quinta-feira, 9 de junho de 2022

Política carcomida dos 1% | Seria o sorteio mais democrático que o voto?

#Publicado em português do Brasil

Iniciativas de minipúblicos – ou sorteios cívicos – proliferam pelo mundo. Oferecem alternativas reais para reinventar política carcomida pelo 0,1%: com diversidade e inteligência coletiva, resgatar poder popular e legitimidade de decisões

Yves Sintomer e Nabila Abbas | Outras Palavras | Tradução: Maurício Ayer

O sorteio como forma de seleção política voltou à cena promovido por diferentes imaginários. No contexto da crise dos partidos políticos e das formas tradicionais de representação, o sorteio e os minipúblicos aparecem em muitos países do Norte global como formas alternativas de garantir a presença do cidadão comum contra o poder das elites. Pelo menos é nisso que se acredita a partir de posições favoráveis ​​à democracia deliberativa, à democracia antipolítica e à democracia radical.

Introdução

Na França, a Convenção dos Cidadãos pelo Clima (CCC), que ocorreu entre 2019 e 2020, marcou um grande ponto de virada para as assembleias de cidadãos e outros “minipúblicos” selecionados aleatoriamente. Embora o sorteio por muito tempo tenha sido uma característica da história republicana e democrática, parecia que os atores políticos contemporâneos haviam esquecido completamente os usos potenciais desse mecanismo.[1] No entanto, as bem sucedidas deliberações realizadas sob a égide do CCC – apesar do transtorno causado pela pandemia da covid-19 – convenceram muitos atores e observadores de que a seleção por sorteio talvez seja um recurso para enfrentar a crise de representação política. Embora as propostas da CCC tenham sido amplamente desacreditadas pelos poderes Executivo e Legislativo, isso não aconteceu sem fortes discussões.

Essa mudança reflete uma tendência transnacional, pelo menos no Norte global. Desde 2020, dezenas de assembleias de cidadãos sobre as alterações climáticas têm sido realizadas na Europa, em níveis local, regional e nacional. Ao longo da última década, centenas – possivelmente milhares – de minipúblicos foram organizados para lidar com uma ampla variedade de questões espinhosas. Em 2021-2022, a União Europeia convocou uma Conferência sobre o Futuro da Europa que incluía deputados nacionais, eurodeputados e painéis de cidadãos selecionados aleatoriamente. 

Na América Latina, debatem-se sobre essa possível inovação democrática, mas sem ensejar experimentos significativos. Por exemplo, no México, a seleção aleatória tem sido usada para eleger candidatos eleitorais do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), a agremiação do presidente Andrés Manuel López Obrador, a partir de uma lista pequena elaborada por membros do partido, que contribuiu para a promoção de pessoas da classe trabalhadora para cargos eletivos e para o sucesso eleitoral do partido no poder [2]. 

O significado político da reintrodução do sorteio para criar corpos políticos coletivos não é fácil de entender. Os muitos atores que o apoiam vêm de uma formação muito variada. Na França, o mecanismo de sorteio foi sugerido como uma proposta viável pelo movimento dos gilets jaunes (coletes amarelos), que desde outubro de 2018 organiza uma oposição violenta ao presidente Emmanuel Macron. Ao final, o presidente adotou o mecanismo para organizar o CCC. Por sua vez, o Extinction Rebellion, movimento ambientalista global, incluiu as assembleias cidadãs sobre mudanças climáticas como uma de suas principais demandas. 

Nossa convicção é de que algo pode ser aprendido sobre os atrativos do sorteio construindo uma tipologia dos imaginários que atualmente competem para definir seu lugar nas democracias modernas. O conceito de “imaginários” foi elaborado por filósofos políticos na tentativa de compreender como as projeções mentais contribuem para a mudança na sociedade. Os imaginários são projeções de horizontes políticos desejáveis ​​ou preocupantes. Consistem em coleções de ideias compartilhadas, histórias, lendas, imagens e símbolos. O conceito é especialmente útil em nosso contexto atual, uma vez que os defensores do sorteio muitas vezes imaginam sistemas políticos que têm pouca ancoragem na realidade e ao fim e ao cabo parecem utópicos por sua própria natureza. Portanto, é essencial observar como esses atores imaginam o papel que o sorteio desempenharia na política de sua sociedade ideal. 

A reconstrução de um imaginário lida necessariamente com tipos ideais. Nossa tese é que os vários argumentos a favor da expansão do sorteio como forma de seleção política no Norte global surgiram ao lado de pelo menos três imaginários conflitantes: o da democracia deliberativa, o da democracia antipolítica e o da democracia radical. Esses tipos ideais não são específicos de uma ou outra política ou região, embora sua difusão varie consideravelmente de uma para outra e façam sentido, em grande medida, em comparação com os demais. Como todos os tipos ideais, esses relacionados ao sorteio raramente foram claramente expressos ou delineados em detalhes pelos atores que os mobilizam. Nós reconstruímos pragmaticamente esses imaginários, movendo-nos entre a conceituação e as próprias declarações explícitas dos atores, e em seguida testando sua relevância em conferências acadêmicas e em conversas com as parte interessadas.

Um novo horizonte de expectativa

O valor heurístico do conceito de imaginário vem crescendo nas últimas décadas. Em grande medida, a era das ideologias terminou na década de 1990 junto com o “curto século 20”. As ideologias não são mais referências tão importantes para os atores políticos quanto antes e são de pouco interesse para os observadores que tentam entender por que os atores políticos se comportam da maneira que o fazem.

Para compreender o aparecimento mais ou menos simultâneo de três imaginários que colocam o sorteio como eixo da dinâmica democrática, devemos nos basear no duplo conceito de «espaço de experiência/horizonte de expectativa» desenvolvido pelo historiador Reinhart Koselleck [3]. 

Segundo Koselleck, todas as comunidades humanas têm um espaço de experiência vivida (no qual as coisas do passado são lembradas ou permanecem presentes) e horizontes de expectativa (que são orientados para o futuro). Qualquer tipo de ação estará intimamente ligada a ambos os elementos. Quando ocorrem eventos ou experiências que alteram profundamente o espaço de vivência de uma determinada população, seus horizontes de expectativa também se abrem e, assim, permitem que novos imaginários surjam. Alguns fatos e experiências, como movimentos sociais ou a implantação de novos mecanismos institucionais, podem gerar o deslocamento de imaginários antes considerados marginais, indesejáveis ​​ou irrealistas e trazê-los para o centro da cena para propor alternativas genuínas. Embora os imaginários estejam inscritos em seu horizonte de expectativa juntamente com ideologias, teorias da história ou da sociedade e utopias, os atores geralmente não oferecem uma imagem global, coerente e unificada, mas sim projeções fragmentadas, que incluem dimensões afetivas e simbólicas. 

Com base nisso, o conceito de imaginário nos fornece uma estrutura para analisar a repentina popularidade do sorteio e os vários investimentos cristalizados em torno dele. Após as primeiras décadas do século XIX, o tema desapareceu quase por completo do cenário político do Norte global. Os novos imaginários ligados ao Iluminismo, à soberania popular, ao progresso e ao governo representativo não deixaram espaço para o sorteio. Durante o resto dos séculos XIX e XX, nos imaginários desenvolvidos pelos diferentes movimentos – republicano, liberal, socialista, comunista, fascista, populista e nacionalista – o sorteio esteve totalmente ausente como mecanismo de seleção política, com uma exceção na Itália a que nos referiremos mais adiante. 

As primeiras agitações a gerar sinais de mudança se deveram aos eventos ocorridos em 1968 e na década seguinte. O sorteio era mencionado aqui e ali por indivíduos isolados como Robert Dahl, Peter Dienel e Ned Crosby, em um cenário em que a insatisfação com as democracias capitalistas permaneceu forte, mas as perspectivas revolucionárias diminuíram. Quando, nas décadas de 1980 e 1990, o cientista político James Fishkin conectou o sorteio à teoria da democracia deliberativa, a ideia começou a ser considerada mais seriamente no mundo acadêmico de língua inglesa. Em alguns países, com base no projeto elaborado pelos teóricos do sorteio, foi produzida uma primeira onda de experimentos altamente controlados. No entanto, a ideia dos minipúblicos selecionados aleatoriamente ainda estava confinada a alguns poucos âmbitos.

No início do novo milênio, o Norte global foi abalado por grandes transformações. Mal se passara uma década desde o final do “curto século 20” e já a ideia de que havíamos chegado ao “fim da história”, possibilitada pelo triunfo da democracia liberal em (quase) todos os lugares[4], parecia irremediavelmente obsoleta. As promessas não cumpridas das democracias ocidentais, a maior desconfiança dos partidos políticos e do governo representativo em sentido mais amplo, as mudanças geopolíticas trazidas pela globalização e as consequências das mudanças climáticas modificaram significativamente o espaço de vivência dos cidadãos: este ponto de inflexão no espaço da experiência provavelmente possa ser comparado ao gerado pela Revolução Francesa[5]. As instituições e imaginários característicos do século passado parecem cada vez mais ultrapassados, com horizontes de expectativa que não incluem mais o triunfo do governo representativo em escala mundial. Isso constitui terreno fértil para o surgimento de novos imaginários. Assim, os populismos de esquerda e de direita crescem, as ideias libertárias renascem e a influência de esquemas focados em questões climáticas aumenta ainda mais. Ao mesmo tempo, o mecanismo do sorteio foi incorporado a toda uma série de imaginários emergentes.

Dentro e fora do mundo francófono, o livro de Bernard Manin The Principles of Representative Government (publicado em sua versão original em francês em 1995 e depois em espanhol em 1998) ofereceu um contraste entre eleição e sorteio de uma perspectiva basicamente analítica, sem intenção de defender a variante aleatória. O governo representativo foi apresentado como um modelo misto com excelente resiliência apesar de tantas ondas de mudança. No entanto, nos anos 2000, os imaginários políticos desenvolvidos a partir desse trabalho teórico conflitaram paradoxalmente com seu propósito quando decidiram interpretar a obra de Manin como um argumento a favor do sorteio [6]. Esses imaginários foram cultivados, sobretudo, em áreas de protesto e entre alguns poucos políticos. 

No mundo anglo-americano, uma segunda onda de ensaios híbridos levados além das intenções dos teóricos do modelo permitiu que os executores práticos transcendessem os nichos utópicos ou acadêmicos em que o assunto foi investigado. A atratividade do sorteio se espalhou pelo Norte global, e esse mecanismo passou a ser cada vez mais visto como uma inovação democrática com o poder de transformar a política. O sucesso internacional do livro Against Elections, de David Van Reybrouck [7], não apenas atesta essa mudança, mas também ajuda a reafirmá-la. A proclamada – embora altamente discutível – ligação com Atenas [8] alimenta essa dinâmica: o sorteio teve um papel central na cidade grega que inventou a democracia. Nesse sentido, o sorteio costuma ser visto como um retorno às origens da democracia, agora no contexto do século XXI. Em geral, não é fácil encontrar uma correspondência direta entre os três imaginários de que tratamos aqui e as posições sociais daqueles que os adotam na prática, embora isso não signifique que haja uma distribuição aleatória em termos sociológicos. 

1. O imaginário da democracia deliberativa foi desenvolvido pela primeira vez no mundo acadêmico de língua inglesa na década de 1980. Nesse caso, foi criado um modelo teórico, que foi posteriormente combinado com práticas tradicionais de educação popular e adotado pelos reformistas no poder, que acabou levando a um imaginário que poderia ser compartilhado mais amplamente. No início da década de 2020, seus principais impulsos vêm de setores acadêmicos, políticos e consultivos que projetam e moderam minipúblicos.

2. O imaginário da democracia antipolítica deriva de um termo que se popularizou no Leste Europeu com o trabalho de George Konrad [9] e é amplamente utilizado na Itália. O verbete da Wikipedia italiana para “antipolítica” explica que “o termo define a posição daqueles que se opõem à política (que eles consideram uma mera prática de poder) e, por extensão, partidos políticos e funcionários eleitos, que, de acordo com esse imaginário coletivo, servem apenas aos seus interesses pessoais e não ao bem comum” [10]. Os campeões da antipolítica pedem que as pessoas ganhem poder eliminando as elites políticas e, finalmente, o conflito. Esse imaginário foi desenvolvido fora da academia e não possui credenciais teóricas de alto calibre. Difunde-se, sobretudo, entre movimentos sociais, blogueiros antissistema e círculos econômicos (especialmente na área de novas tecnologias), que tentam se posicionar acima da querela política e da tradicional divisão esquerda-direita, e também tem sido adotado por vários teóricos utópicos extra-acadêmicos. 

3. No imaginário da democracia radical, a loteria é vista como uma estratégia para caminhar em direção a ela. Embora esse imaginário remonte pelo menos aos anos 1960, seus ativistas e teóricos inicialmente e até os anos 2000 desconfiaram de um instrumento imposto de cima para baixo e destinado a fomentar o consenso. O imaginário da democracia radical adotou o sorteio quando a experiência começou a mostrar que um número cada vez maior de movimentos de cidadãos defendia os mecanismos do acaso na política e que, se combinados com a democracia direta, os minipúblicos podem promover mudanças sociais e econômicas reais, principalmente nas modalidades de produção e consumo. Assim como o da antipolítica, o imaginário da democracia radical conquistou apoio de movimentos sociais e blogueiros antiestablishment, embora a maioria de seus apoiadores venha ou pertença a movimentos políticos e ambientais de esquerda. Esse imaginário também está presente entre aqueles que na prática alcançam posições de poder graças à atuação em movimentos sociais e organizações comunitárias. É popular entre os teóricos da democracia radical que foram formados na tradição do movimento trabalhista, mas percebem a importância da deliberação democrática. Sua ação ajudou a legitimar a ideia de uma democracia radical baseada em sorteio.

Argumentos comuns a favor do sorteio

De um modo geral, esses três imaginários compartilham várias ideias centrais ligadas ao valor do sorteio, o que explica por que todos apoiam a mesma ideia e, para o restante, parecem diametralmente opostos entre si. Os três imaginários concordam no valor da imparcialidade ligada ao sorteio. Isso é algo que é particularmente destacado por aqueles que defendem uma democracia deliberativa ou antipolítica, mas em menor medida também faz parte do argumento utilizado pelos promotores da variante radical. Numa altura em que os partidos políticos perderam a sua base de massas, em que os políticos são motivados por interesses particulares na perspectiva da grande maioria dos cidadãos e em que o sistema eleitoral parece ter sido reduzido a um jogo de lobbies e facções, o sorteio pode ser visto como um mecanismo imparcial. Seu potencial estaria na constituição de minipúblicos formados por indivíduos sem carreira política ou filiações setoriais. Isso limita o alcance e o impacto das lutas pelo poder, permitindo que esse novo tipo de representantes trabalhe pelo bem comum.

Afirma-se também a partir dos três imaginários que o sorteio implica a igualdade radical de todas as partes envolvidas. O mecanismo em questão permite a seleção de pessoas comuns, especialmente de grupos subalternos, que não teriam chance no sistema eleitoral tradicional, monopolizado por políticos profissionais nascidos nas classes dominantes. A suposta tradição originária de Atenas alimenta esse imaginário. Baseando-se na famosa frase de Aristóteles de que o sorteio era democrático e a eleição, aristocrática (conceito posteriormente retomado por outros pensadores muito citados como Montesquieu, Rousseau e Jacques Rancière [11]), a maioria dos defensores do sorteio acredita que a ferramenta é intrinsecamente igualitária e, portanto, democrática. A força da ideia praticamente não se viu manchada pelas lições da história, mesmo que a história mostre que o sorteio foi frequentemente praticado em círculos pequenos e fechados para distribuir o poder entre as elites.

O sorteio recoloca em pauta o antigo ideal de representação descritiva [12]. Como vimos, sua prática no mundo atual contrasta fortemente com os usos históricos, que não associavam o processo a esse tipo de representação. Nessa perspectiva, o sorteio possibilita um tipo de representação diferente do que as eleições promovem. Estas tendem a selecionar indivíduos recrutados nas classes mais altas da sociedade, e isso tem contribuído muito para a atual crise de legitimidade do governo representativo, porque os partidos políticos não parecem mais representar as pessoas das classes mais baixas. Quando aliado à representação descritiva, o sorteio possibilitaria incluir os valores e experiências vividas do cidadão comum em toda a sua diversidade. Portanto, seria um caminho promissor para revitalizar democracias que estão em crise. Essa forma específica de representação vai além da dicotomia participação-representação: minipúblicos selecionados aleatoriamente não são sinônimos de democracia direta.

Uma dedução aparentemente lógica decorre da ideia de amostra representativa: os minipúblicos encarnam uma democracia epistêmica, pois permitem um debate com diversos pontos de vista em circunstâncias quase ideais [13]. Esse argumento é compartilhado pela maioria dos defensores do sorteio, embora alguns do lado antipolítico estejam mais relutantes em adotá-lo. Ao contrário dos usos históricos do sorteio (como nos tribunais da antiga Atenas ou nas assembleias de voto florentinas do final do século XIII a meados do século XV), os minipúblicos selecionados aleatoriamente hoje são sempre acompanhados por medidas destinadas a garantir alta qualidade deliberativa: informação a partir de diferentes perspectivas é disponibilizada, pontos de vista conflitantes são ouvidos, assembleias gerais se alternam com pequenos grupos de discussão e há moderação que incentiva todos a falar e ouvir uns aos outros. Dessa forma, os cidadãos comuns dos minipúblicos contemporâneos constituem exemplo ilustrativo do “saber das multidões” e são capazes de desenvolver uma deliberação cuja qualidade costuma ser superior à das assembleias eleitas [14]. No entanto, para além dos argumentos compartilhados, os três imaginários divergem e, em última análise, geram visões opostas da sociedade e da política, com diferentes concepções sobre o papel que o sorteio deve desempenhar nesta última.

Democracia deliberativa

A primeira lógica de igualdade democrática analisada na seção anterior, ou seja, o uso de minipúblicos para obter amostras aleatórias, representativas e imparciais da população, é fundamental para o imaginário da democracia deliberativa. A principal ideia subjacente é que a legitimidade democrática de qualquer decisão será reforçada se essa decisão for alcançada através de uma deliberação de alta qualidade, informada, transparente e inclusiva. Este processo deve ser baseado no respeito mútuo e deve permitir que todos os participantes tenham igual influência (o que implica um quadro livre de assimetrias duradouras em termos de poder ou dominação). A opinião adotada ou decisão tomada após este tipo de deliberação é claramente melhor do que uma adotada ou tomada antes da deliberação (ou sem ela). Isso implica que um sorteio sem deliberação seria de pouco interesse. 

Como vimos, os primeiros teóricos da democracia deliberativa – com Jürgen Habermas e John Rawls no comando – não estavam nem um pouco interessados ​​no sorteio. Mas logo essa mesma corrente, orientada a favor de minipúblicos selecionados aleatoriamente, começou a apresentá-los de forma convincente como uma corporificação ideal da democracia epistêmica. Esses teóricos deliberativos popularizaram suas ideias entre um número crescente de autoridades políticas e dirigentes reformistas eleitos, que em muitos casos foram treinados em resolução cooperativa de conflitos e educação participativa para a cidadania. Em sua maioria, os reformadores que inicialmente estabeleceram minipúblicos deliberativos tinham ambições mais modestas do que os inventores do mecanismo. Eles geralmente os viam como um mero complemento do governo representativo. Como inúmeros discursos e textos indicaram, os minipúblicos foram concebidos para instituir uma opinião pública informada, enquanto a tomada de decisão como tal, em um estágio posterior, é deixada para os funcionários eleitos. Essa opinião informada aparece em oposição aos movimentos de protesto e à opinião pública mais ampla, expressa em eleições, em referendo ou nas ruas (a opinião pública é vista como facilmente manipulável, sujeita à influência das emoções e, em geral, desinformada). 

Contrapondo-se às críticas dos deliberativistas que permanecem fiéis à interpretação habermasiana inicial, voltada para a esfera pública mais ampla [15] e dado que o impacto da onda inicial de minipúblicos deliberativos ainda era bastante limitado, na década de 2010 a democracia deliberativa adotou uma “virada sistêmica” e passou a insistir na necessidade de desenvolver múltiplos espaços conectados, entre os quais os minipúblicos são apenas uma das materializações [16]. Se combinada com uma visão mais realista da deliberação, que implica negociar dentro de um quadro processual equitativo (ao invés de discutir e concordar com posições opostas) [17], e uma compreensão funcional dos respectivos sistemas (baseada na divisão de trabalho entre os diferentes espaços) , essa mudança ajuda a alinhar a teoria deliberativa com o trabalho concreto daqueles que aplicam as reformas, exercem a prática e realizam os conselhos, tarefas essenciais para organizar os minipúblicos. 

Por meio da hibridização, a teoria da democracia deliberativa gerou um imaginário cada vez mais poderoso. Isso é ilustrado por um relatório publicado em 2020 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que pede o estabelecimento de minipúblicos selecionados aleatoriamente e argumenta que “se institucionalizados, eles têm o potencial de ajudar a resolver algumas das principais causas da insatisfação com a democracia” [18]. Esse imaginário continua marcado por suas raízes e não estimula a mobilização popular. Acima de tudo, refere-se àqueles indivíduos que estão em posição de poder; sugere que essas pessoas devem reinterpretar os valores em que se baseia a legitimidade democrática e, portanto, devem reformar as instituições existentes. A sociedade moderna é vista como uma estrutura plana e livre de relações de poder (esse conceito quase nunca é utilizado), com desigualdades limitadas, mas com pluralidade de interesses e valores. 

As democracias liberais – o ponto de referência desse imaginário – devem representar esse pluralismo dentro de um contexto adequadamente regulado e pacífico, que permita negociações estruturadas entre diferentes grupos de interesse e um sistema deliberativo abrangente. No entanto, para não serem destruídas por uma crise de legitimidade, no século XXI consideram que as democracias devem se adaptar. Essa mudança deve ser gradual, e a deliberação pública é chamada a desempenhar um papel central. É necessário desenvolver um sistema deliberativo que abarque todos os tipos de negociação e canalize emoções políticas, preservando a pluralidade de interesses e valores, incentivando a resolução cooperativa de conflitos e promovendo a justiça social. O imaginário da democracia deliberativa assume uma visão ambivalente dos partidos políticos: por um lado, expressam a pluralidade de interesses e valores mas, por outro, a sua evolução atual aumenta o risco de serem reduzidos a meras facções dedicadas exclusivamente a defender interesses específicos. Nesse sentido, como parte de um projeto maior de construção de um sistema deliberativo, minipúblicos selecionados aleatoriamente podem ajudar a melhorar o governo representativo. É uma das mais plenas materializações institucionais da democracia e do esquema racional de consenso e desacordo. Esse imaginário pretende se opor ao populismo.

Por fim, cabe destacar que as experiências desenvolvidas ao longo da década de 2010 deram origem à evolução significativa de um aspecto do imaginário da democracia deliberativa. Até então, tanto entre aqueles que exerciam suas funções na prática quanto entre muitos dos teóricos, os minipúblicos encarnavam uma espécie de elitismo deliberativo: a noção de democracia direta gerava grande ceticismo, pois muitos acreditavam que o cidadão comum não poderia deliberar racionalmente, a menos que as condições fossem ideais. Os minipúblicos foram concebidos em primeiro lugar como complementos consultivos da democracia representativa. Devido à maior crise de representação, por um lado, e às experiências democráticas bastante bem-sucedidas que combinam minipúblicos e referendos, por outro, esse imaginário foi forçado a conceber uma transformação mais ampla, que integre o potencial empoderamento dos minipúblicos mais estreitamente ligados aos processos decisórios ou mesmo institucionalizados (como é o caso do Conselho de Cidadãos permanente, estabelecido na Comunidade Germanófona da Bélgica, das comissões deliberativas mistas do Parlamento da região de Bruxelas ou da Assembleia Cidadã de Paris). O relatório da OCDE e o discurso do presidente Emmanuel Macron sobre o advento de uma nova “república de deliberação permanente” [19] são dois exemplos paradigmáticos desse imaginário.

Democracia antipolítica

O imaginário da democracia antipolítica deriva de uma afinidade eletiva com o fundamento da igualdade democrática: a existência de um senso comum compartilhado por todos os cidadãos. Esse imaginário é anterior ao associado à democracia deliberativa, pois foi adotado pelo primeiro partido europeu a defender o retorno do sorteio à política: o Fronte dell’Uomo Qualunque (Frente do Homem Comum), criado em 1945 na Itália por Guglielmo Giannini. Nas eleições de 1946 para a Assembleia Constituinte, o partido conquistou mais de 5% dos votos, tornando-se brevemente o quinto partido mais popular do país. A Frente ajudou a popularizar dois termos que mais tarde continuaram a ser usados ​​amplamente em sentido pejorativo: qualunquismo, que representa uma atitude de indiferença e desdém pela política e pelas questões sociais; e antipolítica, o que implica uma rejeição radical dos partidos e a ideia de que é preciso ir além da política para estabelecer um sistema que sirva ao interesse comum [20]. 

No imaginário de Giannini, a política partidária era simplesmente uma “farsa” e não havia grandes diferenças entre democracias eleitorais e suas contrapartes autoritárias. As massas humilhadas foram incitadas a se libertarem da “tirania” dos políticos. Já na lógica de Henri de Saint-Simon, uma vez derrubada essa pequena oligarquia, a sociedade moderna poderia “substituir o governo do povo pela administração das coisas” [21]. Giannini acrescentou que a única coisa necessária para controlar esses administradores era um “contador” coletivo; imaginava a presença de “alguns representantes da comunidade” selecionados ao acaso e uma rápida alternância de cargos, pois qualquer adulto de inteligência mediana seria “suficientemente competente para a tarefa” [22]. Esse imaginário foi posteriormente utilizado por Peter Dienel para se pronunciar a favor das células de planejamento; e tornou-se muito popular nos anos 2000, quando os horizontes de expectativa foram completamente rompidos. Foi adotado pelo Movimento 5 Estrelas na Itália. Entre a criação do partido em 2009 e sua ascensão a cargos governamentais em 2018, ele promoveu constantemente a aplicação do sorteio na política. 

O imaginário antipolítico e empresarial também floresceu em centenas de blogs antiestablishment sem filiação política (muitas vezes dirigidos por pessoas do mundo das novas tecnologias) e em muitos grupos utópicos extra-acadêmicos, que buscam ir além do tradicional direito-direita. divisão esquerda. Exemplos incluem o ambientalista Ernest Callenbach e o fundador da Mastercard, Michael Phillips, cujo importante trabalho colaborativo de 1985 é frequentemente citado em estudos de sorteios internacionais [23]. Além disso, a partir de sua sede na cidade de Exeter, a editora britânica Imprint Academic publicou um grande número de livros com propostas de modelos políticos baseados nesse mecanismo. 

Este imaginário também está no centro da iniciativa cidadã lançada pelo bilionário Adrian Gasser para tentar impor a seleção aleatória de juízes federais na Suíça [24]. Por sua vez, as assembleias de cidadãos selecionadas por sorteio na Islândia em 2009 e 2010 foram impulsionadas por um objetivo de governança semelhante, após a crise econômica e política que pôs o país de joelhos [25]. Ao contrário da democracia deliberativa, o que impulsiona este imaginário é uma rejeição radical dos partidos políticos e do governo representativo, ambos associados à corrupção, às lutas internas e às elites autoproclamadas que trabalham para defender seus interesses específicos. Assim, o imaginário antipolítico exige mudanças para derrubar completamente a oligarquia política (em algumas variantes mais à esquerda, a oligarquia capitalista também é alvo). 

Nesta perspectiva, enquanto nossa sociedade atual é estruturada por lutas de poder entre a população e as elites, as pessoas comuns não parecem estar divididas por tensões essenciais e por uma pluralidade de interesses e valores. Consequentemente, minipúblicos compostos de cidadãos comuns selecionados aleatoriamente podem se tornar a mais completa encarnação institucional da administração das coisas e de um consenso razoável. Alguns argumentam que os minipúblicos são de fato a única representação deste último objetivo, enquanto outros (como os “coletes amarelos”) acreditam que eles devem ser combinados com a democracia direta. Assim, a loteria e as iniciativas dos cidadãos poderiam fazer parte do mesmo imaginário: “Aqui o povo é visto de forma unificada, sem divisões partidárias, sem ideologias, como a soma de indivíduos livres cuja vontade pode ser verificada por um mecanismo simples, que lhes faz uma pergunta ou seleciona aleatoriamente dentre eles um certo número de pessoas para deliberar em seu nome” [26]. 

Esta atitude talvez explique porque o imaginário antipolítico é compartilhado por alguns cuja perspectiva é gerencial com outros que se referenciam em Rancière ou na tradição anarquista. Estes últimos desenvolveram uma teoria da democracia centrada no conflito político, mas para eles o conflito democrático não se joga em relações de dominação sociologicamente determinadas, mas sim na oposição entre aqueles (“a parte sem parte”) que não têm nenhum papel no uso do poder estatal e a oligarquia que o monopoliza. Sua referência ocasional à teoria de Rancière é paradoxal porque, embora concordem com ele que o sorteio é democrático e, como ele, recusam-se a analisar sociologicamente a divisão interna da população, eles imaginam uma sociedade futura livre de conflitos, uma conclusão profundamente estranha ao pensamento de Rancière. Assim, em círculos antipolíticos, alguns não são atraídos pela ideia de uma “democracia epistêmica” baseada em amostragem representativa. Eles argumentam, ao invés disso, que o sorteio, por sua natureza, garantiria a representação de todas as perspectivas populares, sem ter que recorrer à busca ativa de um microcosmo sociologicamente diverso. 

Como diz Étienne Chouard: “O sorteio impede intrínseca e automaticamente que os ricos monopolizem o poder e acumulem privilégios. Os ricos (os 1%) gostam naturalmente do sistema eleitoral. Os pobres (os 99%) devem defender o sorteio com a mesma naturalidade”. A rejeição da sociologia permite entender por que este imaginário é compartilhado tanto por abordagens empresariais quanto por outras ligadas a Rancière ou à tradição anarquista. Esta última visão desenvolve uma teoria da democracia centrada no conflito político e conceitualiza o sorteio como instituição democrática, que faz justiça às contingências da ordem política e enfatiza, sobretudo, a capacidade radicalmente igualitária de todos os cidadãos de governar. É um conflito que não faz parte das relações de dominação sociologicamente determinadas, mas se desdobra como uma contraposição entre aqueles “sem parte” no poder estatal e a oligarquia que monopoliza esse poder. Paradoxalmente, isto permite aos atores da antipolítica mobilizar a teoria de Rancière: eles compartilham sua hipótese sobre a qualidade democrática do sorteio e se recusam a fazer uma análise sociológica das divisões internas do povo, mas o fazem imaginando uma sociedade futura livre de conflitos, o que os leva a uma conclusão muito distante do pensamento de Rancière.

Democracia radical

A democracia radical é um imaginário antigo, mas só recentemente incluiu o sorteio. Tanto teóricos quanto ativistas foram inicialmente reticentes, dado que o mecanismo deveria ser implementado pela elite governante de cima para baixo e poderia favorecer o consenso em lugar da democracia agonística e a transformação radical. Em 2019, John Gastil e Erik Olin Wright publicaram um manifesto teórico coletivo, que explorou a ideia de um órgão legislativo selecionado aleatoriamente a partir de diferentes perspectivas [27]. Entretanto, vários expoentes da democracia radical, como Chantal Mouffe e Íñigo Errejón, permanecem céticos ou contrários ao sorteio [28]. 

O diagnóstico da situação atual dos proponentes da democracia radical é muito diferente daquele oferecido pelos promotores da democracia deliberativa: ela vê a democracia como operando em um mundo essencialmente injusto, que é governado por relações de poder entre, por um lado, as elites político-econômicas e, por outro, o povo (sobretudo, as classes subalternas) [29]. Em tais sociedades, seria uma mera ilusão acreditar em uma mudança provocada unicamente por deliberação democrática. Esta situação implica que a transformação simultânea da política e da sociedade deve ser considerada [30] e que a política tem uma dimensão agonística. Entretanto, ao contrário dos defensores da democracia antipolítica, os democratas radicais argumentam que a estratificação social e as clivagens políticas não podem ser reduzidas a uma simples oposição entre o 1% e o 99%. Contradições e agonismo não desaparecerão em uma sociedade mais justa, que continuará marcada por uma pluralidade de interesses e valores. A política, argumentam eles, nunca será reduzida à administração das coisas e manterá seu caráter “emocional e trágico”, como o cenário ateniense descrito por Cornelius Castoriadis [31]. A democratização da democracia constitui uma “verdadeira utopia” (Erik Olin Wright), um horizonte de transformação radical que, como tal, é inalcançável, mas para o qual, no entanto, devemos caminhar. Esta estratégia pressupõe “reformas revolucionárias” (André Gorz), sem acreditar que um único centro será capaz de integrar todos os atores ou que um único momento decisivo será capaz de transformar a sociedade atual em um mundo ideal.

A transformação radical pode ser concebida como um ecossistema, embora a própria ideia de um “sistema” esteja em desacordo com o imaginário da democracia deliberativa: em vez de se basear em uma divisão harmoniosa do trabalho, o ecossistema se desenvolve com um equilíbrio frágil, negociando constantemente tensões entre predador e presa, e onde a introdução de novos elementos em conflito com as condições existentes pode mudar a dinâmica geral. Surge o desafio de conectar instituições com movimentos de protesto radicais, ou momentos deliberativos com agonistas. Mesmo que seja irrealista pensar que as tensões inerentes serão resolvidas sem problemas, é necessário enfrentar este desafio [32]. Deste ponto de vista, é paradigmático que a Rebelião da Extinção defenda tanto a desobediência civil quanto as assembleias de cidadãos selecionadas por sorteio. O valor da imparcialidade geralmente atribuído aos minipúblicos deliberativos é assim relativizado: a urgência da transformação social e ecológica justifica os laços estabelecidos pelos ambientalistas radicais com os membros do CCC francês ou a politização produzida dentro dele. O século XX mostrou que é preciso ir além das tradições schmittianas ou leninistas, que ainda guiam muitos movimentos radicais de esquerda [33]. Instituições baseadas no ideal deliberativo e articuladas por trás da ferramenta do sorteio devem fazer parte da sociedade de amanhã. Parafraseando Marx, podemos dizer que estas instituições constituirão uma das formas políticas de emancipação social; e graças às experiências atualmente em curso, podemos também antecipar – pelo menos em parte – como elas serão configuradas.

O imaginário da democracia radical é ambivalente em relação aos partidos políticos e ao governo representativo. Por um lado, esses órgãos permitem que uma pluralidade de interesses e valores seja expressa, e alguns partidos de massa têm ajudado imensamente a canalizar a luta das classes trabalhadoras. Além disso, parece irrealista imaginar uma transformação radical sem coordenar os esforços dos minipúblicos, movimentos sociais e partidos políticos. Entretanto, os governos representativos tradicionais sempre tiveram uma forte corrente aristocrática, e os partidos de massa como organizadores das classes trabalhadoras em torno de uma agenda progressiva são, em grande parte, coisa do passado. Nesta perspectiva, o governo representativo está a caminho de se tornar o que foi durante o século XIX e o que é na maioria dos países do Sul global: um governo de, por e para as elites privilegiadas. Sem uma transformação radical das instituições existentes, as classes negligenciadas nunca serão capazes de desempenhar um papel central. É cada vez mais necessário considerar outros elementos do ecossistema democrático na tentativa de identificar novos caminhos a seguir. Neste sentido, a institucionalização de minipúblicos deliberativos é um objetivo estratégico importante porque dá voz aos cidadãos comuns, que geralmente são impedidos pelo sistema representativo e pela governança informal dominada por atores privados de exercer qualquer influência. Os minipúblicos constituem assim um passo crucial em direção ao ideal de autogoverno.

Conclusões

Como vimos, muitos diferentes atores têm defendido o sorteio, uma ferramenta que molda vários imaginários da política e da sociedade com características diametralmente opostas em muitos aspectos. Os campeões da democracia deliberativa foram os primeiros a propor mecanismos de sorteio e também conseguiram conceituar os minipúblicos. Reciprocamente, eles forneceram uma espécie de laboratório para a teoria da democracia deliberativa. Alguns de seus expoentes permanecem indiferentes ao sorteio, enquanto outros apoiam fortemente o desenvolvimento de minipúblicos, que dão credibilidade empírica à democracia deliberativa aos olhos dos praticantes. Entretanto, esta teoria e o imaginário resultante quase não fazem referência às relações de poder ou a uma transformação radical da sociedade. 

O imaginário da democracia antipolítica parece estar em um impasse estratégico devido a sua ingenuidade em assumir um povo unificado, embora haja faixas crescentes da sociedade se mobilizando sob seus slogans em busca de mudanças sociais. Como resultado, este imaginário teve um impacto real na opinião pública, com uma influência indireta, mas significativa, sobre a popularização do sorteio. Não só se mistura facilmente com um imaginário empresarial que é difundido em campos profissionais ligados à alta tecnologia, mas também prospera em setores anarquistas, onde o antagonismo entre 1% e 99% está justaposto a uma forte perspectiva antissociológica. 

O imaginário democrático radical, entretanto, implica uma espécie de “utopia real” que parece se basear em uma visão mais crível das relações de poder e na convicção de que a democratização da democracia virá da relação dialética entre o sorteio, os movimentos sociais e os partidos políticos. Com uma linguagem direta, este imaginário gerou uma experiência limitada, mas indiretamente também serviu para elevar o perfil do sorteio e para influenciar o CCC realizado na França. 

Até certo ponto, estes imaginários têm sido capazes de fomentar experiências em conjunto porque, em parte, coincidem nas supostas virtudes do sorteio: justiça e igualdade democrática, esta última entendida em relação à lógica da representação descritiva e, em menor grau, à qualidade epistêmica produzida pela deliberação dos cidadãos comuns. Entretanto, se o procedimento se tornar importante novamente, é provável que os imaginários acabem se confrontando de forma mais direta. Uma sociedade reconciliada governada por políticas consensuais não está ao virar da esquina.

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Nota: uma versão anterior deste artigo foi publicada no Raisons Politiques vol. 82 No 2, 2021. Tradução do inglês: Mariano Grynszpan.

1. Bernard Manin: Los principios del gobierno representativo, Alianza, Madrid, 1998; Oliver Dowlen: The Political Potential of Sortition: A Study of the Random Selection of Citizens for Public Office, Imprint Academic, Exeter, 2008; Hubertus Buchstein: Demokratie und Lotterie. Das Los als politisches Entscheidungsinstrument von der Antike bis zur EU, Campus, Fráncfort, 2009; Y. Sintomer: Petite histoire de l’expérimentation démocratique, La Découverte, París, 2011.

2. Mathias Poertner: «Does Political Representation Increase Participation? Evidence from Party Candidate Lotteries in Mexico», en PRENSA.

3. R. Koselleck: Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos, Paidós, Barcelona, 1993, pp. 333-357.

4. Francis Fukuyama: El fin de la historia y el último hombre, Planeta, Barcelona, 1992.

5. R. Koselleck: ob. cit.

6. Samuel Hayat: «La carrière militante de la référence à Bernard Manin dans les mouvements français pour le tirage au sort» en Participations, edición especial: Tirage au sort et démocratie: Histoire, instruments, théories, 2019, pp. 437-451; Antoine Chollet e B. Manin: «Les postérités inattendues de Principes du gouvernement représentatif: une discussion avec Bernard Manin» en Participations No 23, 2019.

7. Taurus, Madrid, 2017.

8. Y. Sintomer: «Sortition and Politics: From Radical to Deliberative Democracy –and Back?» em Dino Piovan e Giovanni Giorgini (eds.): Companion to Ancient and Modern Democracy, Brill, Leiden, 2020.

9. G. Konrad: Antipolitics, Harcourt, San Diego, 1984.

10. Traduzido de https://it.wikipedia.org/wiki/Antipolitica.

11. J. Rancière: El odio a la democracia, Amorrortu, Buenos Aires, 2006.

12. Representação estatística de cada setor conforme seu peso na sociedade. 

13. Neste sentido, o filme 12 homens e uma sentença (Sidney Lumet, 1957) é emblemática.

14. Hélène Landemore: Democratic Reason: Politics, Collective Intelligence, and the Rule of the Many, Princeton UP, Princeton, 2012.

15. Simone Chambers: «Rhetoric and the Public Sphere: Has Deliberative Democracy Abandoned Mass Democracy?» en Political Theory vol. 37 No 3, 6/2009; Cristina Lafont: Democracy without Shortcuts, Oxford up, Oxford, 2020.

16. John Parkinson e Jane Mansbridge (eds.): Deliberative Systems, Cambridge UP, Cambridge-Nueva York, 2012.

17. J. Mansbridge et al.: «The Place of Self-Interest and the Role of Power in Deliberative Democracy» en The Journal of Political Philosophy vol. 18 No 1, 2010.

18. OCDE: Innovative Citizen Participation and New Democratic Institutions: Catching the Deliberative Wave, OCDE, París, 2020, p. 25.

19. «Emmanuel Macron lors du ‘grand débat’: ‘Ce qui remonte, c’est la fracture sociale’» en Le Monde, 16/1/2019.

20. Deve-se notar que os conceitos de democracia deliberativa e democracia radical são usados pelos atores para descrever suas próprias teorias, enquanto a democracia antipolítica, com exceção de George Konrad, é frequentemente um rótulo (pejorativo) usado por pessoas de fora.

21. Esta perspectiva também pode ser vista em alguns setores libertários e socialistas, e até mesmo, embora parcialmente, no trabalho de Jean-Jacques Rousseau.

22. G. Giannini: La Folla. Seimila anni di lotta contro la tirannide [1945], Soveria Mannelli, Rubbettino, 2002, pp. 60-61, 74, 138-139 y 151-160. O trabalho foi analisado em profundidade por Nadia Urbinati e Luciano Vandelli: La democrazia del sorteggio, Einaudi, Turim, 2020; contudo, do ponto de vista desses autores, o projeto de Giannini encarna mais a ideia geral do sorteio que a dos imaginários possibilitados.

23. E. Callenbach e M. Philips: A Citizen Legislature [1985], Imprint Academic, Exeter, 2008.

24. V. website de Justiz Initiative, www.justiz-initiative.ch/startseite.html.

25. Lionel Cordier: «Échapper à la conflictualité? Le tirage au sort comme outil de management et d›union nationale» en Raisons Politiques No 82, 2021, pp. 91-105.

26. S. Hayat: «Les Gilets jaunes et la question démocratique» en Contretemps, 26/12/2018.

27. J. Gastil e EO Wright (eds.): Legislature by Lot: An Alternative Design for Deliberative Governance, Verso, Londres, 2019.

28. Jorge Costa Delgado: «Resistencias a la introducción del sorteo entre el asamblearismo y la institucionalización: el caso de Podemos Cádiz» en Daimon. Revista Internacional de Filosofía No 72, 9-12/2017.

29. Archon Fung: «Deliberation before the Revolution: Toward an Ethics of Deliberative Democracy in an Unjust World» en Political Theory vol. 33 No 3, 2005.

30. EO Wright: «Postscript: The Anticapitalist Argument for Sortition» en J. Gastil y EO Wright (eds.): Legislature by Lot, cit.

31. C. Castoriadis: La cité et les lois. Ce qui fait la Grèce 2, séminaires 1983-1984, Seuil, París, 2008; v. José Luis Moreno Pestaña: Retorno a Atenas. La democracia como principio antioligárquico, Siglo Veintiuno, Madrid, 2019.

32. Andrea Felicetti e Donatella della Porta: “Joining Forces: The Sortition Chamber from a Social-Movement Perspective” em J. Gastil y EO Wright (eds.): Legislature by Lot, cit.

33. Slavoj Žižek, que defende tanto a “loterocracia” como o “terror democrático” a partir de uma perspectiva leninista, é uma exceção. Miguel Lorenci: «Žižek, un torbellino filosófico» en La Verdad, 30/6/2017.

Este artigo é cópia fiel do publicado na revista Nueva Sociedad 298, Marzo – Abril 2022, ISSN: 0251-3552

*Yves Sintomer é professor de Ciências Políticas no CRESPPA (CNRS / Universidade de París 8 / Universidad de París Nanterre).
Nabila Abbas é pesquisadora de Ciências Políticas no Centro de Pesquisas Sociológicas e Políticas de Paris (CRESSPA, CNRS / Universidade de Paris 8 / Universidade de Paris Nanterre).

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