sábado, 10 de setembro de 2022

Portugal | OS CONDENADOS DA INFORMAÇÃO

Pedro Coelho* | Setenta e Quatro

Um jornalista que tenha a sorte de passar nos filtros apertados do acesso à profissão e que comece hoje a ganhar 700 ou 800 euros líquidos, daqui a cinco anos, se não for desafiado para a chefia intermédia (coordenadores, editores, subeditores, editores executivos) estará a ganhar exatamente o mesmo. A única progressão salarial a que pode aspirar é a que estiver associada ao cargo.

Aqueles que querem, de facto, ser jornalistas não escolhem a profissão a pensar no elevado salário que lhes permita chegar a rico. O jornalista nunca é rico, mas também não deveria ser pobre. E a profissão, hoje, está carregada de pobres. 

Aos licenciados e mestres em jornalismo/comunicação, que passam os filtros do acesso à profissão, é-lhes oferecido um salário entre os 700 e os 800 euros líquidos – pouco mais do que o salário mínimo nacional. 

Este valor ridículo não permite a ninguém que o receba ser autónomo, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, regiões onde a maioria dos jornalistas tem de residir. A autonomia a que me refiro é financeira, mas é, também, muito mais do que isso - é uma autonomia social, que permite a cada um trabalhar na construção da sua própria liberdade. 

O salário mínimo é uma violência social que condena cada um que o receba – e enquanto o receber – à pobreza, com todas as consequências que esse estatuto transporta: o estigma, a mancha, a desesperança, a involução… a perenidade. 

Dirão alguns que é sempre melhor receber um salário mínimo do que não receber salário nenhum. Essa verdade obtusa, por ser obtusa, tem propósitos obtusos. E por aqui me fico. 

Um jornalista que tenha a sorte de passar nos filtros apertados do acesso à profissão e que comece hoje a ganhar 700 ou 800 euros líquidos, daqui a cinco anos, se não for desafiado para a chefia intermédia (coordenadores, editores, subeditores, editores executivos, apresentadores de jornais televisivos) estará a ganhar exatamente o mesmo. A única progressão salarial a que o neófito de 2022 pode aspirar é a que estiver associada ao cargo. 

E isto coloca-nos tantas e tão relevantes questões.

Desde logo a mais óbvia: um jornalista com dois, três, quatro, cinco anos de profissão não tem condições para liderar os pares, nem para tomar decisões editoriais. A não ser que o cargo seja de fachada, limitando-se o(a) escolhido(a) a ser correia de transmissão acrítica das decisões que vêm de cima. Guardarei, todavia, as consequências da inexperiência ventríloqua destas chefias intermédias para outra crónica. Regresso aos miseráveis salários. 

Cinco anos depois de ter abraçado o sonho do jornalismo, 70 vezes recebidos os 700 ou 800 euros, o sonho vai assumindo contornos de pesadelo. 

Aos 27 anos, com uma licenciatura e um mestrado e cinco anos de profissão, estes jornalistas do salário mínimo, continuam a viver em casa dos pais (ou amparados pelos pais), ou partilham casa com camaradas de ofício, sobreviventes da mesma penúria, ou alugam quartos no desterro das áreas metropolitanas onde trabalham, ou esgotam o curto tempo das folgas nas ocupações a meio tempo nas caixas de supermercado ou nas lojas de roupa, para terem um pouco mais de dinheiro que lhes permita chegar ao fim do mês. 

Se as profissões de salário mínimo estão associadas a tarefas monótonas, mecânicas, os jornalistas de salário mínimo, por não terem tempo para vida própria (porque fazem os piores e os mais longos horários; porque não sabem dizer NÃO), nem dinheiro para alimentarem a alma nem o espírito, transformam o jornalismo numa profissão mecânica, feita de corta e cola; enchem chouriços como nas fábricas de carne. 

Xavier Ternisien chama-lhes os “condenados da informação”: “completam jornadas de trabalho de 12 horas, não gozam fins de semana, trabalham à noite, têm contratos precários e recebem salários baixos”.  Esses mesmos, acabadinhos de sair das faculdades, Érik Neveu integra-os no “batalhão de reservistas” que, ainda mais cáustico, Ignacio Ramonet considera “prontos para abate”. Fazem estágios atrás de estágios antes de chegarem à profissão. Quando, finalmente, chegam, ficam ali, na corda-bamba, temendo cair se levantarem a voz, ou se recusarem fazer o que lhes está destinado. Dizia-nos James Carey, no ano 2000, que os jornalistas “têm mais capacidades e melhor formação, mas têm menor controlo sobre as condições do seu trabalho e são menos livres do que os jornalistas das gerações anteriores”. 

Fartos de serviços jornalisticamente mínimos, muitos destes jornalistas do salário mínimo, desistem ao fim dos primeiros cinco anos. Alguns seguem para as profissões do vasto campo da comunicação (o avesso do jornalismo para quem conseguiu aprender a distinguir o jornalismo do resto), onde recebem salários mais encorpados e aparentam ter estatuto. 

Alguns, depois dos cinco anos, decidem ficar no jornalismo. O salário continuará baixo, o tempo de trabalho continuará longo, a alma e o espírito permanecerão esfomeados. Ainda assim, estes que ficam, ficam porque acreditam no jornalismo. 

Este texto é uma homenagem sobretudo a esses. Ficaram porque quiseram, apesar de tudo aquilo que sabemos.  

*Jornalista

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