Políticas de habitação garantem que as cidades têm lugar para os seus moradores, mas o mesmo não se verifica nos casos de despejo que têm decorrido nas últimas semanas na cidade de Lisboa e arredores. Mães e famílias estão sem alternativas. A autarquia reconhece que algumas famílias vivem em “insegurança" mas só tem uma solução transitória.
Ana Patrícia Silva | Setenta e Quatro
As portas da sede da associação Habita! abriram-se para mais uma reunião com moradoras em risco de despejo. Num semicírculo de cadeiras, quatro moradoras do Bairro Carlos Botelho, nas Olaias, contam como é que os despejos ocorreram naquele lugar a que chamam casa, sem alternativa de habitação.
“Eram forças de intervenção que estavam presentes. Bateram à porta, saí e não me deixaram mais entrar”, recorda Ana Faustino, de 22 anos e uma das moradoras despejadas da sua casa no Casal de Cambra, em Sintra. O apartamento foi o seu lar durante um ano, depois de se ter separado do companheiro. Sem alternativa, ocupou uma casa vazia com a filha e o irmão. “Trouxe comigo a minha filha. Tentei tudo o que podia dentro da legalidade, mas nunca me deram um apoio ou solução”, explica.
O caso de Ana Faustino é apenas
mais um entre várias famílias, sobretudo de mães solteiras, que se viram
obrigadas a ocupar casas vazias por as instituições públicas não lhes darem
resposta. O seu despejo juntou-se a três outros na Quinta no Loureiro, a cinco
no Bairro Carlos Botelho, em Olaias, e aos da passada quinta-feira no Bairro
Padre Cruz,
Em fevereiro, Ana Faustino recebeu a primeira e única notificação para desocupar o andar e não respondeu à Câmara de Sintra com receio do que poderia acontecer. No dia em que avançaram com o despejo, a solução que lhe deram foi contactar a Santa Casa da Misericórdia, prometendo que lhe dariam teto durante 72 horas. No dia do despejo, um sábado, não recebeu qualquer resposta aos inúmeros contactos que fez: “fiquei na rua e tive que levar a minha filha a casa do pai para que ela não percebesse o que se passava”.
Sem alternativa institucional, não restou à jovem mãe procurar um outro lugar, ainda que por apenas alguns dias, mas os valores de arrendamento superavam em muito as suas possibilidades financeiras. Agora que está desempregada, depois de ter trabalhado durante um ano num restaurante, ainda se torna mais difícil. “Tenho de escolher: pagar uma renda ou passar fome”, admite.
Ana Faustino e Natália Sousa nunca se cruzaram antes, mas as suas histórias não podiam ser mais parecidas, e das suas bocas sai a mesma frase: “disseram que a lei estava do nosso lado”. “Temos direito a uma habitação, direito a apoio social, para nos ajudarem a ter uma vida melhor, para começarmos a reconstruir a nossa vida. É só papel”, diz Natália Sousa, de 37 anos e há dois anos moradora no Bairro Padre Cruz.
Está previsto que a família de Natália Sousa seja uma das seis despejadas das casas que ocuparam no Bairro Padre Cruz. Serão, no total, dezenas de pessoas despejadas, entre elas oito crianças e uma mulher que foi mãe há cerca de quatro semanas, segundo as contas dos moradores. A Gebalis começou por desocupar três casas a 26 de maio e prosseguiu-se mais uma no dia seguinte.
A empresa pública, que gere 66 bairros sociais com 60 mil habitantes, justifica as desocupações com o intuito de “repor a legalidade” e “acautelar a segurança das comunidades”, argumentando que muitas das casas estão em “estado de pré-ruína”, afirmou em comunicado. Depois das desocupações, explica a empresa, o objetivo é demolir as casas para que no seu lugar seja construído um “novo edificado, que oferecerá condições de habitabilidade dignas às famílias” ali alojadas depois de “todos os trâmites legais para a atribuição de habitação social”.
O Setenta e Quatro contactou a Gebalis durante mais de uma semana com o objetivo de perceber melhor estas informações, mas não recebeu qualquer resposta até à publicação do artigo.
"Políticas de habitação não garantem lugar às moradoras"No Bairro Padre Cruz as paredes são mais do que áreas pintadas de branco. Vêm-se graffiti de artistas como Tâmara Alves, “pedem-se” aplausos nos blocos de cimento em letras grandes, redondas e com cor escura e artistas como o Draw&Contra não deixam de assinalar que passaram por ali. Os telhados de amianto e as paredes sem reboco também fazem parte.
Está planeado que a zona com casas de alvenaria vá abaixo para se construir um novo edificado dedicado à habitação social. Este projeto, iniciado em 2010 e que bateu às portas deste bairro em 2017, é consequência da grande quantidade de casas devolutas nos últimos anos.
O número de casas vazias neste bairro, segundo um registo de lotes a que o Setenta e Quatro teve acesso, chega às duas dezenas. Por sua vez, são oito as mulheres, e respetivas famílias, que reivindicam o seu direito à habitação. O número de casas vazias não foi, no entanto, impedimento para a demolição das casas cujas famílias foram despejadas.
Os moradores, revoltados, chamam-lhe um “ato desumano.” “Partiram tudo logo que a minha prima deixou a casa. As escadas, as paredes, tudo”, descreve Patrícia Santos, que vive numa casa ocupada há dois anos com os seus dois filhos. Ao Setenta e Quatro, a moradora conta que as três ruas principais foram totalmente fechadas no dia em que os despejos começaram. “Estamos a falar de mais de uma dezena de polícias”, recorda.
Apesar de não haver violência, sentiu-se a intimidação e, continua Patrícia Santos, “os limites foram ultrapassados”. “Fizeram uma rusga com a desculpa de despejo. Mexeram em pertences, levaram coisas que não deviam ter levado”, denuncia a moradora.
Os despejos depressa foram tema de debate na Assembleia Municipal de Lisboa. Enquanto as famílias retiravam os seus pertences das casas, os deputados municipais tomavam a palavra. A vereadora da Habitação, Filipa Roseta, defendeu as "desocupações" argumentando que “as casas onde estas famílias estavam não apresentam condições de salubridade e segurança”. “Os seis agregados que foram totalmente acompanhados pela Gebalis e pela assistência há meses, pessoa a pessoa, sabem que isto é verdade”, reiterou em resposta ao deputado municipal bloquista Vasco Barata.
Um dos argumentos usados pela vereadora foi o de a Santa Casa da Misericórdia estar “completamente disponível” para ajudar, garantindo que o processo de realojamento será “acompanhadíssimo”. Mas Patrícia Santos garante que assim não está a ser, pelo menos não com o impacto necessário: “A única garantia que a Santa Casa nos dá é uma estadia de 72 horas”. E depois? Ninguém sabe.
“Mandámos e-mails, enviámos cartas. Pedimos ajuda. E os direitos humanos ficam onde? Todo o sem-abrigo tem direito a encontrar um lar, ou uma casa devoluta. Eles [entidades] têm que ajudar a procurar melhores condições e não colocarem-me de novo na rua”, afirma, indignada, Natália Sousa. Questionada pelo Setenta e Quatro sobre estas 72 horas, a Santa Casa disse que providenciará um apoio transitório para garantir a autonomia dos agregados em causa. “As famílias [serão] apoiadas de acordo com as suas necessidades e avaliação da condição de recurso, associado ao cumprimento de um plano de intervenção”, transmitiram por e-mail. Sobre que tipo de apoio e qual o valor possível, a instituição não deu resposta.
Independentemente da resposta imediata institucional dada às famílias despejadas, o deputado municipal do Bloco de Esquerda enviou uma queixa uma queixa à Provedoria de Justiça sobre as desocupações no Bairro Padre Cruz. Nela acusa a Câmara de Lisboa de violar o direito à habitação da Constituição e a lei de bases da Habitação, que prevê a disponibilização de apoio judiciário e alternativas não imediatistas aos despejos.
Muitas das famílias que ocupam casas vazias fazem-no por falta de resposta institucional para as suas necessidades de habitação. Ficam anos em listas de espera por uma casa municipal por não terem rendimentos suficientes para acederem ao mercado privado, cada vez mais indisponível para as famílias carenciadas de Lisboa.
De acordo com números dos últimos Censos, há 48 mil imóveis vazios em Lisboa. “Dois mil destes fogos vazios têm como proprietário a Câmara Municipal de Lisboa”, disse ao Setenta e Quatro Jorge Malheiros, geógrafo e investigador no Centro de Estudos Geográficos do IGOT da Universidade de Lisboa. “Os números retratam muitas casas vazias e 800 delas ocupadas ilegalmente estando ao abrigo da Gebalis, mas isto não devia ser novidade para a autarquia”, disse.
A Carta Municipal de Habitação foi outra questão que o investigador evidenciou. “A sua criação é um passo significativo, porque agregará todas as políticas de habitação do concelho”, explicou o investigador. No entanto, realça que as políticas de habitação devem contar com os contributos de todas as entidades e, acima de tudo, dos moradores. “Estas pessoas não estão a ser ouvidas.”
Ao não serem ouvidos, os moradores vêem-se sem escolha. É o caso de Rita Valente, moradora do Bairro Carlos Botelho, nas Olaias. “A Câmara de Lisboa tem conhecimento que vivem 12 pessoas num T4. Aguardo uma intervenção na casa há anos e, mesmo assim, não me dão qualquer alternativa. Entre uma ‘ocupação’ e um retrato destes que é do conhecimento da CML, o que é suposto esperarmos?”
Imagem: Mário Cruz/Lusa
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