completamente maçarico. 

"Os soldados que iam daqui eram na sua maioria de zonas rurais, eram de casca grossa e muitos analfabetos. Alguns até faziam o exame da terceira classe no meio do mato, a despachar."

Mandam-me para os comandos e tenho que repetir aquelas instruções básicas de rastejar debaixo do arame farpado, levar com chumbinhos no rabo. Pegaram em oficiais qualificados, saídos da academia, que haviam estado uns meses largos em zonas de combate - porque não fomos para Angola passear - e obrigam-nos a tirar um curso que não acrescentou nada. Nem em técnicas de combate nem em "endurance" física. 

Resultado: dos 40 alferes, só dois é que ficaram nos comandos. Um porque era filho de um general, outro porque era carreirista. Acabou por não ter sentido nenhum. Apenas revelou o desnorte no Exército e a sua incapacidade em lidar com os oficiais. 

E qual era o contexto da instrução? Era que a terceira guerra mundial já tinha começado contra os comunistas e a União Soviética. E que nós estávamos ali, em África, a defender a civilização cristã e ocidental, e que éramos uma peça chave. Isso em 1967 já nem fazia sentido.

Quando a guerra começa, em 1961, até parece que todos os soldados vão com vontade. Se ler as cartas de guerra enviadas aos soldados nesses primeiros anos, as mães diziam-lhes: "meu filho, antes te quero morto que cobarde", "estás a defender a nossa terra". Notava-se como se tinha embrenhado nas cabeças das pessoas a propaganda do Estado Novo. 

E havia, nas cartas, uma evocação permanente da religião. Pedidos de proteção a Nossa Senhora de Fátima, promessas feitas pelas mães que os soldados depois pagavam ao voltar - iam rastejar para o Santuário de Fátima. Às tantas quem aguentou a guerra foi Nossa Senhora. 

Os soldados que iam daqui eram na sua maioria de zonas rurais, eram de casca grossa e muitos eram analfabetos. Alguns até faziam o exame da terceira classe no meio do mato, a despachar. Chegaram lá e depararam-se com uma sociedade extremamente desigual, socialmente primitiva, com uma elite branca omnipotente e os negros tratados como escravos, literalmente. E um negro, se tivesse alguma consciência, juntava-se à guerrilha. 

Depois, à medida que retornam os primeiros batalhões, após dois anos e tal, com uma mão cheia de nada e outra cheia da mesma coisa, percebe-se que não foram lá fazer nada. Uns foram morrer, outros ficaram estropiados. 

Tinha um tio fazendeiro com uma roça de café em Angola que usava trabalho escravo. 

Visitei essa roça, que já vinha de um tio-avô, e fiquei muito intrigado quando ele me mostrou aquela extensão toda e me disse: "eu pego numas camionetas, vou não-sei-onde e trago uns 50 aqui para cima". Mão-de-obra escrava. E tinha uns mulatos, cabo-verdianos, que eram os tipos que geriam os trabalhadores negros que para lá iam. E recordo-me de ter dito ao meu tio: "veja lá, que isto assim não vai dar em coisa boa". 

Passados alguns anos, em 1970, quando fui mobilizado para Moçambique, fui visitar a minha irmã que estava em Lourenço Marques, agora Maputo, como professora primária. O meu cunhado era topógrafo da Construtora do Tâmega. Ele estava entusiasmadíssimo, porque "não havia guerra", porque "o Kaúlza de Arriaga foi à televisão dizer que a guerra estava ganha". E eu disse-lhe: "olha que o Exército não vai aguentar, eu se fosse a ti pensava seriamente em me ir embora nos próximos dois anos". E eles não foram. Mas não errei por muito. 

Não havia noção real da realidade da guerra ou simplesmente mentia-se?

Havia um desprezo absoluto pela realidade da guerra. Menos na Guiné, que é onde o PAIGC vai conseguir pela primeira vez fazer a reversão do diferencial armamentista entre um exército clássico e combatentes guerrilheiros. Com o armamento anti-aéreo, mas não só. Nós tínhamos a G3, eles tinham a Kalashnikov, nós tínhamos bazucas, eles tinham RPG. A nossa artilharia era do tempo da II Guerra Mundial, eles tinham canhões sem-recuo. Inverteram completamente a diferença que normalmente existia entre um exército clássico e uma guerrilha. E é possível que tenha sido a primeira vez na história. 

E quando eles aparecem com o Strella, que é um míssil portátil, colocam a aviação portuguesa no chão. O primeiro avião a ser abatido é um Fiat G-91, pilotado por um major. Os helicópteros ainda eram mais vulneráveis. Deixámos de ter capacidade de ir buscar os feridos ao mato, de fazer apoio direto de fogo e até de fazer transportes logísticos. 

Aí a malta entrou em avario completo. Se nós não tivéssemos feito aqui o golpe militar, na Guiné eles faziam-no, independentemente do que aqui acontecesse. Aliás, acabaram por fazer, mas como nós também o fizemos aqui e a operação teve êxito, acabou por passar despercebido. Os capitães tomaram conta da Guiné, depuseram o comandante militar e o governador. Se a guerra continuasse, arriscavamo-nos a uma derrota militar vexatória na Guiné, que depois faria cair tudo o resto como um castelo de cartas.

O exército já tinha recuado da zona leste da Guiné e na retirada houve um desastre enorme ao passar o rio Corubal, quando morreram 47 soldados afogados. O [general António de] Spínola reuniu as últimas tropas que tinha para ir libertar alguns estacionamentos do Norte sob ameaça constante do PAIGC. Antes disso, na zona sul, já tinha caído Gadamael. O major que lá estava, em Guileje, pegou na tropa e veio-se embora, porque não aguentava o bombardeamento constante. 

A morte de Amílcar Cabral não abrandou os ataques?

Não, foi uma mudança de liderança. Nem interrompeu o aperfeiçoamento das suas capacidades militares, não só técnica, de combate, mas sobretudo de armamento. 

Entretanto, em Moçambique, as coisas seguiam o mesmo rumo. Nós tínhamos uns canhões alemães e ingleses da II Guerra Mundial, como disse, e eles tinham foguetes Katyusha. A situação estava muito complicada, embora o Jorge Jardim [secretário de Estado durante o Estado Novo] estivesse a negociar a partição de Moçambique com o Malawi e a Rodésia, como alternativa.

Tudo isto é fundamental. O 25 de Abril resulta diretamente da guerra colonial. E não é preciso vir nenhum historiador dizer esta verdade inegável. É a guerra que caldeia a mentalidade dos oficiais, que leva esses militares despolitizados a aceitar que teriam de renegar ao juramento de fidelidade à pátria e decidir que a única solução era mandar o regime abaixo. 

Senão, a guerra não acabaria e iríamos sujeitar-nos a uma derrota humilhante. Estávamos sozinhos, não tínhamos apoio internacional, tirando aqueles que nos vendiam armamento e pouco mais. Estive para ir a França buscar uns mísseis que eram para ir para Bissalanca, para os poços de petróleo de Cabinda e para a barragem de Cahora-Bassa. O regime estava eufórico a querer armar-se e a gastar o dinheiro que fosse preciso para continuar a guerra. Havia um sector de oficiais que achava que se nos rearmássemos conseguiríamos manter a guerra. Mas venceu a linha mais "à esquerda". À esquerda, porque acabar com a guerra era acabar com a ditadura. Não havia outra solução. 

Havia a solução de Kaúlza de Arriaga, que tentou um golpe para continuar a guerra. 

A "Kaulzada". Um grupo de oficiais mais à direita que achavam que rearmando as tropas portuguesas em África conseguiríamos vencer a guerrilha. E cá, em vez de haver uma ditadura civil, seria uma ditadura militar com um general a mandar no executivo. Depois o Marcello Caetano vai agregar junto dele muitos oficiais, a "brigada do reumático". Foram todos ter com ele, menos o Costa Gomes, o Spínola e o Bagulho. O resto foi tudo ao beija-mão. O Costa Gomes e o Spínola já sabiam que nós estávamos a conspirar e que a conspiração visava derrubar o regime. 

"As tropas especiais quando entravam, entravam a varrer. Acho que os portugueses deveriam ter muito cuidado ao falar de massacres. Ou pelo menos tentar ter alguma memória histórica."

No entender do Spínola, o derrube da ditadura iria proporcionar um regime liberal muito contido, para então tentar construir a sua mítica ideia do Portugal federal. As províncias ultramarinas deixariam de o ser e passavam a Estados subordinados a um poder central, com o seu grau de autonomia.

Os próprios colonos já imaginavam uma solução assim.

Em Angola já havia uma força de colonos brancos suficientes para almejar a independência. Só que depois teriam milhões de angolanos negros à perna, como aconteceu na Rodésia e na África do Sul. Se aceitassem a ideia da democracia em que cada cabeça é um voto, teriam de lidar com a maioria negra.

Se o livro [Portugal e o futuro] do Spínola era um projeto político, apenas serviu para haver uma escalada na conspiração contra o regime que vigorava. O objetivo do livro não era esse, era fazer os portugueses acreditar que havia um projeto político para as colónias. 

E Marcello Caetano foi passivo ao deixar o livro ser publicado.

Marcello Caetano nem entra nisso. Foi o Costa Gomes, chefe do estado maior, que deixa o livro ser publicado. Ele era quem tinha mais consciência do que se estava a passar e sabia que aquilo era inviável e que o Spínola mais tarde ou mais cedo se iria estampar. Aliás, não houve ninguém em quem os norte-americanos tivessem mais confiança do que no general Costa Gomes. 

Os norte-americanos iam lá ter confiança nas maluqueiras de uns capitães? Nem confiavam no Spínola por causa daqueles exageros militaristas. Eles só reconheciam ponderação em Costa Gomes e em [Mário] Soares, que era mandatário dos norte-americanos através das fundações alemãs que financiavam tanto o PS como o PSD. 

Qual era a perceção que os colonos brancos tinham da guerra?

Chegou a haver uma inversão total da perceção da realidade da guerra. A certa altura as populações brancas nas colónias achavam que os militares estavam lá para governar a vida deles. Em Moçambique houve oficiais que acabaram por ser atacados pela população branca em 1973.

Isso foi um dos momentos mais dinamizadores do Movimento dos Capitães. Começaram a surgir notícias de que as populações brancas achavam que o responsável pela guerra era o exército metropolitano que ia para lá "ganhar a vida". Quando um capitão, no mato, em Moçambique, ganhava o mesmo que um barbeiro na cidade da Beira. Os soldados eram pagos miseravelmente. As populações brancas começaram, em desespero de causa, à procura de um bode expiatório. 

É aí que se intensifica a ação das milícias de colonos brancos?

Não, isso vem logo desde o início. Há uma milícia branca criada muito cedo, a Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil, a OPVDC. Foi a resposta dos brancos de Angola aos massacres da UPA [União das Populações de Angola]. Mas massacres, antes da guerra, houve muitos. Na Baixa do Cassange [Angola] há um massacre terrível da responsabilidade de um capitão do exército português. Há o massacre do porto de Bissau [Guiné], o massacre de Mueda [Moçambique]. Depois há massacres mais recentes, já em guerra, como o de Wiriamu [Moçambique].

De maneira geral, as tropas especiais quando entravam, entravam a varrer. Acho que os portugueses deveriam ter muito cuidado ao falar de massacres. Ou pelo menos tentar ter alguma memória histórica.

Há quem adote uma postura cínica em relação ao Movimento dos Capitães, reduzindo-o ao desgosto pela promoção dos oficiais milicianos.

Isso é uma narrativa que visa menorizar o movimento. A sua ignição é a guerra. Não havia revolução militar, daquele tipo, sem a guerra. A questão corporativa das promoções dos oficiais milicianos é uma questão que as pessoas levantam porque quando se quer apontar um problema não se quer ver o que é que aconteceu ou está a acontecer. 

O que é que aconteceu? Os capitães ficaram muito desgostosos com dois decretos da ditadura sobre as questões das promoções dos oficiais milicianos que entretanto iriam frequentar a Academia Militar. Depois acontece uma coisa muito interessante: esses dois decretos são absolutamente denegados pela ditadura. Foram anulados. 

Houve algum momento no dia 25 em que sentisse que as coisas pudessem corrido mal?

Não. Jogámos com a surpresa, correu tudo bem - as emissões de rádio, as senhas através das canções. Às tantas da madrugada já tínhamos sublevadas todas as tropas com que contávamos. As tropas que a ditadura podia mobilizar nunca teriam superioridade sobre as tropas do movimento. Nem tinham vontade de combater.

Mesmo naquele impasse na Rua do Arsenal com as forças do brigadeiro afeto ao regime?

Mesmo aí houve muita ponderação. Foi sorte ser o Salgueiro Maia a comandar aquelas tropas. Era um tipo calmo, ponderado. Outro qualquer poderia não querer dialogar. Uma operação militar é extremamente aleatória. Sabemos como começa, nunca sabemos como acaba. O 25 de Abril teve um conjunto de circunstâncias que eu ainda hoje estou para perceber como é que elas aconteceram. Até o romantismo dos cravos nas espingardas, tudo isso foi de forma completamente aleatória. Parece que a Nossa Senhora de Fátima também estava a cuidar daquilo tudo. 

Tivemos a ameaça da fragata, a fragata não abriu fogo. Mas nós tínhamos a capacidade para afundar a fragata, com centenas de marinheiros lá dentro. Tínhamos oito bocas de fogo no Cristo-Rei prontas a disparar. Bombardeavam o Terreiro do Paço, mas depois eram liquidados. A força que nós tínhamos era absolutamente superior.

Na noite de 24, tendo já cumprido a maior parte das tarefas que lhe haviam sido confiadas, vai jantar ao João do Grão, na Baixa, e diz no seu livro que se sentiu poderoso ao olhar para as pessoas e saber que ninguém ali fazia ideia do que se passaria daí a umas horas.

Recordo-me bem disso. Cada um dos capitães que tinha participado na conspiração e nos movimentos imediatamente antes tinha uma noção parecida, mas muito mais ansiosa que a minha. Eles estavam no quartel, mas eu tinha andado pelos vários quartéis a distribuir os últimos detalhes. Frequências de rádio, as senhas e contrassenhas, últimas ordens verbais do Otelo [Saraiva de Carvalho]. Eu saí de Lisboa no dia 23 à noite. Quando regresso, depois de ir à Região Militar do Norte, à Figueira da Foz, a Aveiro, é dia 24 de manhã, e é um dia inteiro de viagem. Outros foram para a zona Centro, outros para o Sul e deviam ter a mesma sensação que eu. 

Como eu tinha a sensação que a revolução era imparável, e que ela iria mudar radicalmente a vida das pessoas, para o bem ou para o mal, naquela noite  senti-me como se possuísse um segredo incrível - e possuía! Olhava para as pessoas, na sua rotina - porque era um dia de semana - e tive essa sensação de possuir algo que me diferenciava de maneira definitiva dos outros. Olhava para as pessoas e pensava, "aqui mais ninguém sabe". Tirando a minha mulher. E só fomos jantar fora porque era o aniversário dela, que estava em pânico. Eu tive de lhe dizer, "se isto correr mal, tu tens a tua mãe, tratas da miúda".

Também foi da comissão de extinção da PIDE. Diz que havia muita gente que não queria depor contra os seus "algozes".

Ainda há muita gente com a ideia feita de que não se julgaram os pides. Isso é mentira. Todos foram julgados. Está nos arquivos, não há dúvidas. Foram criados dois tribunais militares a mais dos três que já existiam só para julgar os pides. 

O [Ramalho] Eanes é que me pediu, a seguir ao 25 de Novembro, para eu tomar conta da extinção da PIDE. Até ao 25 de Novembro [de 1975], os pides ficaram todos num limbo. Euforia revolucionária. Nas semanas a seguir ao 25 de Abril prendem-se os agentes, os informadores, os colaboradores e até alguns que nem eram uma coisa nem outra. Vinganças de vizinhos. Houve alguns que foram dentro sem ter culpa de nada. Havia milhares de presos até ao 25 de Novembro. Ninguém se interessou por eles até que houve uma fuga de Alcoentre, em que uns oitenta e tal pides fugiram e até fizeram uma canção sobre isso.

Quando se dá o 25 de Novembro, o Eanes chamou-me e fizeram-se ajustamentos de responsabilidade no Conselho de Revolução. Fiquei com a extinção da PIDE.

E como correu?

Deparei-me com uma situação catastrófica. Os pides ficaram distribuídos por várias prisões sem ninguém lhes ligar nenhuma. No caso de Alcoentre, estavam lá uns milhares entregues a guardas prisionais ad-hoc, gajos dos movimentos de extrema-esquerda. Uma rebaldaria, ainda que estivessem lá uns militares também. 

Uns dias a seguir, comecei a ser bombardeado com correspondência dos familiares dos pides e dos informadores. Centenas de cartas. Um dia decido ir a Alcoentre. Chego lá, às 5h da manhã, encontro o alferes que estava a mandar naquilo e digo-lhe que quero visitar a prisão.

Os presos estavam em desespero. Muitos eram fascistas, mas não estavam a ser tratados humanamente. Havia relatos de roubos, espancamentos, fuzilamentos simulados. Estavam a fazer a mesma merda que os pides. E eu levava o nome de quatro pessoas que tirei das cartas que li. 

Mandei arranjarem-me uma sala com quatro cadeiras e trazerem-me aqueles quatro homens. Não sabiam quem eu era, não lhes chegavam notícias de nada. Eram os quatro pides: três graduados e um agente. E eu disse-lhes: "quero saber o que é que se passa nesta prisão". Desataram a chorar. 

Chegado a Lisboa, peço uma reunião com a máxima urgência com o general Eanes. Peço-lhe uma operação militar para cercar Alcoentre e mudar a guarda prisional que lá está. Nessa altura, na imprensa da época, havia jornais que noticiavam esta operação militar como uma espécie de intentona. O cerco à prisão foi para não fugirem nem prisioneiros nem guardas e conseguir mudar aquilo.

Foi aí que começaram as caricaturas em que diziam que soltava os pides?

Foi. Até em jornais decentes. Nós tínhamos uma lei que punia os pides, uma lei de natureza retroativa, uma coisa revolucionária. Os pides estavam presos desde o 25 de Abril. Isto foi em inícios de 1976, portanto iam fazer dois anos de prisão. A maior parte deles foi condenada a um ano de prisão. Os agentes simples que não tivessem cometido sevícias e participado em determinado tipo de crimes levavam uma pena à volta de um ano. 

Alguns foram a tribunal já com a pena cumprida, e até mais. Entretanto, comecei a metê-los em casa com termo de identidade e residência. Depois, criou-se o alarido que iam fugir. Nenhum fugiu. Pelo contrário, alguns que estavam em Espanha e na África do Sul regressaram. Viram que, embora tivessem de ir a julgamento e acabar presos, havia o mínimo de justiça. Se atuássemos em relação aos fascistas da mesma forma que eles tratavam os democratas, a revolução não passaria de uma fantochada. 

Foi esse processo que depois condicionou toda a opinião pública: que "o Sousa e Castro é um facho", "o gajo anda a soltar os pides". Havia cinco tribunais a julgar os pides. Os processos da PIDE foram todos para a Torre do Tombo, entreguei-os eu. 

Há quem diga que foram para Moscovo, uma fantasia do caraças. Está lá tudo. Faltam meia dúzia de processos individuais, inclusive o do Soares e o do Cunhal que os foram lá buscar. Não eles, mandaram alguém. Aliás, antes de eu meter só militares a tomar conta dos arquivos, estava lá gente de todos os partidos a vigiarem-se uns aos outros, portanto não deixavam sair nada. Os pides foram todos julgados.

Fale-me sobre o mito de fuga de documentos para a Rússia.

Dizia-se que tinha sido uma operação orquestrada pelo PCP. Qual é a cabeça doentia que inventa que o KGB quisesse saber de uma polícia política de rastos como a nossa? A maior parte dos pides estava em África a recolher informação para os militares. Em qualquer localidade nas colónias havia um posto da PIDE com agentes brancos que iam daqui. 

Aqui, era lápis atrás da orelha. Faziam escutas, apreendiam correspondência, datilografavam muito mal. Isso é que foi para a União Soviética? Podiam ter algum interesse nos arquivos de Angola e Moçambique, mas esses nem sequer foram abertos. Foram entregues na Torre do Tombo tal e qual chegaram de lá.

Há um chefe da polícia que inventa uma história em que vê passar camiões da Marinha carregados de arquivos da PIDE para o aeródromo de Figo Maduro, onde os arquivos foram carregados para um avião Antonov. Se ele era chefe da polícia, porque é que não foi atrás dos camiões? Tinha medo do KGB?

Qual era o interesse dos processos daqui? Eles faziam processos de toda a gente, até dos militantes de extrema-direita. Uma pessoa ia para o estrangeiro, ficha. Ia para a Academia Militar, ficha. Era professor universitário, tinha ficha. Tudo o que saía da mediocridade, eles fichavam. Depois logo se via. Conforme o que alguém fizesse ia subindo em nível de importância nos arquivos. 

E que militantes de extrema-direita foram "fichados"?

Quando o [Francisco] Lucas Pires foi ministro da Cultura, no II Governo Constitucional, convidei-o a ir visitar o arquivo de Caxias. Então fui ver se o encontrava nos arquivos, porque ele tinha sido da extrema-direita de Coimbra, os nacionalistas que defendiam a guerra colonial e faziam confrontos com os estudantes de esquerda, como o Alberto Martins. 

A PIDE tinha feito um processo dele referindo as suas intervenções nas RGA [Reuniões Gerais de Alunos], que dizia coisas como "então, levantou-se o estudante nacionalista, Francisco Lucas Pires". Ele chegou, comecei a explicar-lhe o arquivo. "Vamos ver se o senhor doutor também tem aqui ficha". Retirei a pasta do processo dele, ele a olhar para mim como se lhe quisesse lixar a vida: "está a ver, senhor ministro, não adiantava andar a defender o regime, eles também andavam atrás de vocês". 

Quais eram os meios da PIDE?

Tínhamos uma polícia política absolutamente arcaica. E nem por isso era menos repressiva, talvez até por isso o fosse mais. Poucos meios, pouca tecnologia. Caçavam cartas de homens casados para as amantes e faziam-lhes chantagem. 

O Joaquim Letria, quando foi trabalhar para a BBC de Londres, escrevia cartas para os amigos de cá, mas a PIDE apanhava-as todas. Então não lhe escreviam de volta. Chegou ao ponto de ele escrever cartas só com impropérios para os amigos, por não lhe responderem. Então um dia convidei-o para ir lá aos arquivos ver as cartas, para o descansar que a culpa não era dos amigos. 

E faziam chantagem de filhos para pais. Apanharam um gajo que distribuía o Avante! na Margem Sul e envolveram o filho menor. Isto foi muito perto do 25 de Abril, porque a própria mãe veio-me dizer que tinha um filho menor preso no meio dos pides, um miúdo de 17 anos. Mandei-o para casa. E fui ver: tinha sido colaborador da PIDE, denunciante do próprio pai, porque este recebia o Avante!. Tinham-no sacado com dinheiro. Eram pessoas miseráveis.

E o 25 de Novembro? Como vê esta ideia do 25 de Novembro como o dia "em que se cumpriu o 25 de Abril"?

Devo ser dos poucos gajos que participou no 25 de Abril e no 25 de Novembro e não tenho nenhum pejo em dizê-lo. O 25 de Novembro é uma data que, do meu ponto de vista, não tem relevância histórica, tão pouco o significado que tem o 25 de Abril. Foi um acontecimento intercalar no processo democrático. E quem acha que o 25 de Novembro foi uma revolução - ou uma contrarrevolução - eu só posso dizer que ficarão muito desiludidos se consultarem a história. 

Nos dias 26, 27, 28, 29, 30 de novembro todos os quadros institucionais portugueses estavam exatamente iguais ao dos dias 22, 23, 24 de novembro. A Constituinte estava a funcionar com os mesmos deputados. O governo era o mesmo, presidido pelo mesmo primeiro-ministro, com a mesma composição tripartidária - PCP, PS, PPD. As forças armadas tinham o mesmo comandante-chefe. 

O único órgão de soberania remodelado, em que é restabelecido um equilíbrio de forças - se se pode chamar assim - consonante com o próprio equilíbrio que existia na Assembleia Constituinte, foi o Conselho de Revolução. A ala mais seguidista do PCP, embora não fossem membros do PCP, foi afastada. E ficaram os militares mais de centro, mais moderados, do Grupo dos Nove e etc.. 

Mas esse afastamento não se dá a 25 de novembro, dá-se a 5 de setembro, no pronunciamento de Tancos. O verdadeiro 25 de Novembro é o pronunciamento de Tancos, quando o Conselho de Revolução é alterado e as forças ali definidas - não digo representadas, porque não havia representação - voltam a pender para o centro. Os mais de esquerda foram corridos.

Foram corridos porque queriam que o processo revolucionário se sobrepusesse ao processo democrático? 

Exatamente. Era a linha do COPCON e do próprio PCP. Mas essa recomposição dá-se no interior das Forças Armadas. Há uma reunião em Tancos com uma grande controvérsia, em que as pessoas mal se entendem, mas no fim o Exército decide que quem ficaria no conselho seriam aqueles elementos. A Força Aérea e a Marinha tiveram de ir atrás.

O que se dá a 25 de novembro é diferente. Há uma rebelião militar dos paraquedistas, claramente. E o comandante-chefe das Forças Armadas, o Costa Gomes, contando com os militares do Grupo dos Nove e todos os que seguiam essa linha, prevendo que alguma coisa de grave poderia acontecer, determinou que todas as unidades das Forças Armadas lhe manifestassem lealdade hierárquica. E os paraquedistas em rebelião tiveram de ser anulados à força. Chegou a haver um confronto entre uma unidade de comandos e um regimento [da Polícia Militar] na Calçada da Ajuda [em Lisboa].

Tenho tentado explicar isto a muita gente. Mas dá-lhes mais jeito evocar uma data simbólica daquilo que querem chamar uma contrarrevolução, que é apenas o fim da ideia de que a legitimidade revolucionária se sobreporia àquilo que a constituição definisse. O Álvaro Cunhal era apologista dessa visão. Até uma certa altura, o Cunhal - e tinha o direito a isso, com o seu passado antifascista - sonhou mesmo com a revolução. Mas os militares do Grupo dos Nove entendiam que a legitimidade residia na Assembleia Constituinte, que gizaria uma constituição para o país que evitasse que um regime autoritário se implantasse de novo. O que, aliás, teve êxito, porque ainda estamos aqui 48 anos depois, e ainda hoje temos essa Constituição. Mudada, mas temo-la.

E como vê a cooptação do 25 de Novembro pela direita, chamando até a imagem do Jaime Neves ao barulho?

Qual foi o papel do Jaime Neves no 25 de Novembro? Era um oficial que estava numa cadeia de comando. Recebia ordens do Costa Gomes através do Eanes. Aliás, ele fazia tudo o que o Eanes mandava. O Jaime Neves era uma pessoa de personalidade bastante volúvel, do ponto de vista político. Não contava para nada. Mas cada um tem os seus heróis. 

Mas o Jaime Neves e os seus soldados não impediram uma ditadura comunista?

É o que eu lhe disse, no dia 26 de novembro estava tudo igual. Onde é que estava o projeto ditatorial do PCP? Não havia. Queriam ter mais influência no processo político. 

Fala-se muito agora das derrotas eleitorais do PCP, mas a grande derrota da história do PCP foi nas eleições para a Assembleia Constituinte, porque ficou em minoria. Se havia algum projeto que o PCP poderia construir, seria com o apoio popular. Quando fomos a eleições, vimos que afinal o seu apoio popular não era tanto assim: teve 12% dos votos. Então o PCP tentou que o Conselho de Revolução pendesse para o lado deles. E isso acaba no pronunciamento de Tancos. Estão errados na data histórica, têm de ir é para setembro, não é novembro. 

Mas a data, tal como as palavras, acaba por ser um bocado irrelevante.

Porque é que esses tipos de direita, da Iniciativa Liberal, querem saber tanto do 25 de Novembro? Porque eles são filhos do único partido que votou contra a Constituição. Estão ali com má consciência. 

Como explica este azedume em relação ao 25 de Abril, mesmo de quem nasceu no pós-revolução?

Vamos lá ver, o senhor Karl Marx não escreveu coisas à toa. A luta de classes é uma coisa permanente. Temos grupos de interesses. Quem é que distribui a riqueza em Portugal há décadas? É um grupo central de interesses. Ora o PSD e os seus apêndices, ora o PS e os seus apêndices. E os seus grupos privilegiados.

Disse que a Constituinte era a chave do processo de transição democrática. E deu-nos uma Constituição progressista. Acha que a Constituição foi perdendo força com as sucessivas revisões?

O essencial, a meu ver, está lá. Mudou-se o sector económico, porque houve um consenso PS-PSD. A revisão de 1982 é a mais importante, porque mexe na estrutura política. Retira poderes ao Presidente da República e distribui os poderes do Conselho da Revolução de uma forma que beneficia mais o Parlamento e os governos. 

E quando se começa a colocar na Constituição os "tendencialmente gratuitos", isso não desvirtua o seu sentido?

Colocaram lá uma série de armadilhas. Mas a grande mudança é o conluio do bloco central sobre os sectores económicos, quando se decide dissipar completamente os ativos estratégicos do Estado. Essa é a grande questão: a privatização dos sectores estratégicos. Coisas que, em tempos de crise como agora, são extremamente importantes. Privatizou-se tudo sob os argumentos da concorrência e do investimento, que são completamente desmontáveis, e que se verificaram serem, pura e simplesmente, burlas.

Quando se tem o controlo estatal dos sectores estratégicos, como todos os países têm - ao contrário do que estes liberais dizem - e se perde esse controlo, abdica-se de poder fazer políticas sociais, abdica-se da soberania. Quando se vende a rede elétrica a estrangeiros estamos a abdicar da soberania. Em Portugal já não há mais nada para privatizar. Os portugueses encontraram um novo filão colonial na União Europeia, de onde vem dinheiro, e a troco disso não somos donos de nada. 

Mesmo aparecendo novas coisas, pensa-se sempre primeiro nos privados. Ninguém pensa numa empresa estatal para explorar o lítio. Ainda há uns dias ouvi o presidente mexicano dizer que o lítio é um material estratégico de futuro e vai ficar nas mãos do Estado mexicano. 

Há dias saiu a notícia de que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa estará a pensar condecorar postumamente o general Spínola, o que não aconteceu quando morreu Otelo Saraiva de Carvalho. Acha que se está a travar uma batalha pela memória?

A morte do Otelo revela uma falta de coragem política, neste caso do presidente e do primeiro-ministro, que a mim me surpreendeu. O Otelo foi o comandante das operações militares do 25 de Abril. Façam o que o presidente ou o primeiro-ministro fizerem, eles são o produto dessa vitória militar. E nesse sentido, há aqui uma falta, não de um reconhecimento do papel histórico do Otelo, mas de coragem pessoal em reconhecer que somos o produto das ações desse homem. 

Ele depois teve ações nocivas? Sim. Mas esta é a causa da nossa própria existência política. O que o presidente e o primeiro-ministro tinham de fazer era decretar luto nacional. Era a única coisa que tinham para fazer. Mas a perceção dos custos políticos que teriam de pagar por isso é que os amesquinhou perante a grandeza da ação do Otelo a 25 de Abril. Teriam a legião dos reacionários todos à perna. Mas aí é que estava: é que a revolução foi feita contra os reacionários e os seus herdeiros. 

Sente as forças reacionárias bastante ativas?

Sim. No fundo, para mim, a questão do reacionarismo prende-se com o atraso que ainda hoje temos. Cultural, social. Muito mais que ficar preocupado com 12 tipos de extrema-direita no Parlamento ou com aquele grupo de liberais que quer uma série de fantasias neoconservadoras reaganistas — e que serão todos absorvidos por um sistema que só por si tem uma vocação corrupta — , preocupa-me o estado de pobreza a que deixámos chegar uma franja grande da nossa população. 

João Biscaia | Setenta e Quatro

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