O caso Belo é só mais uma evidência do pouco que mudou na forma como a Igreja Católica lida com as denúncias (e até as evidências) de abusos. E deve levar-nos a perguntar se é possível que tudo se passe a despeito do monarca absoluto que é Francisco.
Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião
Um bispo Nobel da Paz que abandona o seu país, de cuja hierarquia católica é o mais alto dignitário, quando esse país, finalmente, e depois de uma longa luta na qual o clérigo teve um papel proeminente, conquista a independência. Alega "problemas de saúde", desaparecendo da esfera pública e acabando por se refugiar em Portugal.
Como é que isto não suscitou perguntas? Ou será que se tratava na verdade de se saberem as respostas e não se querer conspurcar com elas a recém-nascida nação e, evidentemente, a sacrossanta Igreja Católica, numa altura em que - estava-se em 2002 - o Boston Globe publicava a primeira grande investigação jornalística sobre abuso sexualpor padres e seu encobrimento sistémico?
Tendo a crer na segunda hipótese: muita gente, na Igreja Católica e fora dela, sabia das suspeitas (ou mesmo, quiçá, de evidências) relacionadas com Ximenes Belo, e fez-se um pacto de silêncio - tanto mais espantoso quando o exílio do clérigo coincidiu com o rebentar do segundo grande escândalo português de abuso de menores, o caso Casa Pia (sendo o primeiro o dos Ballet Rose, ocorrido durante a ditadura).
E porque creio nisso? Depois da revelação, na semana passada, pela revista holandesa De Groen Amsterdammer, das acusações de abuso sexual por parte de duas alegadas vítimas do ainda bispo, e da admissão do departamento do Vaticano que investiga e sanciona estes crimes de que teria proibido - em 2020, note-se, ou seja 18 anos depois do "exílio" - Belo de contactar com menores e de voltar a Timor, falei com pessoas que conhecem bem o país, e que me garantiram que se tratava de um segredo de polichinelo.
O que isso significa é que não se trata apenas ("apenas") de o Vaticano saber e calar, e de os responsáveis da Igreja Católica portuguesa saberem e calarem; muito mais gente, em Timor e Portugal, soube e calou. E se na hierarquia católica o encobrimento e o silenciamento destes casos são, como está sobejamente provado, o procedimento normal, o silêncio em relação ao afinal pelos vistos tão conhecido caso Ximenes demonstra que a tão alardeada "preocupação com as vítimas" também tem dias nos meios políticos e jornalísticos.
De resto, é raríssimo, mesmo nesta altura dos acontecimentos, que as exigências de esclarecimento e responsabilização vão além de um certo ponto: ainda há, em geral, um culto do "respeito" e até de "reverência" pela instituição Igreja Católica e pelos seus hierarcas, como se a ideia de "sagrado" se impusesse inclusive nos meios não católicos.
Até quando se veem cardeais acusados e condenados por encobrimento, como sucedeu em França, a tendência é para continuar a falar do assunto como se se tratasse de falhas individuais; nem o facto de até o papa Bento XVI ter sido este ano, no contexto de uma investigação independente comissionada na Alemanha pela hierarquia local, acusado de, enquanto cardeal Ratzinger, ter "olhado para outro lado", no que respeita a quatro casos de abuso, resulta numa outra abordagem. É como se se quisesse muito acreditar que, a despeito de todas as evidências, a Igreja Católica é uma instituição "para o bem".
Para isso muito contribui o discurso e a postura do atual papa, claramente um génio de relações públicas que não se cansa de garantir que com ele tudo mudou, e que agora, sob a sua batuta, tudo será investigado, a verdade será exposta e as vítimas reconhecidas e, dentro do possível, compensadas.
Como se constata no caso Ximenes Belo, nada disso sucede. Se o próprio Vaticano admite que o sancionou em relação com denúncias de abuso sexual, onde está o reconhecimento das vítimas? Onde está a sua compensação? Onde está - ao menos - um pedido de perdão? Por outro lado, se o Vaticano considera que Ximenes Belo não pode voltar a Timor nem contactar com menores, quem é que sabe disso? Como é que o podem garantir se é suposto ser segredo?
E alguém pode acreditar que um caso com esta gravidade e alto perfil - o de um clérigo Nobel da Paz -, não chegou aos ouvidos do atual papa? Como se justifica que tenha sido preciso um artigo jornalístico denunciar as acusações para que se fale delas? É essa a atenção e justiça que Francisco tem para oferecer às vítimas?
Não admira, precisamente, que os primeiros representantes das vítimas escolhidos para fazer parte da Comissão Pontifícia de Proteção de Menores, por Francisco criada e nomeada em 2014 com o objetivo de aconselhar o papa na questão dos abusos sexuais, tenham saído passado pouco tempo. A segunda a bater com a porta, em 2017, foi a irlandesa Marie Collins, que em 2018, depois de um encontro com o papa aquando da visita deste à Irlanda, escreveu um artigo a dar conta do seu desapontamento.
"Francisco disse-me que não via necessidade da existência de uma instância central de responsabilização [refere-se ao tribunal central, para julgamento de casos de encobrimento, proposto pela Comissão ao papa e que nunca foi criado]. (...) Acha que há responsabilização: os bispos em relação aos quais há suspeitas de encobrimento são investigados em processos internos e ele afasta-os se considerados culpados. (...) Mas o meu ponto é que não se diz às pessoas que os bispos responsáveis por encobrir são afastados. Permitem-lhes que resignem e vão à vida deles. Nada é transparente. Ele admitiu que tinha de haver mais transparência." Collins disse ainda estar muito desapontada com o facto de o papa afirmar que estava contente com os processos locais (nos países) e que não sentia que existisse "resistência".
Quatro anos depois, o "mais transparência" de Francisco está à vista. No caso Ximenes como nas concordatas que o governo do qual é monarca absoluto assinou desde que subiu ao trono, uma delas, por coincidência, com Timor. Aí se pode apreciar como se criou, no caso da República Centro-Africana, um "foro privilegiado" para os bispos, e se colocaram, em vários países, incluindo Angola, os arquivos e registos fora do alcance das autoridades. Nada grita mais "transparência", não é?
Do mesmo modo, nada demonstra mais a determinação de fazer justiça e assumir responsabilidades que as disposições, insertas nas concordatas com Angola e Burquina Faso (as mais recentes, de 2019), de que a responsabilidade civil e criminal por delitos cometidos por eclesiásticos é "exclusivamente pessoal" e apenas "essas pessoas físicas responderão com os seus bens pessoais aos danos materiais, imateriais ou morais ligados ao delito civil ou ao crime".
Diz o chileno Juan Carlos Cruz, atual representante das vítimas na referida Comissão Pontifícia, que é muito difícil compreender "os vazios 'desculpem' e 'perdoem'" proferidos pelos responsáveis eclesiásticos de cada vez que surge mais um escândalo de abuso sexual. "A Igreja quer manter esta imagem de uma organização imaculada em que se entra e os anjos nos cantam aos ouvidos", comenta, considerando que o problema é o clericalismo, que define como "os bispos e os padres estarem acima de toda a gente e devermos-lhes respeito porque Deus fala unicamente através deles (...)."
Malgrado a sua amargura e revolta em relação à instituição, e o seu cansaço ante pedidos de perdão que nunca reconhecem culpa, Cruz acredita na boa vontade de Francisco, de quem se diz "próximo". Muita gente escolhe acreditar nisso; é compreensível. Porém talvez devamos, em vez de optar pela fé, olhar para os factos. E aplicar uma das máximas do papa: "A verdade é a verdade, não devemos escondê-la".
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