sexta-feira, 6 de maio de 2022

Portugal | COMO A PSP ENTROU A MATAR NO 1º DE MAIO DE 1982

Há 40 anos, agentes da PSP dispararam munições de guerra indiscriminadamente e à queima-roupa contra a população do Porto. Mataram dois jovens trabalhadores e feriram dezenas de pessoas horas antes da manifestação do 1º de Maio. Nunca se fez justiça.

Miguel Pérez Suárez* | Setenta e Quatro

Na madrugada de 30 de abril de 1982, a tentativa da CGTP de instalar palcos na Avenida dos Aliados, no Porto, para a celebração do Dia do Trabalhador deu azo à mais brutal intervenção policial nas ruas do país depois do 25 de Abril de 1974. Dois trabalhadores foram mortos, dezenas de outros foram baleados e outros tantos ficaram com diversos ferimentos.

Segundo dados coligidos no Livro Branco sobre a madrugada sangrenta 1º de Maio 82 - Porto, a atuação policial careceu de qualquer provocação séria. A intervenção da polícia deixou no terreno, depois de mais de duas horas de cargas policiais sucessivas que se estenderam a várias áreas do Porto, pelo menos seis dezenas de feridos atendidos em hospitais, nove dos quais com ferimentos de bala e duas vítimas mortais. Pedro Manuel Sarmento Vieira, operário têxtil de 24 anos e o menor Mário Emílio Pereira Gonçalves, de 17 anos, foram assassinados. O primeiro foi atingido nas costas, o segundo na cabeça.

A origem dos confrontos está na pretensão da UGT de comemorar o 1º de Maio na baixa portuense, no mesmo local onde, desde maio de 1974, a CGTP comemorava o Dia do Trabalhador, num contexto de grande tensão social e confronto entre as duas centrais sindicais.

A 12 de fevereiro desse ano, a CGTP convocara uma bem sucedida greve geral que fora duramente reprimida e boicotada pela UGT. Houve duros confrontos entre elementos das duas centrais sindicais, como foi o caso na Carris de Lisboa. Além das rivalidades passadas, as rixas foram motivadas por elementos da Comissão Executiva da UGT protegerem a saída de autocarros conduzidos por fura-greves.

Ao mesmo tempo, o discurso da coligação de direita Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM), liderada por Francisco Pinto Balsemão, era duríssimo. O governo e o ministro da Administração Interna, Ângelo Correia, referiam-se à convocatória da Inter como “insurreição dos pregos” juntando CGTP, PCP e a organização terrorista FP-25, criminalizando assim o movimento sindical.

A divisão do movimento sindical e a criação da UGT em 1979 marcara as lutas dos trabalhadores do final da década de 1970. Havia fortes doses de sectarismo e confrontos dos dois lados da barricada. Mas a tensão chegou a um novo patamar com a estratégia da UGT: implantar-se nos locais de trabalho com uma política na contratação coletiva de aumentos salariais (num quadro de inflação muito elevada) em troca de cedência de regalias, o que leva a conflitos duros com a CGTP, como aconteceu no sector têxtil.

No final de 1981, os trabalhadores têxteis entram numa prolongada greve contra o CCT (contrato coletivo de trabalho) assinado pelo patronato com o Sindetex-UGT, verificando-se cenas de grande violência, mesmo com feridos de bala na Covilhã.  O clima de divisão leva a acontecimentos como os referidos da greve geral de fevereiro de 1982.

Neste quadro, o que sucedeu no Porto na madrugada do 1º de Maio só pode ser visto como (mais uma) provocação anti-sindical montada pelos sectores mais reaccionários da AD (com a sinistra figura do governador civil do Porto Rocha Martins à cabeça) com o apoio diligente da UGT.

Esta pedira, em ofício ao Governo Civil do Porto, o uso da Praça Humberto Delgado para o 1º de Maio de 1982 a 27 de abril de 1981, ou seja, dias antes do 1º de Maio de 1981. E a CGTP, que sempre fizera a sua comemoração nesse local, fez o mesmo pedido a 4 de abril de 1981. Que devemos interpretar desta sequência?

Que, enquanto a CGTP parece ter seguido um procedimento normal e compreensível – pede a praça depois do 1º de Maio de 1981 e com vista ao ano seguinte, e sempre no seu local habitual - a UGT preparava uma aposta forte no Porto, tentando fazer a sua manifestação numa zona central da cidade e onde a Inter se manifestava desde 1974. Fê-lo com uma estratégia provocatória: fazer entrar o seu pedido ainda antes da celebração do anterior 1º de Maio (de 1981).

A UGT anuncia publicamente a sua convocatória em finais de março. O Governo Civil fala a favor da UGT e faz um apelo ao diálogo. Durante os dias prévios ao 1º de Maio assiste-se a uma escalada entre as partes, com as declarações à imprensa a subirem de tom. José Manuel Torres Couto, então secretário-geral da UGT, não tem pejo em responsabilizar antecipadamente a CGTP por “eventuais provocações, agressões e confrontações que ocorram no 1º de Maio”. A Inter mantém o seu programa tradicional na Avenida dos Aliados.

No fim do dia 30 de abril elementos da CGTP e da UGT começam a ocupar a Avenida dos Aliados para preparar as comemorações do dia seguinte. Enquanto a UGT começa o seu espetáculo na parte alta da praça (junto aos Paços do Concelho), os ativistas da CGTP instalam, no lado sul, um palco para a manifestação do dia seguinte. Já a PSP estabelece um cordão entre os dois grupos, registando-se algumas cenas de provocação e cargas policiais sem grande violência.

Sem aviso prévio, aparecem por volta das 23h30 as forças do Corpo de Intervenção da PSP destacadas de Lisboa. Carregam brutalmente sobre tudo o que encontram à frente e as bastonadas depressa dão lugar ao uso de espingardas de assalto G3, tão usadas na Guerra Colonial (1961-1974). Foi tal o pandemónio de violência que quem a ele assistiu não deixou de se espantar e indignar: cidadãos foram espancados por mais de duas horas, registando-se dezenas de disparos por parte da polícia.

“[Os polícias] Agrediram indiscriminadamente todas as pessoas que se encontravam à sua frente, à bastonada e a pontapé, e às vezes com obscenidades, independentemente do sexo e idade; quer arremessassem pedras ou nada fizessem; quer fossem em fuga ou simplesmente estivessem paradas, mormente abrigadas em paragens de autocarros ou nas soleiras dos prédios”, lê-se no parecer da Procuradoria Geral da República (PGR). “Todos eram agredidos, muitas vezes de forma selvática e por mais de um elemento policial contra a mesma pessoa, mesmo que esta se encontrasse prostrada no chão e indefesa.”

"À minha frente um jovem caído no chão foi espancado, eram duas horas, por seis polícias ao mesmo tempo. Agarrei-o e gritei desesperadamente por uma ambulância", denunciou o jornalista Carlos Magno. 

O objetivo da violência foi, segundo a PSP, “limpar todo o local dos manifestantes que procuravam contrariar a realização do espetáculo da UGT”. Mas as conclusões do relatório da PGR esclarecem sem margem para dúvida que a situação de ordem pública estava controlada e que não havia qualquer justificação para o que aconteceu depois da carga policial.

Além disso, o mesmo documento exclui liminarmente que tenha havido elementos afetos à CGTP com armas de fogo ou com cocktails molotov preparados, ao contrário do que disse Ângelo Correia dias depois dos acontecimentos.

Vale a pena citar alguns dos testemunhos recolhidos no Livro Branco. O jornalista Carlos Magno, então na RDP, identificou-se como tal, mas ainda assim correu o risco de ser varrido pelos agentes da PSP, que “entraram como cowboys no Farwest”.

“Um dos graduados olhou-me com desdém: 'Vamos limpar esta porcaria e esse cartão não lhe serve de nada. Depois, quando tiver a cabeça partida, não me diga que não o avisei. Os jornalistas comem como os outros'. Por acaso não comi”, disse o jornalista. “Mas à minha frente um jovem caído no chão foi espancado, eram duas horas, por seis polícias ao mesmo tempo. Agarrei-o e gritei desesperadamente por uma ambulância. 'Você não é jornalista mas agitador', disse-me um deles.”

Um outro jornalista, José Alberto Magalhães, da desaparecida Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP), foi igualmente ameaçado. “Um outro elemento da Polícia de Intervenção lisboeta, aparentemente um subordinado, acrescentou: ‘não olhamos a cartões, ou a Praça fica limpa ou ainda esta noite há mortos’”.

Um relato ainda mais duro fez o jornalista José Queirós, na altura no Expresso, ao garantir que os polícias “carregaram indiscriminadamente, por várias vezes, sobre a população. Dispararam à queima-roupa, feriram e mataram”. O seu relato vai ao encontro do parecer da PGR ao garantir que os agentes “agiram com recurso a meios inteiramente desproporcionados precisamente quando a sua intervenção, desde o início dispensável, se tornava absolutamente injustificada”.

“As manifestações rivais decorriam separadas a larga distância, o menor número [UGT] encontrava-se devidamente protegido, não se registavam confrontos entre cidadãos, começava a provar-se que havia espaço para todos. Aquilo a que assisti, nessa madrugada de 30 para 1 de maio, ano de 1982, foi uma vasta exibição de violência repressiva e gratuita”, salientou Queirós, referindo que o “tom geral” da operação policial foi de “desprezo pelo direito de cada um à integridade física e à vida”.

Surpreendido pela carga policial ao sair do cinema, Pedro Vieira corre em direção à Avenida Afonso Henriques. É baleado nas costas. Terá sido, presumivelmente, atingido por uma bala em ricochete vinda de distância considerável. E Mário Emílio, a outra vítima mortal, foi apanhado numa carga e, devido ao seu estado convalescente, terá optado por ficar à espera ao pé da polícia, por não poder fugir a correr. Foi então que um polícia que por si passava lhe disparou à cabeça por duas vezes, de acordo com o relatório da PGR, que qualificou a sua morte de homicídio voluntário tipificado na lei.

No final, duas pessoas foram assassinadas e dezenas baleadas, com outras tantas a terem ficado feridas na sequência das sucessivas cargas policiais. Foram abertas várias investigações sobre os acontecimentos, mas ainda hoje, 40 anos depois desse 1º de Maio, não conhecemos qualquer desenvolvimento penal.

O FMI entrou pela segunda vez em Portugal em agosto de 1983 e a repressão contra o movimento dos trabalhadores continuou. Direitos conquistados na Revolução foram revertidos.

Horas depois dos acontecimentos, as duas comemorações decorrem na Avenida dos Aliados para celebrar o 1º de Maio. A UGT não suspende o seu programa de variedades apesar do sangue derramado e apenas congrega umas centenas de pessoas. Por seu lado, a CGTP suspende as atividades lúdicas e organiza um comício na praça durante a tarde. A PSP do Porto cria um cordão entre as manifestações, sem que se registassem novos incidentes.

No dia 4 de maio, a CGTP convoca uma greve geral para uma semana depois. No dia 5, dezenas de milhar de pessoas participam nos funerais dos falecidos, transformando o cortejo fúnebre numa das maiores manifestações de sempre na cidade do Porto. O então secretário-geral da UGT chegou inclusive a caracterizá-la como “passeata com caixões”. A greve geral de luto de 11 de maio de 1982 voltou a ser um momento alto de combatividade do movimento sindical.

As consequências desse 1º de Maio pairaram sobre os meses finais do governo AD de Pinto Balsemão. O inquérito da PGR não foi divulgado, mas a CGTP revelou as suas conclusões a 20 de abril de 1983, depois de várias fugas de informação para a imprensa. Cinco dias depois, a 25 de abril, a direita, que concorreu separada às legislativas, perdeu as eleições para o Partido Socialista de Mário Soares. Entrou-se num novo ciclo político ainda mais duro para os direitos dos trabalhadores.

O 1º de Maio de 1982 não é um acontecimento assim tão invulgar na história da democracia portuguesa. Já antes tinham morrido cidadãos às mãos da polícia em Custóias e em Lisboa.

Em 1979, durante o governo de Maria de Lurdes Pintassilgo, a GNR abateu dois trabalhadores agrícolas numa desocupação de terras em Montemor-o-Novo. Fê-lo ao abrigo da Lei de Bases da Reforma Agrária (ou “Lei Barreto”, assim conhecida por António Barreto a ter promovido quando foi ministro da Agricultura em 1977 e 1978) e os trabalhadores recusavam-se a entregar as terras ocupadas nos anos anteriores.

A GNR forçou a mão e os trabalhadores resistiram, com os guardas a dispararem. António Maria do Pomar Casquinha, 17 anos, e João Geraldo (ou “Caravela”), de 57 anos, ambos trabalhadores rurais, foram atingidos no peito com balas de G3. Uma terceira pessoa, Florival António Carvalho, de 23 anos, foi baleada na perna e transferida para o Hospital de Évora, sobrevivendo.

Mais tarde, em janeiro de 1983, a GNR voltou a matar em Valongo: um trabalhador da CIFA, uma empresa química em crise. A situação económica degradava-se, a inflação não parava de aumentar e milhares de empresas não pagavam os salários aos seus trabalhadores. Foi o caso da CIFA, onde os seus 1700 trabalhadores não recebiam há três meses.

Revoltados, algumas centenas de trabalhadores entraram em greve e impediram que o petroleiro Doris fosse entregue ao armador. Só o fariam quando os seus salários fossem pagos e montaram uma barricada na estrada nacional que liga Vila Real ao Porto para chamar a atenção, escreveu o correspondente do espanhol El País a 28 de janeiro de 1983.

Mas a GNR não estava virada para o diálogo e disparou, atingindo um “trabalhador de 52 anos, pai de seis filhos, dentro de um autocarro de passageiros estacionado nas proximidades”. “O condutor também foi agredido por membros da Guarda Nacional Republicana, a quem se dirigia para salientar que havia um ferimento grave no interior do seu veículo”, lê-se na notícia da altura.

O Fundo Monetário Internacional foi chamado a entrar novamente em Portugal pouco depois, em agosto de 1983, e a repressão contra o movimento dos trabalhadores continuou. Direitos conquistados na Revolução foram revertidos e as palavras de ordem contra a austeridade entraram nas manifestações do 1º de Maio que se seguiram.

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