A DIGNA FIDELIDADE, A TODA A PROVA, À REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA
Martinho Júnior, Luanda
Sabemos das razões profundas da ausência de memória em relação à revolução dos escravos e do que se lhe seguiu até hoje no Haiti e por todo o Sul Global…
Em tempo de escravatura e de colonialismo, em tempo de opressão e repressão, tal como acontece ainda não só em relação ao Haiti, a memória é inimiga do domínio bárbaro, apto desde a fermentação de sua matriz a dividir e a triturar os povos, condicionando-os e formatando neles a mentalidade de sua única conveniência… por isso há ainda tanto afã em subverter a memória, subverter a história, subverter a ciência, subverter o ambiente sociopolítico contemporâneo, por que só assim o poder dominante continua a ser exercido em pleno século XXI…
De igual modo entendemos das dificuldades de memória em relação a muitos combatentes que por amor à humanidade tombaram do lado da dignidade, sabendo que pagaram com sua vida a imensa dívida moral para com os povos de África, tal como um dia em nome do povo cubano assumiu o Comandante Fidel e continuam a assumir todos os que com ele alimentam a batalha das ideias honrando o passado e a história do lado dos “deserdados da Terra”!...
01- No dia 9 de Julho de 1984, pelas 02H20 da madrugada, morreu em combate meu camarada e companheiro de luta, capitão António Carlos, Delegado da Segurança do Estado na Província do Huambo.
Daqui a mais dois anos já lá vão 40 desde esse marcante acontecimento.
É este um dos depoimentos de um dos seus contemporâneos de então, seu subordinado:
“António Carlos morreu a 09 de Julho 1984, com António de Melo Ferreira (Tony), chefe do plano na altura, Marito, Chefe de Gabinete e Fortes, quadro, recém-enquadrado e colocado no sector da administração e serviços.
O Pires, chefe transportes e um escolta cujo nome não me vem à memória agora, foram os dois sobreviventes.
O inimigo realizou um ataque no Instituto Agrário da Chianga e o António Carlos foi reforçar o dispositivo de defesa; de regresso a sua viatura acionou uma mina nas mediações da Chiva.
A equipa do Sector de Operações que ia reforçar a missão, dirigida pelo chefe da altura, Rasgado (em memória), equipa essa que eu fazia parte, saiu pouco depois deles; próximo das imediações das instalações da Cuca Protector recebemos informação do sucedido… só nos restou recolher os corpos”…
02- Na defesa da República Popular de Angola os quadros da Segurança do Estado não escolhiam os seus cargos, tal o grau de fidelidade e a vontade de cumprir todo e qualquer tipo de missões em função da afirmação do movimento de libertação em África!
Hoje podiam estar num sector, amanhã noutro, alterando quase sempre a natureza das suas actividades e, com suas aptidões a serem postas sistematicamente à prova, as missões sucediam-se numa cadência frenética, muitas vezes de forma inopinada, face a qualquer tipo de acontecimento que punha em causa a segurança duma aldeia, duma comuna, dum município, duma estrada, duma ponte, ou duma capital provincial!
A região da capital provincial do Huambo, pelas suas características (“habitat” disperso em vastas áreas em torno do casco urbano, sendo difícil perceber onde acabava o subúrbio e onde começava a área rural circunvizinha) era propensa a alvo das acções terroristas durante praticamente toda a década de 80 do século passado e quando em 1992 Savimbi desencadeou a “guerra dos diamantes de sangue” (oito anos depois da morte do capitão António Carlos), chegou a ser tomada pelas suas hostes durante algum tempo.
A penetração na cidade dum grupo disposto a sabotagens e ataques pontuais era físico-geograficamente facilitada pelo formato em estrela de muitas pontas da cidade e só depois do estudo inteligente dos ambientes humanos nesses veios de penetração foi possível começar a neutralizar os actos terroristas.
Muitas vezes os quadros responsáveis iam voluntariamente para qualquer tipo de frente, por que sentiam que assim tinha de ser, pois entre outras coisas era necessário aprimorar as capacidades de resposta reactiva e proactiva, em qualquer espécie de terreno e fosse qual fosse a missão e o enquadramento humano.
Os quadros dessa época tinham um modo de vida rústico, modesto e imponderável, não se furtando a sacrifícios por vezes nos ambientes mais hostis, com a cabeça fria, as mãos limpas e o coração ardente!
Com o capitão António Carlos a camaradagem e a solidariedade eram, para além disso, marcas duma cultura pessoal inestimável, com ele sempre disposto a assumir a responsabilidade de comando qualquer que fosse a área e a tipologia de risco, o que garantia a imediata empatia de todos os que com ele lidavam, assim como a prontidão das respostas do colectivo e de cada um dos subordinados.
Enquanto esteve na Informação e Análise houve a oportunidade de melhor o conhecer e amiúde trocar impressões sobre a evolução das situações interna e internacional.
Era uma pessoa de sensibilidade apurada para com os substractos sociais mais explorados do colonialismo e dentro do aparelho, exigia de si próprio antes de exigir dos outros, pelo que impunha-se naturalmente pelo seu exemplo e pela sua vocação de camarada entre iguais.
No horizonte colocava sempre a aspiração numa pátria socialista e tinha a noção que, acabando os conflitos, com a paz iriam surgir desafios decisivos até por que num exercício cívico-militar, as FAPLA (que nunca se imaginava que iriam desaparecer), se aplicariam também a fundo nas actividades da reconstrução nacional.
Essa foi sempre a visão de futuro, pois as FAPLA concentravam uma grande parte dos quadros do país e seria necessário garantir-se unidade e coesão em relação aos desafios que a paz traria pelo que é essa uma das razões que me conduz a argumentar que a protecção e a segurança vital da Região Central das Frandes Nascentes e de Angola, em torno sobretudo do marco geodésico de Camacupa (um círculo com cerca de 300km de raio), é um assunto de tal modo abrangente e prioritário que deveria implicar o esforço militar em estreita coordenação com outros esforços!...
… Podia-se trabalhar noite dentro, até de madrugada, sem fins-de-semana e semanas a fio!...
O rigor que demonstrava nos seus desempenhos, nutria-se dessa cultura e motivava-o para a busca de soluções operativas, reactivas ou proactivas, ou seja, era um quadro cada vez mais criativo no engenho e na arte de suas abordagens, sempre disposto a, com camaradagem e solidariedade, motivar, mobilizar, ensinar os outros, aprendendo em reciprocidade, dadas as características de cada um.
Como tinha sido estudante universitário aumentava constantemente o grau de seus conhecimentos, sempre animado das convicções revolucionárias de então, podendo integrar todo o tipo de trincheiras de luta dada a versatilidade adquirida.
Uma das intervenções que íamos abordando, era o discurso do Presidente António Agostinho Neto, na Proclamação da Independência de Angola, carregada de ensinamentos…
“Em nome do Povo angolano, o Comitê Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), proclama solenemente perante a África e o Mundo a Independência de Angola.
Nesta hora o Povo angolano e o Comitê Central do MPLA observam um minuto de silêncio e determinam que vivam para sempre os heróis tombados pela Independência da Pátria.
Correspondendo aos anseios mais sentidos do Povo, o MPLA declara o nosso País
constituído
Durante o período compreendido entre o encontro do Alvor e tal Proclamação, só o MPLA não violou os acordos assinados.
Aos lacaios internos do imperialismo de há muito os deixámos de reconhecer como movimentos de libertação.
Quanto a Portugal, o desrespeito aos acordas de Alvor é manifesto, entre outros, no facto de sempre ter silenciado a invasão de que o nosso País é vítima por parte de exércitos regulares e de forças mercenárias. Esta invasão, já conhecida e divulgada em todo o mundo, nem sequer mereceu comentários por parte das autoridades portuguesas que, de facto, não exerceram a soberania a não ser nas áreas libertadas pelo MPLA. Por outro lado, o nosso Movimento enfrenta no terreno várias forças reacionárias que integram uma espécie de brigada internacional fascista contra o Povo angolano. E nessa aliança incluem-se forças reacionárias portuguesas que participam na invasão do Sul do País, que o governo português não só não combateu como legitimou tacitamente pelo silêncio e passividade.
Não obstante as organizações fantoches conluiados com exércitos invasores terem de há muito sido denunciadas pelo Povo angolano e por todas as forças progressistas do mundo, o governo português teimou em considerá-las como movimento de libertação, tentando empurrar o MPLA para soluções que significariam uma alta traição ao Povo angolano”…
03- Naquela época, até 1985, era assim a forja da aliança cívico-militar sob a energia da aliança operário-camponesa, que passava pelos quadros com os olhos no socialismo e na paz, cada vez mais abrangente e responsável que garantia a articulação dos instrumentos do poder de estado da República Popular de Angola, algo que estava intimamente associado ao exercício da independência e da soberania.
A participação e o protagonismo de cada um, independentemente de sua origem, era uma cultura garantida nessa vocação patriótica e o enquadramento dos combatentes era feito com elevado sentido de responsabilidade, dentro de estruturas em pirâmide, onde a burocracia era reduzida, pressupondo sempre um vasto leque de empenhos e de opções face à catadupa de desafios e de riscos.
O juramento patriótico dos quadros era feito nesse ambiente extraordinário, simples mas empolgante, que só começou a ser posto em causa em função de decisões políticas que entretanto foram aparecendo entre os mais díspares contraditórios secundários da época, fazendo surgir outras opções, outros comportamentos, outras correntes…provocando por vezes perturbações que deveriam ter sido, em tempo, evitados, até que a 31 de Maio de 1991, em Bicesse, se acabou com a RPA, com o Partido de Trabalho e as FAPLA!…
O capitão António Carlos cuidava sempre de todos os que compunham as suas e as fileiras mais próximas, sempre com a aspiração socialista que animava a República Popular!
Para os processos de inteligência não havia que andar a resolver sistematicamente os problemas, por que urge, na base do conhecimento, saber acima de tudo evitá-los… muitas vezes assim não pôde ser, ainda que em silêncio houvera que ser, sempre com os sentidos postos nas mais legítimas aspirações de futuro!
Mesmo assim a prontidão de dar luta ao “apartheid” e aos seus apêndices etno-nacionalistas impunha-se por que Angola, “trincheira firme da revolução em África”, era de facto sentida e pensada “de Cabinda ao Cunene e do Mar ao Leste”.
O capitão António Carlos tinha um elevado sentido de responsabilidade nas respostas que como subalterno dava aos Comandantes que haviam chegado da guerrilha na sequência da proclamação das FAPLA e haviam assumido a direcção dos organismos do poder de estado, ainda que os embriões fossem muito incipientes e com graus de experiência distintos nos seus componentes.
A evolução rápida da situação em Luanda nos anos de 1974 e 1975, com laivos de guerrilha urbana de baixa intensidade por que não houve como o evitar, foi uma escola de luta revolucionária para os quadros e a tarimba de suas convicções socialistas!
A destreza cívico-militar que veio a seguir com a independência, abria-se à participação e ao protagonismo inteligente num quadro da aliança operário-camponesa (“nós somos milhões e contra milhões ninguém combate e quem o tentar será neutralizado”), pelo que estávamos certos que a combinação entre uma vanguarda revolucionária do povo angolano, a identidade nacional a irromper, o patriotismo e a lógica com sentido de vida eram por si uma escola colectiva de democracia com responsabilidade, a plataforma de ideias e acções disponível para a libertação de toda a África Austral e uma animação do futuro das mais legítimas aspirações de todo o povo angolano..
Na África Austral a libertação seria imparável e justa com o fim do “apartheid” institucional que a hegemonia havia tornado em regime aliado, não poderia ser como e exemplo dos desastres a que foi condenado o Haiti, por parte do neocolonialismo de inspiração da hegemonia unipolar e isso mobilizava a juventude de então dentro do aparelho de estado nutriente da República Popular de Angola!...
O capitão António Carlos era um incondicional combatente contra o imperialismo e tudo o que dele emanasse!
Foi assim que viveu o camarada capitão António Carlos e é assim que em Angola, mesmo nas circunstâncias e conjunturas mais adversas, há que honrar com memória fresca, o passado e a história, alimentando com lógica com sentido de vida os passos das vocações patrióticas que há que saber cultivar!
Poucos meses antes do 9 de Julho de 1984 conversei com ele e pedi-lhe para variar a ementa de suas deslocações operativas no Huambo, assim como a ementa de suas entusiastas respostas que me parecerem seguir um padrão demasiado rígido, a fim de evitar a constância de tantos riscos, mas não o consegui demover…
Círculo
Registo fotográfico duma deslocação do capitão António Carlos para treino e manobra de combate tático-operativo nas proximidades do Caxito, actual Província do Bengo; o seu instrutor foi o internacionalista português Eduardo Cruzeiro, “Alex”, “Prof”, também já falecido; o capitão está de pé na carroçaria do jipe e o “Alex” está apeado, entre outros combatentes.
Leituras obrigatórias:
. "Discurso de Agostinho Neto na proclamação da independência de Angola" – https://www.novacultura.info/post/2021/11/11/discurso-de-agostinho-neto-na-proclamacao-da-independencia-de-angola;
. Ninguém será capaz de quebrar o que une os povos de Cuba e da África – https://pt.granma.cu/cuba/2022-03-22/ninguem-sera-capaz-de-quebrar-o-que-une-os-povos-de-cuba-e-da-africa;
. Contribución de Cuba a la liberación de África: “La causa más bella de la humanidad” – http://www.cubadebate.cu/especiales/2019/05/25/contribucion-de-cuba-a-la-liberacion-de-africa-la-causa-mas-bella-de-la-humanidad/;
. Cabral: "Um cruel dilema para o colonialismo: liquidar ou assimilar?" – https://www.novacultura.info/post/2022/07/01/cabral-um-cruel-dilema-para-o-colonialismo-liquidar-ou-assimilar.
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