O Governo nunca resiste ao superlativo: o primeiro-ministro concede modestamente que nem dirá que o aumento das pensões seja o maior “desde que os sumérios inventaram a escrita”.
Diz-se que o primeiro-ministro recebeu uma salva de palmas quando garantiu aos deputados da maioria absoluta que o aumento das pensões será acima da inflação. É um sinal curioso de devoção partidária, pois todos os ‘aplaudidores’ sabem que se trata de uma mentira. Mesmo descontando a separação em dois pagamentos (e o meio mês de pensão em outubro deveria contar como uma compensação pelas perdas pela inflação em 2022) e a não aplicação da lei em 2023, o próprio Governo afirma que pagará 8% às pensões mais baixas e menos do que a inflação aos outros pensionistas, depois deste ano em que todos perderam. Acresce ainda, para tornar a trama mais misteriosa, que a ministra veio mesmo dizer que, se se cumprisse a lei que prevê os tais 8% (na verdade, a lei imporia um aumento maior), então a sustentabilidade da Segurança Social seria tão afetada que se perderiam 13 anos no futuro do sistema — também nisso foi aplaudida pelos deputados da maioria, e o chefe repetiu o argumento. Esta conta é feita segundo as normas europeias, explicou beatificamente Costa no Parlamento. Um mês depois, o Orçamento apresenta contas, pela certa ainda segundo as mesmas normas, que desmentem as anteriores e permitem concluir que, pagando-se o valor legal, o saldo seria de mais de 2 mil milhões, que as receitas da Segurança Social continuam a crescer e que garantem mais 40 anos do sistema, mesmo sem novas formas de financiamento.
Ora, se esta fosse a única trapaça do Orçamento, poder-se-ia fingir que não se sabe de nada — é certo que o Governo conta com os votos dos reformados, mesmo que os ponha no pelourinho da inflação.
Truques de prestidigitação
Há depois as belezas do Orçamento. Três exemplos bastam. Há uma taxa sobre as mais-valias em especulação com criptomoedas, mas quem as tiver na carteira por um ano tem uma milagrosa isenção, o Governo quer promover esta atração do turismo para o nosso criptoparaíso à beira-mar plantado. Percebeu o recado, deixe-se de coisas na Bolsa ou de investimentos, cripto é que é. A Dona Branca também triunfou durante algum tempo, mesmo que ninguém se tenha lembrado de a isentar dos impostos.
E há depois a resposta à subida dos juros do crédito imobiliário, em que o Governo oferece a solução da redução da retenção na fonte (mas sabe que todo o IRS é pago no apuramento final, não sabe?), ou seja, zero. Para acrescentar uma pitada de drama, limita agora o aumento das rendas, mas cogita liberalizá-las a meio do ano, cumprindo finalmente a lei de Assunção Cristas, que o PS tanto criticou e que tão denodadamente manteve. Cada antídoto vem com mais veneno.
Finalmente — não há festa nem festança sem a Dona Constança —, chega o sempre prometido aumento do investimento público. É a jura eterna: este ano ficarão por cumprir mais de 2 mil milhões, tendo sido orçamentado um esplendoroso crescimento não realizado (e há mais: a subexecução total do Orçamento de 2022 é estimada pelo Governo em 3 mil milhões em contabilidade pública e já há um superávite estrutural de 1%); para o ano volta-se à promessa de cumprir o que não foi cumprido neste, e assim continuará pelos tempos atrás dos tempos.
A maior intervenção de sempre
Além da prestidigitação e por qualquer idiossincrasia mística, o Governo nunca resiste ao superlativo: o primeiro-ministro concede modestamente que nem dirá que o aumento das pensões seja o maior “desde que os sumérios inventaram a escrita” — de facto é a maior redução em termos reais dos últimos 15 anos; e não resistiu a dourar a política energética como “a maior intervenção de sempre” no mercado do gás e da luz, se bem que afinal seja um terço do prometido. Feitas as contas, sai menor a encomenda: dois terços do anunciado não são despesa orçamental — na verdade são 500 milhões de receitas da CESE e taxa de carbono que já vão para o sector elétrico e 1500 milhões de “medidas regulatórias”, um pseudónimo elegante para o registo do efeito contabilístico da diferença entre os preços de mercado e a tarifa paga às eólicas, uma não despesa que não muda um átomo do que já estava previsto pela lei, ficando de sobra só mil milhões de euros de injeção em 2022 e 2023 para benefício das empresas mais consumidoras de energia. E se pensa que vai haver algum controlo de preços em troca deste bónus, já sabe a resposta.
E tudo para quê, senhor?
Estas medidas agravam as dificuldades importadas com a inflação energética e, produzindo uma contração em termos reais de salários e pensões, ampliada pelo efeito de atemorização da população, conseguem o objetivo: atenuar o PIB contendo o consumo. Repare bem nos discursos, pois vão ser artimanhas sofisticadas, dado que o mesmo Governo que festeja o crescimento acima da média europeia, graças à aceleração do consumo interno e das exportações (que são o turismo), quer agora conter esse consumo e passa a festejar a sua travagem, que é o resultado do empobrecimento; o mesmo Governo que afirma que a inflação é importada pelas empresas energéticas propõe que a solução seja reduzir em termos reais os rendimentos da população. A operação ideológica não é simples, mas contará com o coro dos justificadores. É preciso “dor”, dizia um ex-secretário de Estado do PS. O primeiro-ministro chama-lhe “confiança”, e reconheço que é bem apanhado, mesmo que não seja verdade.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 14 de outubro de 2022
Artigo também publicado em Esquerda.net
*Francisco Louçã - Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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