«Para os trabalhadores e para as camadas mais desfavorecidas, o Orçamento para 2022 será um mau Orçamento. Apesar de uma inflação superior a 5% e que não terá tendência para diminuir, bem pelo contrário, o PS manteve a recusa de aumentar salários e pensões de modo a evitar a redução do poder de compra que essa inflação necessariamente implica. Ao mesmo tempo, recusou a adopção de medidas para controlar e fixar preços nos alimentos, nos combustíveis, na electricidade, e no gás, como o PCP propôs, deixando intocáveis a especulação e os lucros dos grupos económicos.» Fica claro para o serviço de quem o PS manobrou pela maioria absoluta.
António Filipe * | opinião
Se era preciso alguma prova de que a reposição de direitos e os avanços sociais que se verificaram entre 2015 e 2019 não decorreram da vontade do PS, mas das cedências que teve de fazer à sua esquerda, e designadamente ao PCP, para poder formar Governo, essa prova aí está: o Orçamento do Estado para 2022.
Se as eleições de 2015 marcaram um virar de página após o histórico pronunciamento de Jerónimo de Sousa de que o PS só não formaria governo se não quisesse, as eleições de janeiro de 2022 foram um virar de página em sentido contrário.
As perspetivas de reposição de direitos e rendimentos roubados durante os anos dos PEC de Sócrates e da troika de Passos e Portas, ou a conquista de avanços sociais como o embaratecimento dos transportes públicos, a gratuitidade dos manuais escolares e das creches, os aumentos anuais das reformas mais baixas e muitas outras medidas de sentido positivo que seria fastidioso enumerar, não são hoje mais do que uma grata recordação de um passado recente. Por muito que o PS continue a afirmar a sua fidelidade ao espírito de 2015, o Orçamento do Estado para 2022 está mais preocupado com as “contas certas” do que com a perda do poder de compra dos trabalhadores, reformados e pensionistas.
Se em 2015 se abriu uma perspetiva de futuro, 2022 faz recear um regresso ao passado.
Ao contrário do que o discurso de direita apregoava, as reuniões entre o PS e o PCP no âmbito da análise comum das propostas de Orçamento do Estado após 2015 nunca foram exercícios teatrais, ou meras encenações de desfecho anunciado. Foram reuniões demoradas, em muitos casos minuciosas, onde se procurava chegar a soluções que tornassem possível para o PCP aprovar os Orçamentos do Estado propostos pelo PS que, sozinho, não estava em condições de impor essa aprovação. Muitas medidas foram aprovadas nesses anos por proposta do PCP, vencendo em muitos casos a oposição inicial e a resistência do PS. Nunca o PCP determinou a sua posição por razões táticas ou por outras considerações que não fossem o conteúdo dos Orçamentos a aprovar e manteve sempre um prudente distanciamento político da governação do PS, nunca deixando de salientar a insuficiência e as limitações das propostas aceites não obstante o seu carácter positivo.
A partir de 2019 as coisas mudaram. O PS recolheu os louros políticos do melhoramento da situação económica e social de muitos milhares de portugueses e ficou mais perto da maioria absoluta que tanto desejava para poder levar por diante “sem empecilhos” (foi a expressão usada por um deputado do PS) as políticas que desejava.
A afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa de que a rejeição do Orçamento implicaria a convocação de eleições foi o tiro de partida para a corrida do PS rumo à maioria absoluta. A partir daí, deixou de haver negociação possível do conteúdo do Orçamento. A estratégia do PS teria de passar pela imposição de uma proposta de Orçamento que se baseasse num discurso de esquerda (o “mais à esquerda de sempre”) mas que pelo seu conteúdo marcado pela falta de resposta aos mais graves problemas com que a país se confronta, fosse inaceitável para o PCP que, só por razões tacticistas e perdendo a face, o poderia viabilizar.
É um facto que a estratégia do PS funcionou e, com a ajuda de outros fatores que não importa hoje desenvolver, obteve a tão almejada maioria absoluta e anunciou que apresentaria exatamente a proposta de Orçamento que foi rejeitada em novembro passado, o tal Orçamento “mais à esquerda de sempre”.
Se haveria alguma expetativa de que o PS seria fiel à sua promessa de manter o diálogo com os partidos à sua esquerda, a discussão do OE para 2022 gorou-a totalmente. As mais de 300 propostas do PCP foram, praticamente na totalidade, rejeitadas pela maioria absoluta do PS, acompanhada nas questões essenciais, pela direita mais à direita.
A tão famosa abertura ao diálogo, traduziu-se afinal de contas pela aprovação de umas tantas propostas, muitas delas inócuas, do PAN e do LIVRE, como prémio pela sua abstenção, e de algumas propostas da IL, talvez como forma de aprovar propostas da direita apoucando um PSD sem liderança.
Para os trabalhadores e para as camadas mais desfavorecidas, o Orçamento para 2022 será um mau Orçamento. Apesar de uma inflação superior a 5% e que não terá tendência para diminuir, bem pelo contrário, o PS manteve a recusa de aumentar salários e pensões de modo a evitar a redução do poder de compra que essa inflação necessariamente implica. Com o falso argumento de que aumentar salários e pensões conduziria a mais inflação, a consequência desta opção é que serão os trabalhadores, os pensionistas, e os micro e pequenos empresários a pagar a crise com a quebra dos seus rendimentos reais. Ao mesmo tempo, o PS recusou a adoção de medidas para controlar e fixar preços nos alimentos, nos combustíveis, na eletricidade, e no gás, como o PCP propôs, deixando intocáveis a especulação e os lucros dos grupos económicos.
Para além disso, este será um mau Orçamento para os serviços públicos em geral e para o Serviço Nacional de Saúde em particular, num tempo em que pandemia está longe de ter sido contida. O PS recusou a implementação do regime de dedicação exclusiva e o alargamento da atribuição de incentivos para a fixação de profissionais de saúde em zonas carenciadas, como o PCP propôs, o que responsabiliza o Governo por mais de 1,3 milhões de portugueses sem médico de família, pelo adiamento de consultas, cirurgias, tratamentos e exames, pela continuada sangria de profissionais de saúde do SNS e pela transferência de recursos públicos para o negócio da doença de que vivem grupos privados, quando deveriam ser canalizados para investimento no SNS.
Decididamente, este Orçamento não é o mais à esquerda de sempre. Podemos mesmo dizer sem medo de errar, que é o Orçamento mais à direita desde 2015.
Fonte: https://expresso.pt/opiniao/2022-05-30-O-Orcamento-era-de-esquerda-nao-era–3fc98bf8?fbclid=IwAR0VX3Efz6NtAriGX4xgRp3E1AC6hGDWkycZiSxymaFz2XYNY2yl788jVTU
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